terça-feira, 31 de agosto de 2010

O niilismo político


Durante a visita feita à Bienal do Livro de São Paulo, ocorrida neste mês, entre as muitas campanhas publicitárias que se desenvolviam no local, um candidato à reeleição ao cargo de deputado federal pelo estado de São Paulo, em pessoa, promovia, também, sua campanha política. Junto a alguns correligionários, panfletava na calçada para os apressados transeuntes e para os passageiros que aguardavam na fila do ônibus gratuito que os levaria do Anhembi à estação do Metrô mais próxima. Alguém ali, ao notar a presença do político, fez o seguinte comentário a uma das meninas que ajudavam na panfletagem: "Aqui, pelo menos, eles [os políticos] trabalham, né?!".

É bem verdade que a classe política anda bastante desacreditada e há motivos de sobra para que isto esteja acontecendo. Mas, é igualmente verdade que toda generalização é burra. Essa espécie de niilismo político nada tem de útil para a construção de uma nação melhor e mais justa. Muito pelo contrário, serve, justamente, para manter privilégios de quem nunca os mereceu possuir. Alguém que valha a pena ser eleito jamais compraria votos ou faria acordos espúrios em troca deles; quem não vale a pena, sim. E à medida que bons e maus são jogados na mesma vala comum, os últimos se dão melhor porque conseguem os votos necessários se utilizando de meios sórdidos que nunca seriam cogitados pelos primeiros. Por qual outro motivo, pensa o leitor ou a leitora, tantos escândalos apareceriam, exatamente, na época das eleições?

Aquele comentário, desrespeitoso e cheio de preconceito, deixa claro que parte da sociedade precisa ser, urgentemente, chamada à responsabilidade, pois se a situação da classe política chegou ao nível atual, não foi por causa dos maus políticos, mas, sim, por causa dos maus eleitores que os elegeram ou se omitiram, permitindo que fossem eleitos. A tempo, o fato do candidato escolhido não ter sido eleito também não legitima, em hipótese alguma, o boicote ao seu governo por parte dos cidadãos, simplesmente, porque a sociedade é a mesma, antes e depois das eleições. Trabalhar para que as coisas piorem, só porque foi o outro candidato quem ganhou, é uma atitude infantil e absolutamente irresponsável para com as demais pessoas, inclusive, para com os próprios descendentes.

Da próxima vez que lhe chegarem com um papo de que "políticos são todos iguais", pergunte à pessoa o que ela tem feito para mudar o cenário e se admire com as respostas...


segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Corações Sujos


Estima-se que hoje, no Brasil, vivam mais de 1,5 milhão de descendentes japoneses. É, de longe, o país que abriga a maior colônia japonesa em todo o planeta. Oficialmente, os primeiros imigrantes chegaram por aqui no princípio do século XX, trazidos pelo histórico navio Kasato Maru. Com sonhos de enriquecer e voltar para sua terra natal, os imigrantes trabalharam duro e com singular dedicação, entretanto, apesar de muitos terem, de fato, atingido o tão almejado sucesso econômico, poucos retornaram ao seu país de origem. Após algum tempo, acabaram por se tornar mais brasileiros do que japoneses e, como tantos outros imigrantes, ajudaram a forjar o povo desta imensa nação brasileira.

Poucos atentam, entretanto, às agruras experimentadas pela comunidade japonesa no Brasil, principalmente na época da Segunda Grande Guerra, período em que o Japão passou a integrar as forças do Eixo, junto com a Alemanha nazista e a Itália fascista. Quando em agosto de 1945 os japoneses — cuja nação, em 2600 anos, jamais havia perdido uma guerra — assinou sua rendição incondicional após o massacre nuclear estadunidense, muita gente não acreditou, em especial os kachigumi (ou "vitoristas"), compostos por cerca de 80% dos mais de 200 mil imigrantes japoneses no Brasil àquela época. Estes passaram a apoiar uma organização criminosa chamada Shindo Renmei (ou "Liga do Caminho dos Súditos") que decidiram fazer uma "limpeza ideológica" na colônia, assassinando os makegumi (ou "derrotistas"), apelidados por eles de "corações sujos", que acreditavam na derrota do Império japonês. Assim, entre janeiro de 1946 e fevereiro de 1947, os tokkotai, matadores da Shindo Renmei, promoveram atentados em várias cidades do estado de São Paulo, matando 23 e ferindo cerca de 150 imigrantes.

É esta a emocionante história, real, que Fernando Morais relata em seu livro "Corações Sujos" (2000), editado pela Companhia das Letras. Conhecido por outras grandes obras, como "Olga" (1985) que conta a saga da militante comunista Olga Benário Prestes, o autor mineiro apresenta vários fatos relacionados às ações da seita nacionalista que aterrorizou a colônia japonesa no Brasil após a Segunda Grande Guerra. O livro traz também uma coleção de fotos, cópias de documentos e reportagens, além de transcrições de alguns dos ameaçadores bilhetes atribuídos a Shindo Renmei. O excelente trabalho de pesquisa de Fernando Morais, que tem obras publicadas em mais de dezoito países, é uma ótima referência para quem se interessa por ciências humanas, para os descendentes nipônicos que desejam saber mais sobre a história de seus antepassados no Brasil ou para qualquer outro "gaijin" mais curioso.

Pode-se descobrir, também, ao final da leitura, que a realidade, às vezes, se parece muito com a ficção.

domingo, 29 de agosto de 2010

O Silêncio


Quem já experimentou ficar em algum lugar muito silencioso deve ter percebido uma estranha sensação. Parece que falta algo... Na realidade, lutar contra os ruídos tornou-se tão comum que, quando não é necessário, chega a causar um certo estranhamento. Ademais, os ruídos vão além de sua natureza sonora e perturbam, também, aspectos visuais, sociais, etc. E quando tudo está em silêncio, é a sutileza que fala, dizendo coisas muito mais profundas do que se pode extrair da algazarra diária...


sábado, 28 de agosto de 2010

Liberdade como utopia


Como qualquer outra criação humana, os sistemas político-econômicos nunca são perfeitos. Cada qual com suas peculiaridades, prós e contras, disputam, incansavelmente, a posição de melhor opção dentre todas as existentes. Em uma selva de concepções filosóficas, sobrevivem as ideologias mais fortes e que melhor se adaptam às "contingências ambientais" e, como em um excêntrico darwinismo ideológico, acabam, também, evoluindo gradativamente. E apesar de descendentes dos vários ideários ainda serem encontrados até hoje ao redor do mundo, o fato da lógica democrático-capitalista chegar à hegemonia na atual sociedade globalizada parece ser indiscutível.

Quase duas décadas após o final da Gerra Fria, ainda se discute os efeitos da polarização mundial entre os dois sistemas mais relevantes do mundo contemporâneo: o capitalismo e o socialismo. Ambos se destacaram dos demais, não por apresentar as soluções mais adequadas entre todas, mas por arregimentar a maior quantidade de pessoas em torno de seus próprios princípios, permitindo que se estabelecessem ao longo do período histórico. E a despeito da condição hegemônica do capitalismo, nenhum dos regimes saiu incólume dessa polarização; evoluíram. O capitalismo, hoje, possui várias facetas do socialismo, e vice-versa, distorcendo muitos dos próprios fundamentos primordiais — exemplo patente é a recente discussão sobre ampliação de benefícios sociais e auxílio estatal à saúde pública estadunidense, ou a adaptação da China socialista à nova ordem econômica mundial.

Sabe-se que um dos principais pontos de divergência, entretanto, repousa sobre o controle estatal da economia que, para os capitalistas, deve ser mínimo e, para os socialistas, máximo. Os primeiros alegam que o controle estatal excessivo tolhe a liberdade dos indivíduos, uma vez que restringe a diversidade de opções. Os segundos defendem que a falta de controle permite o privilégio de uns em detrimento de outros. Mas, considerando o número de países capitalistas existentes hoje em dia, pode-se dizer que a visão dos primeiros foi melhor aceita pelas pessoas, afinal, a liberdade é um direito fundamental do ser humano. O que pouca gente explica, no entanto, é que essa liberdade é utópica, simplesmente porque é condicionada ao capital. Se não acredita, tente se alimentar, morar ou transitar (especialmente nas excelentes e caríssimas vias pedagiadas do estado de São Paulo) sem ter dinheiro suficiente.

