quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Burrice


Se fosse possível mensurar a injustiça de um termo para com o objeto que o origina, "burrice", provavelmente, seria um dos mais injustos. Definido por Houaiss como a "qualidade, caráter ou condição de burro", o termo não faz jus ao simpático animalzinho a que se refere — equino híbrido, estéril, fruto do cruzamento de um cavalo com uma jumenta, ou de um jumento com uma égua. O bichinho, que de "burro" só tem o nome, auxilia os seres humanos desde os mais antigos e remotos agrupamentos sociais até grupos de elite da sociedade moderna. Na história cristã, por exemplo, carregou Maria grávida em sua fuga da cidade e ainda ajudou a aquecer, na manjedoura, o próprio recém-nascido menino Jesus. Mais recentemente, já neste século, durante a guerra no Afeganistão, as forças militares estadunidenses escolheram a eficiência dos burros para carregar suprimentos pelas acidentadas terras daquele país.

O curioso é que a fama de pouca inteligência dos burros vem, justamente, de um hábito muito perspicaz e saudável que esses animais possuem de tomar cuidado em qualquer lugar por onde passam. Entretanto, mesmo poupando a espécie de vários problemas potencialmente fatais, como quedas e fraturas, houve quem julgasse a peculiar característica como um sinal de estupidez, apenas porque confere à classe uma lentidão e "teimosia" não percebida no comportamento usual dos cavalos, por exemplo, por vezes considerados mais "inteligentes". Assim, parece evidente que se a questão for considerada sob uma perspectiva "darwiniana" de preservação da vida, a ideia de burrice dos burros, tão amplamente difundida pelo senso comum, está fundamentalmente errada.

Mas é na contemplação de uma sociedade cosmopolita, existente em megalópoles como São Paulo, e de inúmeros detalhes do seu cotidiano que se pode constatar tão patente equívoco. Basta usar algum dos precários serviços de transportes público da cidade para notar que nunca há burros — animal — ocupando assentos reservados enquanto idosos, gestantes e portadores de alguma deficiência se sacrificam na viagem em pé nos veículos lotados. Também não se vê um único burro sequer empacando o fluxo de pessoas que tentam entrar nos vagões de trem antes do desembarque dos passageiros que ali estão. Não se vê pares de burros estacionados nas escadas e esteiras rolantes barrando a passagem, nem bloqueando acessos a qualquer outro veículo ou lugar. Os burros também não ameaçam, avançam ou atropelam pedestres cruzando as vias nas faixas de segurança, nem votam, perpetuando pessoas, ideologias e partidos que atravancam um consistente desenvolvimento social, econômico e ambiental da cidade e do estado.

Ainda bem que os burros não costumam reclamar...