segunda-feira, 31 de maio de 2010

Além da Ficção


Imagine um diretor de um grande conglomerado industrial, recebendo um alto salário, prêmios por desempenho e todos os demais benefícios que só uma grande empresa pode dar, inclusive, veículo com motorista, assistências de saúde, uma certa flexibilidade de horário, um contrato de estabilidade funcional, mais de trinta dias de férias por ano, licenças-prêmio e uma gorda previdência, diferenciada dos demais mortais, para quando se aposentar. Além de todos os benefícios diretos, seu cargo ainda lhe provê uma série de outros indiretos, tais como o respeito social pela posição que ocupa, diversos tipos de assessoria da empresa em qualquer eventualidade, etc.

Suponha, agora, que esse diretor, além de suas atribuições administrativas, acumule também o comando das equipes de auditoria e ouvidoria da empresa e que, percebendo a brecha, ele comece a agir no seu dia-a-dia de forma a se beneficiar ao invés de retribuir tudo o que a empresa lhe proporciona. Para isso, lança mão de todas as ferramentas que lhe são disponíveis e começa, entre outras coisas, a desviar recursos da empresa para si ou para projetos pessoais, a contratar pessoas não pela competência mas visando troca de favores, a usar de sua influência funcional e social para obter mais privilégios entre funcionários e membros da sociedade, etc.

Só depois de várias evidências cabais de irregularidades — afinal a empresa nunca quer acreditar que um funcionário caro e privilegiado possa agir contra ela mesma — a companhia decide formar uma equipe independente de investigação. Após meses de perscrutação minuciosa, o veredicto da equipe é implacável: houve corrupção e não apenas daquele diretor, mas de vários outros em conluio. Então, a cúpula daquela empresa se reúne e decide aplicar ao caso a pena máxima possível pelos estatutos da companhia a todos os envolvidos, aposentando-os, compulsoriamente, com seus respectivos vencimentos proporcionais.

Parece ficção "hollywoodiana" para você? Para o Poder Judiciário brasileiro, não...


domingo, 30 de maio de 2010

Haikai da Constatação



Pela janela da alma se observa o mundo e, de vez em quando, frustramo-nos com a estreiteza da própria visão. Ter a consciência do infinito e estar submetido aos limites da abertura que se tem para ele é, para alguns, exasperador. Entretanto, mesmo na visão mais limitada ainda permanece a essência do real. E esta é uma constatação importante...


sábado, 29 de maio de 2010

Sociologia de boteco


E aproveitando o clima descontraído de bate-papo, nada melhor do que propor uma tese sociológica elaborada, daquelas que requerem boas horas de discussão, em meio a petiscos e aperitivos, para serem adequadamente digeridas pelo consciente da galera. E não a prejulgue pela boemia no momento de sua concepção, pois são justamente tais condições que costumam favorecer o aparecimento dos germes primordiais que originam ideários extremamente complexos. A história mostra, aliás, que tais desenvolvimentos podem marcar, profundamente, a humanidade — não que este seja um desses casos. Basta recordar quantos partidos políticos, sociedades secretas e tantas outras organizações sociais surgiram de despretensiosas conversas em torno de uma mesa de bar.

Pois bem, a tese de que trata esta postagem não nasceu, exatamente, em um bar, mas na mesa de um restaurante, durante a hora do almoço. Conversava-se sobre algumas das mazelas mais comuns na sociedade moderna, tais como as várias facetas da violência, a degradação do meio-ambiente pela ação do homem, a corrupção nas mais diversas instituições públicas e privadas, etc. De repente, surge o "insight" que daria origem a toda a tese: as ações de controle e reparação são, geralmente, focadas nos efeitos e, raramente, nas causas de tais mazelas. Claro que esta é uma visão determinística, idealizada, pois nem sempre um fato social tem uma causa bem definida, mas, não há como negar, que certas condições — ou combinação destas — favorecem, em maior ou menor grau, determinados padrões de comportamento na sociedade.