Não se assuste se constatar que, em um regime capitalista, sua liberdade é tão utópica quanto aquela sociedade sem classes de outros regimes...


sexta-feira, 27 de agosto de 2010

A cama


"O dia amanhecera agradável, apesar do frenético ruído gerado pelo movimento viário antes mesmo das seis da manhã. O sol, que ainda se espreguiçava entre as franjas cinzas do horizonte urbano, prometia mais um dia quente e seco, típico do final de inverno paulistano. Mas, a despeito da baixa umidade relativa do ar — associada à poluição — que maltratava os organismos habitantes da cidade, a estiagem acabava sendo a melhor opção para cidadãos que eram obrigados a se submeter, diariamente, às intempéries. O homem que dormia rente a uma das enormes pilastras, sob o elevado por onde passava o trem metropolitano, era um exemplo típico de alguém que sempre torcia para que a estação das chuvas não chegasse tão cedo.

Sentindo o nariz impregnado pelo forte cheiro de fumaça dos veículos e os ouvidos inundados pelo fluxo sonoro da cidade em movimento, não viu outra alternativa senão despertar de vez. Tomou um gole d'água para disfarçar a fome que sentia desde a noite anterior e já estava pronto para mais uma luta diária pela própria sobrevivência. Apesar do incômodo nas manhãs dos dias úteis, aquele lugar que encontrara — protegido por baixas muretas de concreto e entre duas grandes avenidas — vinha lhe servindo bem como abrigo para pernoitar. Ajeitou os papelões que com custo conservava para servir de cama, reuniu os poucos pertences e saiu para ver se conseguia o almoço em troca de alguma tarefa que pudesse realizar durante o dia. Depois das inúmeras e infrutíferas tentativas de arranjar um trabalho fixo, passou a contar diariamente com o auxílio de alguns conhecidos que o remuneravam, sempre que possível, por trabalhos realizados esporadicamente.

Percorreu as vilas próximas durante umas boas horas antes de conseguir o almoço em troca de seu auxílio, por quase todo o dia, em uma horta comunitária. Cansado, retornou para o local de seu dormitório já no final da tarde e encontrou uma gari da prefeitura terminando de varrer o lugar. Como não viu nada no chão, correu até ela e perguntou exasperado:

— Senhora, senhora... Minha cama, cadê minha cama?
— Cama?! Que cama? Não tinha nada aqui! Apenas uns papelões velhos que o caminhão da prefeitura já levou...

O homem sentiu um vazio no peito e os olhos lhe pareceram, de súbito, mais confortáveis com as lágrimas que ameaçaram se formar. Apenas sorriu, agradeceu a informação e voltou correndo para ver se ainda achava o comércio da vila mais próxima ainda aberto. Quem sabe, se tivesse a sorte, acharia novamente um papelão grosso para dormir no mesmo local que, pelo menos, havia sido limpo naquela tarde.
"


quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Sabe com quem está falando?


Segundo reportagem da Folha de São Paulo veiculada hoje, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) "condenou os bancos a pagar a correção monetária da poupança de quatro planos econômicos das décadas de 1980 e 1990: Bresser (1987), Verão (1989), Collor 1 (1990) e Collor 2 (1991)". Até aí, tudo normal, afinal, durante todo o período o dinheiro ficou à disposição das instituições bancárias para usá-lo e multiplicá-lo com maestria. Acontece que na mesma sentença o tribunal decidiu, também, "reduzir de 20 para 5 anos o prazo para que os correntistas entrassem na Justiça com ações coletivas". Com este pequeno "ajuste", "os bancos derrubam 1.015 das 1.030 ações coletivas que correm na Justiça. Essas ações negadas representam 99% dos 70 milhões de contas de poupanças que teriam direito à correção (...)".

Inacreditável, não?! Mas é verdade. Some-se a isso outro importante detalhe: "a causa dos bancos tem apoio do BC [Banco Central] e do próprio governo, controlador do BB [Banco do Brasil] e da Caixa [Caixa Econômica Federal], banco que mais perde com as correções.". Segundo os bancos, que em 2009 entraram com uma ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) no Superior Tribunal Federal (STF) para tentar resolver de uma vez por todas a questão (a favor deles, claro!), "a disputa causa instabilidade jurídica e ameaça a solvência do sistema financeiro.". A preocupação tem motivo, já que o valor total da dívida estimada pelo BC e pela Fazenda bate na casa dos R$ 105 bilhões.

Entretanto, para se ter uma noção mais nítida da situação, talvez seja útil a informação de que o BC, só no primeiro semestre deste ano, praticamente dobrou o lucro que registrou em todo o ano passado, ultrapassando a casa dos R$ 10 bilhões. No mesmo período, os bancos lucraram alguns bilhões de reais a mais do que TODO o setor de petróleo e gás brasileiro, o que inclui todos os negócios da gigante Petrobras, firmando-se, com folga, como a atividade mais lucrativa do país.

Quem sabe agora esses pretensiosos cidadãos que desejam reaver o valor que lhes foi subtraído de suas economias saibam, exatamente, com quem estão falando...


quarta-feira, 25 de agosto de 2010

A tribologia


Tente empurrar um carro sem rodas e tenha um vislumbre dos fenômenos estudados pela tribologia, este ramo da ciência e tecnologia que lida com o contato relativo entre superfícies. A etimologia do termo indica que a palavra nasceu da união de dois afixos gregos: "tribo" que significa esfregar, atritar ou friccionar e "logos", significando área de estudo. O campo reúne vários conceitos de matemática, física e química aplicadas, especialmente aqueles relacionados às engenharias mecânica, metalúrgica e de materiais, compreendendo fenômenos ligados à fricção, lubrificação e desgaste. A tribologia busca compreender e modelar os mecanismos relevantes envolvidos na interação estática ou dinâmica entre superfícies, objetivando a previsão e o controle de suas consequências.

Obviamente, o exemplo do carro sem rodas é grosseiro e meramente ilustrativo. Os estudos tribológicos se concentram em um universo nanométrico (1 nanômetro = 1/1.000.000.000 m = 1/1.000.000 mm) onde sutis modificações estruturais no material podem resultar em propriedades físico-químicas absolutamente diferentes. É possível compor estruturas multicamadas com distintos materiais para se obter uma propriedade peculiar — um bom exemplo é a aplicação de uma camada de cromo metálico sobre um aço ligado a fim de promover a adequada adesão de uma camada cerâmica mais superficial, como a de nitreto de cromo (CrN), conferindo à peça uma excelente resistência ao desgaste e alta durabilidade. Por outro lado, pode-se também investigar alterações nos materiais para que se evite a formação de alguma camada entre as superfícies durante a interação — como as que aparecem entre as pastilhas e os discos de freios de alto desempenho, diminuindo o atrito e, consequentemente, prejudicando a frenagem.

Na sociedade moderna, é cada vez mais importante, e comum, o uso racional dos recursos disponíveis. Assim, ao controlar mais precisamente fenômenos como atrito, corrosão, desgaste, etc., torna-se possível, também, diminuir o consumo de energia, minimizar períodos de manutenção, poupar recursos não-renováveis, melhorar o desempenho de equipamentos, entre muitos outros benefícios. Alguns estudos, aliás, revelam um fabuloso potencial para efetiva redução de custos e consequente aumento na margem de lucro — só nos EUA, por exemplo, calcula-se que os custos gerados, direta e indiretamente, pelo atrito e desgaste de componentes e sistemas mecânicos ultrapassem os US$ 100 bilhões por ano (Blau, P. Tribology.). Não por acaso, a engenharia de superfície vem crescendo significativamente nas últimas décadas em vários países do mundo.

A "tribo" dos tribologistas ainda deve dar muito o que falar...

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Ouvir e falar


Miss Lucy R., uma inglesa de 30 anos, apresentava uma rinite supurativa cronicamente recorrente quando, em 1892, foi encaminhada ao Dr. Sigmund Freud (1856-1939) devido a curiosos sintomas que desafiavam o repertório clínico do médico que a tratava anteriormente (Freud, S. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 2. p. 134-150.). Era acometida por uma insensibilidade da mucosa nasal interna, bem como a ausência de reação a estímulos provenientes de odores fortes — tais como o de amoníaco, por exemplo —, embora algumas peculiares e subjetivas sensações olfativas a perturbassem insistentemente. A jovem, que trabalhava como governanta na casa de um diretor-gerente — viúvo e pai de duas meninas — de uma fábrica próximo à Viena, apresentava, também, um quadro depressivo havia algum tempo. Freud já desconfiava de sintomas de natureza histérica e tratou de investigar as origens objetivas por meio de uma longa conversa com a paciente, cuja duração, inicialmente prevista para um único encontro, estendeu-se por várias sessões.

Apesar da incapacidade de sentir quaisquer odores, a paciente se dizia perseguida por um cheiro de pudim queimado que, claramente subjetivo, foi logo tomado como ponto de partida para a investigação do trauma associado àquele quadro clínico. A cena descrita pela paciente, na qual o odor surgia pela primeira vez, envolvia uma espécie de brincadeira feita com ela pelas crianças que a impediram de abrir, imediatamente, uma carta de sua mãe, justamente em um momento que se encontrava inclinada a retornar à sua terra natal, a Inglaterra. Nesta ocasião, o pudim que estava assando queimou e o cheiro, desde então, jamais a abandonara. A cena talvez tivesse passado desapercebida não fosse a menção de um mal-estar entre ela e as demais empregadas da casa que a acusavam de, "supostamente", almejar uma posição acima da sua, ou seja, a de esposa e mãe adotiva das crianças do diretor-gerente. Analisado todo o contexto da situação, Freud logo conclui que, de fato, ela deveria estar apaixonada pelo seu patrão, suspeita que, surpreendentemente, é confirmada de imediato pela própria Miss Lucy.

Após ter admitido seus sentimentos, antes reprimidos, para Freud e, finalmente, para si mesma, Miss Lucy apresentou uma sensível melhora no seu quadro clínico geral — nada que já não fosse, de certa forma, previsto pela embrionária ciência psicanalítica daquela época. Uma sutileza do processo, entretanto, merece ser destacada, algo que seria posteriormente conceituado por Freud como fruto da transferência (entre a paciente e o analista), mas que pode ser tranquilamente extrapolada para nossas relações pessoais cotidianas. Embora a informação transmitida por Freud à sua paciente — o amor ao patrão — fosse exatamente a mesma que alimentara a intriga das demais empregadas na casa, sua recepção por Miss Lucy foi absolutamente diversa nos dois casos. A mesma informação que, sob o tom acusatório das colegas, auxiliou na consolidação do trauma, desencadeando uma série de efeitos patológicos, também foi o princípio da cura quando verbalizada pelo psicanalista.

Além de um clássico caso psicanalítico, a história de Miss Lucy, R. poderia ser, também, uma grande lição sobre relacionamentos interpessoais...


segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Quem não se comunica...


Dizem alguns estudiosos que menos de 10% da comunicação se deve, efetivamente, às palavras utilizadas (Mesquita, R. M. Comunicação não-verbal: relevância na atuação profissional. In: Revista paulista de educação física. São Paulo: jul./dez. 1997. v. 11(2). p. 155-63.). Mais de 90% do que é comunicado em um diálogo, face-a-face, deve-se a outros fatores como postura, gestual, entonação de voz, etc., que, no geral, não são conscientemente controlados ao longo do processo. Assim, considerando que quase a totalidade da informação trocada entre os indivíduos, é passada por mecanismos alheios ao controle lógico-objetivo, não é necessário ser um especialista para inferir o gigantesco abismo de compreensão existente entre semelhantes. Aliás, a despeito do alto grau de dificuldade envolvido nas comunicações, pode-se dizer que é quase um milagre que as pessoas ainda consigam se entender pela fala ou pela escrita.

Além da questão envolvendo a transmissão de uma determinada ideia ou conceito à outra pessoa, há mais um grande obstáculo que é a tradução, em palavras, das próprias emoções, sentimentos e demais sensações abstratas, frequentemente essenciais à compreensão daquilo que se deseja comunicar — tarefa que requer habilidades humanas nada triviais. Todos esses fatores combinados explicam, se não todos, boa parte dos conflitos entre indivíduos, além das diversas incompreensões de autores, intelectuais, poetas, artistas, etc. Poder-se-ia asseverar — mesmo sendo demasiadamente audacioso fazê-lo sem embasamento científico — que se as consciências pudessem se comunicar diretamente, ou seja, se um interlocutor pudesse ser o outro, ainda que por um instante, as discussões e incompreensões, simplesmente, não existiriam.

Mas, talvez o pior problema em toda dinâmica comunicativa seja a retroalimentação da mensagem durante um diálogo. Quando alguém diz algo para outra pessoa, espera uma certa reação que, se ausente ou muito distinta da prevista, desorienta o emissor da mensagem. Um efeito similar pode ser verificado em um experimento em que a mãe, interagindo com seu bebê, subitamente para de responder aos estímulos da criança — como, por exemplo, ao manter uma face neutra, sem expressão, enquanto o bebê sorri para ela. Percebendo a não-correspondência de sua mensagem, o recém-nascido reage, às vezes de forma desesperada. E uma escala diferente, o mesmo ocorre entre adultos quando, por exemplo, alguém mais emotivo espera uma reação impulsiva, mas é surpreendido pelo silêncio do outro. Enquanto a compreensão do primeiro é de que suas exasperações não significaram nada, pode ser que para o segundo, o silêncio seja a prova cabal de que aquelas palavras tocaram fundo sua alma.

Quando o saudoso Abelardo Barbosa (1917-1988), o Chacrinha, dizia: "Quem não se comunica, se trumbica!", todo mundo pensava que era só piada...


domingo, 22 de agosto de 2010

Haikai da guerra



Por incrível que pareça, agosto já vai terminando e as flores começam, tímidas, a dar o ar de sua graça em alguns pontos da cidade. Trata-se do prenúncio de uma guerra a ser travada pelas tropas floridas da primavera que devem aportar por aqui em setembro. As variadas cores lutarão bravamente, em várias frontes, contra o regime autoritário do cinza urbano e, ao menos por algum tempo, devem sobrepujá-lo, instituindo uma nova ordem na cidade: a da beleza. Pena ser tudo tão fugaz quanto as pétalas de uma flor...


sábado, 21 de agosto de 2010

Utopias...


Utopia. Segundo Houaiss (2001), o termo se refere a "qualquer descrição imaginativa de uma sociedade ideal, fundamentada em leis justas e em instituições político-econômicas verdadeiramente comprometidas com o bem-estar da coletividade" ou, por extensão de sentido, "projeto de natureza irrealizável; ideia generosa, porém impraticável; quimera, fantasia". A palavra já foi um neologismo no início do século XVI, quando Sir Thomas More (1480-1535) — hoje santo canonizado pela Igreja Católica — escreveu seu livro Utopia (1516), no qual descrevia uma ilha imaginária que abrigava uma sociedade perfeita. A etimologia do termo indica sua formação pela união de dois radicais gregos: ou (do advérbio de negação) e tópos (lugar), significando "em lugar nenhum".

Posteriormente, outros pensadores, como o filósofo alemão Ernst Bloch (1885-1977) e o sociólogo húngaro Karl Mannheim (1893-1947), desenvolveram ainda mais o significado do termo, atribuindo-lhe a um projeto de organização social alternativa capaz de apontar potencialidades concretas e realizáveis que poderiam contribuir para a transformação da ordem política instituída (Houaiss, 2001). Com o passar do tempo, o senso comum acabou adotando o termo como sinônimo de qualquer coisa ideal, inatingível, impossível de ser concretizada e, talvez por isso, as utopias começaram a ser consideradas devaneios inúteis em um mundo prático como o atual.

As utopias, entretanto, são absolutamente fundamentais para o desenvolvimento humano — como rapidamente mencionado no texto "O real e o utópico". São as utopias que fornecem a direção, o norte, a orientação para onde se deve seguir. Sem as utopias, o esforço de melhoria perde o sentido porque se corre o risco de assumir "o melhor" como sendo o estado final. Não fosse a utopia do determinismo científico, talvez os esforços na busca por mais explicações sobre os infinitos fenômenos já teria esmorecido. Por que razão, então, tanta relutância em se discutir utopias sobre regimes políticos, relações sociais, sistemas econômicos, etc.?

Parafraseando um general romano (106-48 aC.) que repetia para seus amedrontados marinheiros "Navigare necesse; vivere non est necesse." ou, em português, "Navegar é preciso; viver não é preciso." (Bachinski, C. Sic est in proverbio - Assim diz o provérbio. Juruá Editora, 2006. p. 93), poder-se-ia, com relação  às utopias, dizer: "Sonhar é preciso; ver realizar não é preciso."...


sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Ecologia urbana


Segundo reportagem do O Globo, entrou em vigor, recentemente, uma nova lei na Cidade do México, proibindo os comerciantes de fornecer, gratuitamente, sacolas plásticas a seus clientes. A lei que prevê multas entre 7.460 a 1.149.200 pesos mexicanos e até prisões de até 36 horas para quem a descumprir, também estabelece que apenas sacolas plásticas biodegradáveis poderão ser vendidas na capital mexicana. A medida, dessa forma, pretende reduzir o consumo e, obviamente o descarte, de um volume estimado em vinte milhões de sacolas plásticas por dia. A Lei dos Resíduos Sólidos foi aprovada em agosto do ano passado, prevendo o período de um ano para adaptação.

Não há como negar que a medida é um tanto ousada — e estranha — para um país que está entre os dez maiores produtores de petróleo do planeta. Independentemente disso, a notícia vem em muito boa hora. Vinte milhões de sacolas plásticas a menos, por dia, no meio ambiente pode parecer pouco em um contexto global, mas, sem dúvida, fará grande diferença no longo prazo. No início de 2008, a China também lançou mão de uma proibição similar. Lá, entretanto, o volume de sacolas plásticas descartáveis chegava a astronômica cifra de três bilhões de unidades diárias — uma verdadeira ameaça ambiental e um absurdo desperdício de recursos escassos.

O que se pode lamentar, entretanto, é que ainda haja a necessidade de governos criarem esse tipo de lei. Qualquer cidadão ou cidadã, consciente da importância ecológica para o planeta, é absolutamente livre para se negar a receber uma sacola plástica descartável que lhe ofereçam sem real precisão — não deveria haver necessidade de se criar uma legislação específica para algo, assim, tão banal. Mas, confronte essa ideia com a de alguns comerciantes da mesma Cidade do México que vêm declarando a disposição de, deliberadamente, desrespeitar a nova lei.

Quem sabe algum dia, também, outras idiossincrasias, como recolher a sujeira dos próprios cães levados a passear nas ruas da cidade, possam ser naturalmente estabelecidas, não havendo a necessidade de se criar leis para punir proprietários mal-educados...

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Automorfo

"In matematica si dice numero automorfo o anche intero automorfo un intero positivo che nelle notazioni decimali ha il quadrato che presenta nella sua parte finale il numero stesso. Esempi: 5² = 25, 76² = 5776, 890625² = 793212890625." — Wikipedia
A passagem foi extraída da Wikipedia Italiana e, claro, não se poderia deixar de comentá-la por aqui. Mesmo para quem não sabe italiano, a universalidade da matemática permite compreender, sem grandes dificuldades, o que o texto quer dizer. Descreve um número automorfo, ou inteiro automorfo, como sendo aquele cujo quadrado apresenta, no final, o mesmo número que o originou. Por exemplo, ao se elevar o número 1 ao quadrado, ou seja, multiplicá-lo por ele mesmo (1 x 1), o resultado termina com o próprio número no final (1). O mesmo se passa com 25, cujo quadrado vale 625, ou com quaisquer outros exemplos mencionados no excerto. A propriedade pode ser verificada em uma série de outros números inteiros positivos.

Apesar dessa classe numérica existir em qualquer língua, desde que se compartilhe da mesma matemática, não parece ser muito mencionada em vários idiomas. Uma rápida pesquisa em qualquer mecanismo de busca na internet revela que o termo é usado principalmente em italiano e espanhol. Em português, os números com tal propriedade são chamados de automórficos, mas também não parecem ser muito discutidos, especialmente no Brasil. Talvez as funções automórficas, conceito desenvolvido pelo matemático, físico e filósofo francês Jules Henri Poincaré (1854-1912) para solucionar equações diferenciais lineares de segunda ordem com coeficientes algébricos, sejam mais conhecidas e úteis que seus primos numéricos.

Seja como for, apesar do nome deste "blog" não ter nascido do conceito de "número automorfo", a ideia tem tudo a ver com este veículo — além da própria curiosidade do fato, claro. Um ponto-de-vista diferente pode se agregar a outros e ampliar "quadraticamente" a visão de quem o conhece. Neste processo, a pessoa em si, embora maior, permanece essencialmente a mesma no final, tal como quando se quadra um número automorfo.

E se não servir para mais nada, o conceito de número automorfo pode, ao menos, esclarecer a saudação "automórfica", lá de cima, na apresentação do Automorfo: "Bem-vindo ao seu mundo!".

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

O cachorro falante


Em 1710, o filósofo irlandês George Berkeley (1685-1753), em seu "A treatise concerning the principles of human knowledge" escreveu:

"It is indeed an opinion strangely prevailing amongst men, that house, mountains, rivers, and in a word all sensible objects, have an existence, natural or real, distinct from their being perceived by the understanding. But, with how great an assurance and acquiescence soever this principle may be entertained in the world, yet whoever shall find in his heart to call it in question may, if I mistake not, perceive it to involve a manifest contradiction. For, what are the fore-mentioned objects but the things we perceive by sense? and what do we perceive besides our own ideas or sensations? and is it not plainly repugnant that any one of these, or any combination of them, should exist unperceived?" (Berkeley, 1710, p. 23-4)

No texto, Berkeley questiona a ideia da corrente realista de seu tempo que concebia uma verdade existente fora do sujeito, passível de conhecimento à medida em que é estudado. Como não há forma de se entrar em contato com o mundo real, a não ser pelas percepções captadas pelos nossos sentidos, é evidente que a realidade, ou a verdade, em que estamos imersos jamais poderá ser conhecida exatamente como é. Outros filósofos que o sucederam, entre eles Bertrand Russell (1872-1970), admitiram tal subjetivismo, mas consideraram que, apesar de aquilo que cremos ser o mundo real não passar de inferências sensoriais, tais impressões são a única matéria disponível pela qual o cientista pode estudar e conhecer a realidade externa ao indivíduo.

Fato é que um universo objetivo, simplesmente, não existe e admitir tal ideia não significa, em hipótese alguma, refutar o conhecimento científico acumulado pelo ser humano ao longo dos séculos. Entretanto, ao negar a existência de qualquer coisa que não pertença à esfera científica, lógica ou racional, parece ser um erro primário. É óbvio que admitir a existência de alguma irracionalidade, tampouco significa tomá-la como prova de inutilidade dos métodos de investigação filosófico-científicas — isto, igualmente, também seria um erro primário.

Talvez um exemplo ilustre melhor o ponto, como o usado por Joel Rufino em uma de suas aulas: "Se, por exemplo, um cachorro entra por aquela porta e nos dá bom-dia, não acreditaremos. Vemos e ouvimos o cachorro, mas não acreditamos: cachorros não falam" (Rufino, J. Chico Xavier x Bertrand Russell. In: Revista Caros Amigos. São Paulo: Editora Casa Amarela, maio de 2010. n. 158. p. 8.). Neste caso hipotético, o mais adequado talvez fosse admitir a existência do cachorro falante e se investigar as causas, os motivos ou, pelo menos, a validade do estranho acontecimento. Ignorar o cachorro simplesmente porque animais dessa espécie não falam parece ser bem pouco produtivo.

Menos produtivo ainda seria alguém que não estava na sala no momento tentar convencer todos os demais de que, mesmo eles tendo visto e ouvido o cachorro, aquilo nunca existiu...


terça-feira, 17 de agosto de 2010

A pedra


"O rapaz ia pisando firme pelo caminho, irado com os últimos acontecimentos em sua vida. Poucas coisas vinham ocorrendo da forma como ele, tão cuidadosamente, havia planejado e, não bastasse isso, os revezes ainda pareciam assumir propositadamente — como se isto fosse plausível — a pior configuração possível. E por mais que pensasse, não conseguia entender como tudo aquilo podia estar acontecendo. Tampouco podia se ver como responsável por qualquer uma daquelas dificuldades. Suas simulações mentais teimavam em apontar sempre um ou outro culpado pelos dolorosos percalços que vinha enfrentando. Afinal, como poderia, ele, ter previsto ações, assim, estapafúrdias de outrem.

Tão entretido estava com sua ruminação mental que não percebeu uma pedra que se aproximava. Topou com ela, caiu e se feriu em várias partes do corpo. Levantou de supetão, esbravejou, gritou, esperneou, chutou a pedra, cobriu-a com todos os impropérios conhecidos, enfim, extravasou todo o sentimento reprimido ao longo dos últimos dias. A pedra, como é do feitio das pedras, permaneceu ali, apenas, calada e inerte, sem esboçar a mínima alteração, até que a última gota de ódio do rapaz tivesse sido destilada contra ela. Cansado, ele se deixou cair sobre os próprios joelhos, começando a chorar.

Depois de alguns minutos, já recomposto, embora ainda dolorido, levantou-se e olhou para a pedra que, inabalável, permanecia exatamente no mesmo lugar. Aquela passividade, por um instante, remeteu-o a si mesmo e acabou por se arrepender profundamente de sua perda de autocontrole. Compreendeu, então, a lição que aquela pedra lhe ensinava: não importaria o que fizesse, nada poderia atingi-la. Mesmo que a destruísse, ela jamais deixaria de ser uma pedra por causa disso. Logo, fez como se pretendesse agradecer o ensinamento e seguiu seu caminho, agora bem mais calmo.

Já a pedra, sequer ameaçou se mover...
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segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Inoxidável?


Um aço inoxidável é, basicamente, o mesmo que um aço comum. A diferença fica por conta do maior teor de um dado elemento de liga, geralmente o cromo, que lhe confere a peculiar característica de não se oxidar. Mas, desde as saudosas aulas de química do colegial, sabe-se que o cromo é mais reativo que o ferro, ou seja, oxida-se mais facilmente em presença de oxigênio. O aparente paradoxo — o de usar um elemento que se oxida mais facilmente que outro para proteger a liga, justamente, da oxidação — pode ser explicado pela físico-química, área da ciência que estuda as propriedades físicas e químicas da matéria, bem como suas reações.

A reatividade do ferro, ou do cromo, com o oxigênio pode ser calculada segundo modelos termodinâmicos, resultando em um valor que mensura a energia envolvida na formação dos óxidos do metal em determinadas condições de pressão e temperatura. Por convenção, diz-se que quanto mais negativa for essa energia, mais reativo é o metal que compõe o óxido, maior é o potencial para a ocorrência da reação e mais estável é o produto final. A reação, entretanto, não necessariamente ocorre de forma espontânea, dependendo de outros fatores como energia de ativação e cinética (velocidade) favorável. E é exatamente na cinética de reação que está o segredo do aço inoxidável.

Sendo o cromo mais reativo, de fato, acaba por se oxidar preferencialmente ao ferro. No entanto, o óxido de cromo apresenta certas características — como transparência, flexibilidade e impermeabilidade — que propiciam a manutenção de uma película protetora capaz de impedir o prosseguimento da reação para além da superfície. Em outras palavras, a estável película de óxido formada na superfície cessa o fluxo de oxigênio, essencial à oxidação, interrompendo a cinética da reação. Não fosse o cromo, o produto final seria composto, predominantemente, por óxido de ferro que, por ser poroso, não possui a mesma capacidade de manter o oxigênio do ambiente longe do metal restante e, consequentemente, de interromper a oxidação.

Como se pode perceber, também na metalurgia, ir a favor da natureza — como, no caso, lançar mão de um metal que se oxida mais facilmente — pode dar ótimos resultados.


domingo, 15 de agosto de 2010

Passagem


Poucos não experimentaram as agruras da pressão para que certos prazos fossem cumpridos, desde um simples horário de partida de algum transporte coletivo até a data de conclusão de um grande projeto. De fato, o tempo é implacável e não espera por ninguém! Mas ao mesmo tempo que a urgência nos agride com uma espécie de "reminiscência inconsciente" do sempre limitado tempo de vida, pode também, muitas vezes, exagerar quanto às projeções das consequências de algum prazo perdido. Mesmo porque tais considerações são exclusivas do universo humano...


sábado, 14 de agosto de 2010

A flor


"Enquanto caminhava em meio ao mato alto a ser carpido, devaneava imerso no som monótono do cortador atrás de si. Seu patrão havia ordenado que ele e seus homens limpassem toda aquela área ainda antes do cair do sol, alegando que o campo, naquele estado, poderia dar a impressão de desleixo do seu proprietário a um transeunte qualquer que por aquelas bandas se aventurasse. Não entendeu, exatamente, qual o sentido daquela preocupação, uma vez que quase ninguém passava por ali e os poucos que se arriscavam dificilmente seriam capazes de associar a propriedade ao proprietário. Mas, pensava, o patrão devia saber de coisas que ele, de existência mais simples, jamais sonharia questionar.

De qualquer forma, sentia uma certa melancolia ao fazer aquele tipo de serviço. A apara da paisagem parecia macular, de alguma forma, justamente aquilo que pretendia limpar. Era como se estivesse invadindo, desnecessariamente, domínios alheios e impondo uma espécie de estética marcial no lugar. Contudo, era apenas um sentimento que, vez por outra, estranhava-lhe a alma. Logicamente, suas considerações deviam respeito àqueles que lhe proviam o sustento, que dialogavam com ele, enfim, seus semelhantes. Por que deveria se ocupar com subjetividades nascidas da relação incerta entre homens e plantas?

Seu olhar vago, então, ateve-se a uma única flor que desabrochara em meio ao matagal; parecia linda, ali. A cor vivaz e a delicadeza de suas pétalas contrastando com o verde desordenado do cenário, capturaram seu espírito por um instante, surpreendendo-o. Ao percebê-la, milhares de pensamentos pareceram surgir simultameamente na mesma fração de segundo, tal como deve ocorrer com quem, subitamente, percebe a inevitabilidade da morte chegar, avaliou. Aprochegou-se mais e se permitiu olhar, embevecido, aquele formoso capricho da natureza, quase que em um estado meditativo de consciência.

Logo, os ruídos do cortador se tornaram mais nítidos e teve de seguir inspecionando o campo que ainda seria limpo...
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sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Garantias Extraordinárias


Ao longo das últimas décadas, o Brasil vem experimentando importantes mudanças em toda sua economia, como a modernização de boa parte de seu parque industrial e as necessárias reformulações das estratégias competitivas de empresas nacionais, principalmente após a liberalização comercial adotada pelo governo brasileiro na década de 1990. A abertura comercial, ao invés de impactar as condições de oferta, acabou por fazê-lo pelo lado da demanda, contribuindo para o aumento da exigência, em termos de qualidade, dos consumidores nacionais.

Naturalmente, esse aumento da exigência dos consumidores brasileiros pode também ser percebido no varejo de bens duráveis, reforçando a idéia de que o padrão de consumo brasileiro se elevou ao longo dos últimos anos e, hoje, demanda produtos cada vez mais confiáveis e de melhor qualidade. Segundo Philip Kotler (Kotler, P. Administração de marketing: a edição do novo milênio. São Paulo: Prentice Hall, 2000. p. 68) resume o cenário atual dizendo que “Os clientes de hoje são mais difíceis de agradar. São mais inteligentes, mais conscientes em relação aos preços, mais exigentes, perdoam menos e são abordados por mais concorrentes com ofertas iguais ou melhores”. Com esse acirramento da competitividade no ambiente de negócios, além da qualidade dos produtos, outras estratégias, como a valorização da marca e a construção de relacionamentos de longo prazo com os clientes, também passaram a ser relevantes na busca das empresas por melhores resultados. Ainda segundo Kotler, “Tornar um número maior de clientes fiéis aumenta a receita” e a chave para isto é mantê-los satisfeitos.

Christopher W. L. Hart (Hart, C. W. L. Garantias extraordinárias: como criar um diferencial no mercado por meio de garantias. São Paulo: Pioneira, 1996.) afirma que se a política de oferecimento de uma garantia de qualidade, se disseminada na cultura da organização, poderia propiciar ganhos mercadológicos, atraindo novos clientes, bem como fidelizá-los através de uma ampla assistência de pós-venda que também geraria dados confiáveis para melhorar seus produtos e processos. O "pulo-do-gato" do modelo administrativo proposto por Hart seria o de beneficiar o cliente e punir a própria empresa ao máximo. Dessa forma, o primeiro teria a insatisfação minimizada e seria fortemente incentivando a fornecer o retorno de suas impressões com relação ao produto ou serviço prestado, ao mesmo tempo que a segunda seria "forçada" financeiramente a adequar seus processos na direção da excelência.

Infelizmente, na atualidade, há muito poucas empresas com verdadeiro interesse pela excelência. Aliás, pelo contrário, os valores empregados em um programa de garantia são normalmente classificados como “custos” e, conforme a definição contábil do termo, são somados ao preço de venda. O próprio consumidor acaba por pagá-los, portanto, como quaisquer outros custos do produto ou serviço.

O que Hart parece não ter levado em conta é que garantias extraordinárias só funcionam com empresas extraordinárias, algo cada vez menos comum ultimamente...

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Problemas e soluções


Um casal planeja uma viagem com grande antecedência. Conversam, cada qual com seu respectivo grupo de amigos, buscando por sugestões de lugares agradáveis e interessantes, enquanto acertam todos os detalhes nas respectivas ocupações para que ambos os períodos de férias coincidam. Antecipam alguns compromissos, adiam outros e, faltando uns poucos meses, já com a garantia de que teriam a possibilidade de desfrutar daqueles momentos juntos, decidem discutir sobre o melhor percurso a fazer na viagem. Ao conversarem, no entanto, descobrem que um deseja esquiar nas montanhas e o outro, tomar banho de sol e mar em uma ilha paradisíaca. Eis, então, o nascimento de um problema.

É bastante interessante notar a dinâmica com que os problemas aparecem e desaparecem no decorrer de nossas vidas. Exceção feita a restrições de ordem prática, como falta de recursos ou limitações físicas, boa parte das problematizações são, em geral, volúveis e resultam de meros conflitos de opinião. Suponha, no caso citado, ainda com a questão sobre o destino da viagem em plena efervescência, que ambos recebam a notícia, cada um do seu respectivo trabalho, que o período de férias planejado deverá ser frustrado devido a importantes eventos que tornarão suas presenças imprescindíveis, exatamente naquele período. Pronto! Lá se foi aquele problema de para onde ir viajar...

Qualquer pessoa, a princípio, age da forma que entende ser a melhor. Obviamente, como o modelo de realidade é absolutamente peculiar ao indivíduo, a "melhor forma" de um nem sempre coincide com a dos outros e é justamente nesta brecha que os "problemas" aparecem. Mas ao contrário do que possa parecer, a ocorrência dessas tensões entre opiniões diversas é saudável, pois abre espaço para o diálogo — fundamental para convivência em sociedade. É nesse compartilhar de visões sobre as "melhores formas" que se apura a realidade comum a todos. Logo, pode-se dizer que a inexistência de problemas não é, necessariamente, algo, assim, tão bom.

Um excelente exemplo disso é quando os "problemas" deixam de existir devido ao privilégio de um ou outro ponto de vista, causando a extinção do diálogo. Em um rígido sistema de doutrinas, por exemplo, não há qualquer problema referente ao que se pode, ou não, fazer. Quando alguém é dono da razão, também não. Dessa forma, junto com o "problema" desaparece, também, toda e qualquer possibilidade de aperfeiçoamento, tanto pessoal quanto coletivo. Este, sim, é um problema de fato.

E talvez não fosse só papo de auto-ajuda aquela história de todo problema ser uma oportunidade de melhoria...


quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Transparência alienígena


Ontem (10/08/2010), saiu uma publicação no Diário Oficial da União (DOU) na qual a Força Aérea Brasileira (FAB) define regras para lidar com informes sobre aparições e avistamentos de objetos voadores não identificados (OVNIs). Segundo a portaria, os oficiais ficam encarregados de receber, catalogar e remeter para o Comando da Aeronáutica, todos os registros referentes aos relatos de observação de OVNIs feitos pelos usuários de controle do tráfego aéreo. A partir desses registros, o Comando deverá preparar um documento específico a ser encaminhado ao acervo do Arquivo Nacional a fim de ser deixado disponível à população.

Segundo nota da FAB publicada no mesmo dia pelo Estadão.com.br/Ciência, a competência dos militares passa a se restringir ao registro histórico e encaminhamento ao Arquivo Nacional, já que não dispõem de infra-estrutura especializada para lidar com investigações científicas desse tipo de fenômeno aéreo. Trabalhos investigativos dessa natureza, entretanto, foram amplamente realizados, de forma secreta, à época da ditadura militar no Brasil, conforme reportagem da revista Istoé Independente comentada por aqui em "Orçamentos Universais.". A medida é um passo importante para aumentar a transparência, não apenas de assuntos relevantes para toda a humanidade, como também dos diversos destinos tomados pelos recursos públicos.

Atitude similar à do governo brasileiro tem sido verificada em diversos outros países, especialmente nos ditos desenvolvidos. Recentemente, o Reino Unido também publicou vários arquivos sobre avistamentos e investigações de OVNIs no espaço aéreo bretão. Em compensação, nos EUA, os registros sobre fenômenos ufológicos só têm sido divulgados por força de lei constitucional invocada por ações jurídicas movidas contra os serviços de inteligência do governo. Mesmo assim, os documentos têm sido publicados com diversos campos de informação deliberadamente ocultados. Seja como for, todos os governos, sem exceção, parecem revisar, minuciosamente, toda e qualquer informação a ser publicada a respeito do assunto, evitando que algumas, mais contundentes, saiam do controle estatal. O porquê disso, não se sabe.

E não se assuste se, qualquer dia desses, encontrar algum extraterrestre dando entrevista coletiva por aí...


terça-feira, 10 de agosto de 2010

Educação pela vida


Todo conhecimento adquirido pela vida é útil. Alguns mais, outros menos, mas, no geral, atendem à principal demanda que é organizar a existência de um indivíduo em seu meio. Se tudo o que uma pessoa aprende durante seu desenvolvimento não servisse de alguma forma, ela simplesmente não existiria, já não estaria mais compartilhando uma mesma realidade com os demais. Assim, não importa o quão incapaz alguém julgue o outro, a mera existência da pessoa é prova irrefutável de que seu jeito particular em lidar com a realidade que a cerca foi bem sucedido, pelo menos, até aquele momento. Desprezar todo esse aprendizado, além de um desrespeito com o semelhante, não é nada produtivo nem para quem aprende, nem para quem ensina e muito menos para a sociedade que se priva de melhorar ao longo desse processo.

O filósofo e educador Paulo Freire (1921-1997), por exemplo, sabia muito bem disso. Nos seus trabalhos com educação popular, fazia questão de usar todo o conhecimento prévio de seus aprendizes para otimizar o aprendizado daquilo que ensinava. Em seu livro "Educação como prática da liberdade", o autor não só relata vários casos de adultos analfabetos que aprenderam a ler e escrever em pouquíssimo tempo, usando seu método de trabalho, como, também, conclui que era ele próprio quem mais aprendia na interação. Outros autores, como Eduardo Garcia¹, também defendem a ideia de transformar — ao invés de desprezar — os conhecimentos adquiridos no cotidiano. Sugerem que a educação formal, ou científica, seja construída — e não imposta — sobre o conjunto de conhecimentos prévios de cada indivíduo.

Há quem tenha uma impressão equivocada sobre esses conhecimentos do cotidiano, considerando que se referem apenas a situações simples e comuns do dia-a-dia, tal como trocar o pneu de um carro ou tirar a mancha de um tecido. Entretanto, seu repertório abrange, também, situações extremamente complexas como lidar com as relações sociais ou escolher os melhores candidatos a cargos públicos para votar. Nota-se, portanto, que o conhecimento do cotidiano, apesar de menos delimitado e organizado conceitualmente, quando comparado ao científico, apresenta um alto valor porque lida com situações difíceis e incertas, não podendo ser, desse modo, simplesmente descartado.

Afinal, o objetivo é que aprendamos a fazer melhor ou a fazer como os outros acham melhor?


¹ Garcia, E. A natureza do conhecimento escolar: transição do cotidiano para o científico ou do simples para o complexo. In: Rodrigo, M. J.; Arnay, J. (Org.) Conhecimento cotidiano, escolar e científico: representações e mudança. São Paulo: Ática, 1999.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Grande Guerra Marítima


Cerca de quarenta anos depois da Segunda Grande Guerra Mundial, enquanto o mundo se encaminhava lentamente de volta a seu estado de civilidade, a Comissão Internacional da Baleia (CIB ou "The International Whaling Comision", IWC) decretava uma moratória de caça aos cetáceos para fins comerciais que se estenderia por pelo menos os 25 anos seguintes. Como o CIB nunca teve recursos para fiscalizar o cumprimento da determinação, várias organizações não-governamentais de proteção ao meio-ambiente que já faziam esse tipo de trabalho, entre elas o Greenpeace e o Sea Shepherd, passaram unir esforços e recursos disponíveis para, além de divulgar as caças ilegais ocorridas à revelia da comissão, impedir fisicamente as empreitadas dos navios baleeiros. Desde então, uma outra batalha, desta vez civil, vem sendo travada nos oceanos.

Uma brecha na moratória, permitiu que alguns países mantivessem seus níveis de caça alegando propósitos científicos. Segundo o Sea Shepherd, Japão, Noruega e Islândia já mataram mais de 25 mil baleias desde 1986, quando a suspensão da caça foi declarada. Uma das razões para a moratória é que, com ciclos de vida relativamente longos, muitas das espécies já foram extintas e outras tantas correm sério risco de extinção como a Baleia-azul e a baleia-minke. Ainda de acordo com a organização, também nas Ilhas Feroe, uma nação constituinte do Reino da Dinamarca, são promovidos diversos massacres desses animais como o que, recentemente (19/07/2010), ceifou a vida de 236 baleias-piloto, espécie considerada estritamente protegida pela Convenção Europeia de Proteção à Vida Selvagem.

Com o adiamento da decisão sobre a moratória no CIB, o assunto ainda deve se arrastar por mais algum tempo e a matança "para-fins-científicos" deve continuar somando, oficialmente, cerca de 900 animais pelo Japão, algo em torno de 450 pela Noruega e mais algumas centenas pela Islândia. Enquanto isso, os defensores das baleias se esforçam para desmascarar as intenções por detrás das posições dos Estados. Segundo o Greenpeace, por exemplo, dois de seus ativistas japoneses, Toru Suzuki e Junichi Sato, podem ser presos, sem o benefício da suspensão de pena, sob a acusação de terem entrado ilegalmente em uma empresa transportadora e roubado uma caixa com carne de baleia. A real motivação do processo, entretanto, pode ter sido um pouco diferente, já que ambos os ativistas expuseram, algum tempo antes, um esquema de corrupção envolvendo membros do governo japonês e a empresa que detém a frota baleeira.

No início deste ano, o navio Ady Gil da Sea Shepherd Conservation Society, com seis tripulantes, foi abalroado e afundado pelo baleeiro japonês Shonan Maru 2, durante uma ação dos ativistas para impedir as operações de caça do baleeiro. O comandante do barco atingido, Peter Bethune, 45, foi preso e levado para o Japão onde foi julgado e condenado à dois anos de prisão, convertidos em condicional, por ter agredido e obstruído a missão baleeira japonesa — curiosamente, nenhuma palavra oficial foi dita a respeito do capitão do Shonan Maru 2 que investiu contra uma embarcação menor, afundando-a e colocando em risco a vida de seis pessoas.

O que não deixa de ser irônico é o conflito aberto entre uma ONG estadunidense e o Estado japonês, sessenta e cinco anos depois do estrago causado pela Segunda Grande Guerra, com a diferença de que, agora, a noção de civilidade parece estar ao lado dos ocidentais...

domingo, 8 de agosto de 2010

Haikai do Sábio Navegador



Os navegadores mais experientes sabem que não devem nunca subestimar os perigos do mar. Aprenderam ao longo da vida — às vezes, a duras penas — que, por mais que planejem, a realidade sempre surpreende. Assim, ao invés de apenas elucubrarem indefinidamente, saem às águas, enfrentam seus medos e colocam suas teorias em prática, porque entendem que só o mar é capaz de ensiná-los o que, de fato, funciona ou não. Sabem que apesar da terra-dos-sonhos ser mais segura do que o mar-da-realidade, não têm outra escolha senão navegar...


sábado, 7 de agosto de 2010

Nosso tempo acabou!


Dr. Leonard Stern (Kevin Pollak) é um bem sucedido psicanalista, dono de uma vida rigidamente organizada e previsível. No seu cronograma, o mesmo tempo que falta para as amenidades da própria vida sobra para o tratamento de seus pacientes, cujas análises são conduzidas por anos a fio. Mas a súbita notícia de que lhe restam apenas seis semanas de vida altera dramaticamente sua rotina e seus métodos. Sob essa nova perspectiva, acaba por redefinir suas prioridades pessoais e a tratar seus pacientes com uma brutal honestidade, buscando ajudá-los, dentro do curto período de que dispõe, a superar as próprias dificuldades de uma vez por todas.

Esta é a história do curta-metragem "Our Time is Up" ("Nosso tempo acabou"), 2004, escrito, produzido e dirigido por Rob Pearlstein, um produtor estadunidense de televisão, com a colaboração de Pia Clemente e Loren Mendell. O filme, que também conta com a participação especial de Jorge Garcia da série Lost, recebeu a indicação ao Oscar de melhor curta-metragem em 2005. Apresentando um bom compromisso entre dois gêneros distintos, drama e comédia, o filme trata, com muito bom humor, de um tema caro a qualquer ser humano: a finitude da própria vida. Seus cerca de quinze minutos de duração conferem a necessária objetividade à produção, mas sem comprometer a profundidade da reflexão que o tema enseja.

Afinal, apesar das peculiaridades da história, o destino do Dr. Stern é idêntico ao de qualquer outro mortal. A única diferença é a consciência adquirida sobre a insuficiência do tempo de vida disponível para se dar conta de tudo o que se pretendia. Se fôssemos, talvez, mais cientes da inevitabilidade e da proximidade da própria morte, muitas das prioridades a que nos apegamos perderiam completamente o sentido. Se soubesse que lhe resta apenas uma semana de vida, faria as mesmas coisas que fará amanhã?

Aproveite enquanto seu tempo ainda não acabou!

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Uma questão nuclear


Esqueça, por um instante, a luta pelos direitos humanos, pela igualdade social, pela sustentabilidade econômica e ambiental, pela proteção a crianças e adolescentes, pelo direito das minorias, pela ética na ciência, pelo respeito aos idosos, pela tolerância étnico-religiosa, pela democracia, enfim, esqueça todo e qualquer conceito de civilidade humana. Caso não o faça, talvez não consiga entender o que aconteceu há exatos 65 anos atrás.

No dia 6 de agosto de 1945, às 8:15 h (GMT+9), o bombardeiro estadunidense B-29 ("Enola Gay") lançou a primeira bomba atômica ("Little Boy") usada contra seres humanos na história da humanidade. A bomba, carregando 60 kg de urânio-235, foi detonada há cerca de 580 m acima da cidade de Hiroshima, no Japão, para maximizar a área de destruição. Na ocasião, cerca de 80 mil pessoas — entre homens, mulheres e crianças — morreram imediatamente após a explosão e outras 70 mil ficaram severamente feridas e morreriam algum tempo depois. Outras centenas de milhares ainda morreriam ao longo dos anos subsequentes em decorrência dos efeitos da radiação — tal como a jovem Sadako Sasaki, 12, cuja história foi contada por aqui em "Origami". Porém, os EUA não consideraram a calamidade suficiente e, três dias mais tarde, lançariam uma segunda bomba atômica, agora de plutônio, sobre outra cidade japonesa, Nagasaki.

Assim, no dia 9 de agosto de 1945, às 11:02 (GMT+9), o bombardeiro estadunidense B-29 ("Bockscar") lançou a segunda bomba atômica ("Fat Man") usada contra seres humanos na história da humanidade. A bomba, carregando cerca de 6,4 kg de plutônio-239, foi detonada há cerca de 469 m acima da cidade de Nagasaki, no Japão, para maximizar a área afetada. Na ocasião, cerca de 40 mil pessoas — entre homens, mulheres e crianças — morreram imediatamente após a explosão e outras 35 mil ficariam severamente feridas e morreriam algum tempo depois. Outras centenas de milhares ainda morreriam ao longo dos anos subsequentes em decorrência dos efeitos da radiação. Porém, os EUA não consideraram a catástrofe suficiente e, planejavam novos ataques nucleares a outras cidades japonesas.

O Japão se renderia, incondicionalmente, três dias mais tarde, acabando com a justificativa para novos ataques, ou melhor, experimentos nucleares sobre a população de seu país. E após o final da guerra, muito pouco se falaria a respeito dos massacres nucleares e muito menos sobre seus únicos responsáveis. Mesmo no próprio Japão, evita-se responsabilizar qualquer nação que seja — tal como fica evidente logo na apresentação do "Nagasaki National Peace Memorial For the Atomic Bomb Victims".

Pronto! Agora que entendeu o que fizeram em agosto de 1945, pode voltar a se lembrar do que é ser humano...

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Ficção superficial


Se duas bolhas de sabão forem colocadas uma junto da outra, muito provavelmente, elas se atrairão até um ponto de equilíbrio, e uma interface plana se estabilizará entre elas. Eventualmente, esta mesma interface pode se desestabilizar e se romper, fazendo com que ambas as bolhas se unam em uma única bolha maior, com a mesma quantidade de ar das duas anteriores. Mesmo sem considerar qualquer modelo físico formal envolvido no fenômeno, o resultado é bastante intuitivo, especialmente para quem já brincou com bolhas de sabão na infância. Imaginar que algo similar aconteça com porções sólidas, entretanto, causaria um certo estranhamento e seria perfeito para um belo filme de ficção científica.

Tente imaginar, por exemplo, duas metades de uma esfera metálica sendo colocadas uma junto da outra. Se elas não forem magnéticas, provavelmente não se atrairão, muito menos se unirão formando uma única esfera — pelo menos é isto o que diz nossa intuição. Porém, rigorosamente falando, não é bem isso o que deveria acontecer se as superfícies planas das duas metades fossem absolutamente lisas e estivessem isentas de quaisquer elementos ou substâncias (ar, água, etc.) entre elas. Ao uni-las, nessas condições ideais, os átomos mais externos de ambas as metades se religariam, fazendo com que as partes se tornassem, novamente, uma única esfera.

Na vida real, no entanto, mesmo a superfície mais lisa produzida, sempre apresentará alguma rugosidade — relevo formado por picos e vales de material —, impedindo que as superfícies se unam perfeitamente. Ao se pressionar duas partes metálicas, uma contra a outra, a área que efetivamente resiste à pressão é cerca de apenas 10% da área total de contato entre as superfícies. Além disso, vários elementos e substâncias se depositam ou se adsorvem nas superfícies expostas, o que também impediria que as ligações atômicas do material se refizessem, mesmo que as superfícies fossem idealmente lisas. Tudo isso mantém a reintegração de um corpo sólido, pela simples reunião de suas partes, ainda no campo da ficção.

Mas talvez alguém pudesse se perguntar por que um engenheiro se dignaria a estudar algo que, na prática, não acontece. É que, tal como tantas outras coisas na vida, a relevância de algo depende do ponto de vista que se assume. Os efeitos da rugosidade superficial tem um impacto menor nas aplicações estáticas do que nas dinâmicas, como será visto em uma futura discussão sobre tribologia.

Por enquanto, basta atentar para o fato de que ficção não é algo, assim, tão superficial...


quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Pesados papéis


"A garota finalmente chegara para mais uma de suas diárias sessões de exercícios na academia. Atrasada, correu para o vestiário, trocou-se rapidamente e quando seguiu em direção aos aparelhos, seus velhos companheiros de quase todas as noites, o atendente a barrou:

— Desculpe-me, mas posso ver seu exame médico, senhora?
— Ah, tem isso agora?
— Sim, senhora! O item 1, alínea 3, do contrato de admissão é bastante claro: '... o livre uso dos equipamentos da academia fica condicionado à apresentação prévia de exame médico válido, emitido por esta instituição ou por profissional habilitado no Conselho Regional à escolha do frequentador.'...
— Ah, sim, é mesmo! Eu já entreguei quando me inscrevi, há algum tempo atrás.
— Mas a senhora o renovou no último ano?
— Não, acho que não...
— Então, sinto muito, senhora, mas não poderá usar os equipamentos enquanto o exame não for renovado.
— Mas eu venho aqui todo santo dia e nunca precisei disso...
— Desculpe-me, senhora, mas são as regras. A empresa começou a fiscalizar este item com maior rigor para segurança dos próprios usuários...
— Não, não tem problemas! Eu me responsabilizo, caso venha sofrer uma síncope!
— Impossível, senhora, sinto muito...

A garota saiu chutando a sombra e maldizendo, mentalmente, três gerações da família do, ou da, burocrata responsável pela perda de sua noite de exercícios. No dia seguinte, saiu mais cedo do escritório, passou no médico da própria academia para que não houvesse a menor possibilidade de questionamento quanto à validade do exame e seguiu pisando firme em direção ao funcionário da noite anterior. Entregou-lhe o papel, que foi arquivado em sua pasta pessoal, sem sequer ser lido, e ouviu o agradecimento e as boas-vindas do rapaz. Assim, seguiu tão decidida para a bicicleta ergométrica que sequer percebeu o haltere jogado no chão — situação comum desde a última troca da empresa terceirizada de limpeza e arrumação. Tropeçou, caiu e bateu com a têmpora direita na quina de aço do aparador de pesos. Não houve, sequer, tempo para o socorro.

No dia seguinte, a empresa se lamentou, publicamente, pela fatalidade e reiterou sua constante preocupação com a saúde e a segurança de seus clientes, apresentando a vasta relação de itens que requeria deles antes de permitir o acesso às suas instalações.
"


terça-feira, 3 de agosto de 2010

O real e o utópico


O casal passeava por entre as lojas, observando as vitrines, quando se deparam com um desses galãs de Hollywood estampado em um enorme anúncio publicitário. A garota, admirada, faz um comentário provocativo sobre os muitos atributos estéticos do modelo, ao que o rapaz, após olhar a foto, sorri e responde ser, ele próprio, muito melhor do que o outro do cartaz. A garota, já esboçando um princípio de gargalhada, arrisca perguntar em que se baseava aquela inusitada afirmação, questionamento que seu companheiro lhe responde de pronto: "Simplesmente, porque eu sou real!".

Idealizar pessoas, coisas ou situações parece ser uma tendência natural no ser humano e, apesar de não se restringir ao mundo publicitário, é nas campanhas comerciais que essa inclinação melhor se evidencia — os profissionais de publicidade sabem usá-la como ninguém. Ao anunciar um produto ou serviço qualquer, relacionam-no sempre a alguém, algo ou alguma situação "perfeita" que, na maioria das vezes, nunca existiu nem nunca existirá.

Não é na concepção do ideal, entretanto, que reside o problema da idealização — afinal, nada mais razoável do que aproveitar a única chance de uma divulgação para mostrar o melhor dos cenários possíveis —, mas na obsessão pela "realidade" do anúncio em detrimento de qualquer outra que se concretize na própria vida. Essa obsessão pelo perfeito, presente nas mais diversas situações da vida de um ser humano, é o que gera uma espécie de frustração permanente, seja no cumprimento de uma simples tarefa cotidiana, seja na busca ou manutenção de um relacionamento pessoal.

Talvez fosse o caso de se eliminar da perspectiva, simplesmente, tudo o que é considerado ideal ou utópico, mas acabar-se-ia perdendo, também, a motivação fundamental para seguir melhorando sempre naquela direção. Outra alternativa, embora aparentemente mais simples e um tanto difícil de se aplicar na prática, é a tolerância com relação às próprias limitações. O indivíduo tolerante raramente se frustra ao ter sua realidade confrontada com alguma idealização. A tolerância o faz reconhecer as próprias limitações, reconduzindo-o à realidade; faz com que — ao contrário da resignação — o indivíduo compreenda o estado das coisas, por como passageiro e mutável; mantém, também, o ideal como referência de forma a possibilitar um esforço de melhoria contínua.

Se aquele rapaz pensou em tudo isso, não se sabe, mas o fato é que, depois do episódio com o galã de Holywood, ele voltou a ser visto frequentando a academia...


segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Data venia


Qualquer cidadão ético, minimamente instruído, jamais compraria um número de sua própria rifa. E mesmo se fosse obrigado a fazê-lo, como no caso de não ter conseguido vender todos os números, tomaria uma série de precauções para garantir que o máximo possível de pessoas, especialmente de compradores com quem não mantém uma relação mais próxima, pudesse acompanhar o registro dos números faltantes e a apuração do resultado final. Faria tudo isto para garantir, de todas as formas possíveis, a lisura e a transparência do processo. Qualquer cidadão ético, minimamente instruído, sabe que, mesmo estando, ele próprio, absolutamente ciente da própria honestidade, quando há outras pessoas envolvidas, deve, além de possuir, também demonstrar sua retidão aos demais. Sabe que qualquer ato pouco transparente, ainda que involuntário, pode levantar suspeitas sobre suas intenções. Algumas instituições públicas no Brasil, entretanto, parecem não entender muito bem este princípio.

Pelo mesmo motivo do cidadão acima descrito, qualquer empresa privada, ao realizar uma promoção comercial, costuma estabelecer como regra precípua que nem seus funcionários, nem membros das partes organizadoras, participem do processo. Já em algumas instituições públicas, até hoje se mantêm o péssimo costume de — como se diz por aí — "colocar raposas para tomar conta dos galinheiros". Ao "sumir algumas galinhas", os responsáveis pela incompreensível situação ainda se indignam por terem a licitude de suas ações questionadas por um ou outro desavisado observador. Sabe-se que a grande maioria dos concursos públicos no Brasil são absolutamente lícitos e a transparência de seus procedimentos não deixam espaço para quaisquer questionamentos. Há outros, entretanto, que, quando não são alvos de fraudes declaradas, testam todos os limites das leis e normas existentes para, entre elas, encontrar formas de, digamos, flexibilizá-las.

Em meados de julho, a Polícia Federal indiciou 80 suspeitos por fraudar concursos públicos, entre eles, segundo a Folha de São Paulo de 16/07/2010, a segunda fase do exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em março deste ano, a prova para agente de Polícia Federal de 2009 e o concurso de auditor da Receita Federal de 1994. Neste ano, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG) vem tentando explicar ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) as razões de uma série de procedimentos deliberados pela instituição que acabaram culminando no pedido de impugnação do último concurso para magistrados substitutos no qual pouco mais de 20% dos aprovados foram confirmados, pelo próprio TJ-MG, como sendo familiares dos magistrados — inclusive do presidente da casa — e de demais membros do tribunal. Há alguns anos atrás, fortes rumores davam conta de que uma autarquia paulista teria aberto concurso público para, veladamente, regularizar a situação de alguns se seus trabalhadores mas, a falta de provas por parte dos candidatos e a nenhuma vontade dos orgãos competentes de investigar o certame, enterraram as eventuais irregularidades.

Com tudo isso, talvez fosse válido mencionar que o simples questionamento fundamentado de um concurso público é, data venia (como diriam os juristas), mais do que o suficiente para evidenciar que, no mínimo, não houve, por parte da organização, a transparência necessária.


domingo, 1 de agosto de 2010

Só um sonho só...


Começar o mês com poesia é sempre bom presságio, ainda mais se o primeiro dia da semana é, também, o primeiro dia do novo mês... Com tantos sinais, assim, quem sabe os bons sonhos não se tornam realidade? Não custa tentar... E mesmo que não ocorra, não tem problemas! Porque os sonhos podem até ser inócuos, mas sem eles, não há sequer como saber para onde seguir...