Pretender lidar com um problema social apenas com a mitigação de seus efeitos é quase como, desejando se livrar das dores, tratar um infarto do miocárdio apenas pela ingestão de analgésicos. Há que se compreender o fenômeno com maior profundidade para que seja possível adotar medidas eficazes na condução do presente ao futuro desejado. A atitude mais comum, entretanto, é, justamente, o direcionamento de escassos recursos para minimizar os efeitos e não as origens do problema.

Tomando-se a violência como exemplo, note que a solução vai muito além da mera repressão de certos comportamentos. Pode até parecer estranho à primeira vista, mas a atitude violenta que ceifa a vida de alguém em uma discussão na rua possui a mesma origem daquela que encerra a carreira de um profissional durante uma vaidosa demonstração de poder em um ambiente corporativo. Embora os efeitos sejam absolutamente diferentes, a natureza das violências é a mesma. E, ao invés de se criar mecanismos para impedir que o efeito se manifeste, como aumentar o contingente de policiais nas ruas ou burocratizar excessivamente os processos de recursos humanos, por que não investir esforços na redução — ou, pelo menos, no controle — da "natureza violenta" no ser humano? Verifica-se o mesmo padrão também nas diversas medidas anti-corrupção, leis contra intolerância, etc.

E a hipótese para explicar o porquê desta "tese" nunca ter saído do campo sociológico dos botecos é, simplesmente, a de que seu estudo é inviabilizado, em ambientes mais "sérios", pelos elevados níveis de humildade e auto-crítica demandados no processo.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Verdades quase ocultas


Sexta-feira, papo com os amigos, ambiente perfeito para elaboração de filosofias de toda ordem, especialmente daquelas que validam suas hipóteses com base na quantidade de risos ou indignação conseguidos junto à audiência. Pode parecer bobagem, mas há muito o que se extrair de ideias e conceitos que emergem nessas ocasiões. A fala espontânea — aliás, como bem teorizado pelos precursores do comportamentalismo no início do século passado — resulta, obviamente, de pensamentos que, nela, acabam por se auto-revelarem, sem a necessidade da intermediação subjetiva de qualquer pessoa. Basta um pouco de atenção para se obter os questionamentos que, se bem pesquisados, poderiam resultar em um livro.

Mas se a fala mostra algo do pensamento que a produz, também o ouvinte, ao reagir à ela, acaba por revelar algo do que lhe vai no íntimo. Em ambos os casos, os agentes se surpreendem com suas próprias ações (fala ou reação), porque o que se evidencia, em geral, é subliminar para eles mesmos. Mais fértil ainda são as justificativas dadas às formas de pensar percebidas. Depois da surpresa inicial, o agente, às vezes, elabora um intrincado arcabouço de explicações racionais que supostamente o levaram àquela conclusão, exposta de maneira tão involuntária. Para o grupo social, essa justificativa costuma ser saudável, mas quando é usada para o próprio agente se convencer de que não pensara daquela forma, começa a surgir um problema, simplesmente porque algo que é justificado — ou seja, correto — não precisa ser mudado.

Foi durante uma agradável conversa entre amigos, ao redor da mesa de uma lanchonete ao ar livre, que o "cometário-bomba" é lançado. "Pobre é algo de que deveria acabar!" disse alguém. A indignação foi geral! Alguns repreenderam duramente o autor da frase, outros balançavam a cabeça como não acreditando no que haviam ouvido e outros, ainda, mantinham-se calados, com expressão de assombro, esperando o desvelar daquela inesperada situação. E apesar do clima descontraído, afinal era uma roda de amigos, um observador externo poderia perceber uma certa tensão naquela surpresa coletiva. Eis que, depois de um gole de café e muito escutar, o mesmo autor pergunta: "Por que?! Vocês não acham que os pobres deveriam ganhar mais do que ganham e deixar essa condição em que se encontram?".

E não obstante todos terem entendido o desfecho, talvez poucos tenham atentado ao significado daquela "indignação" coletiva. Afinal, era só um papo em uma roda de amigos...

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Um milênio de paz


Há quase 5000 anos atrás, surgia no Peru a mais antiga civilização americana e uma das mais antigas de todo o planeta. A descoberta de Caral, no deserto peruano, derrubou por terra várias teorias sobre a origem da civilização, inclusive a ideia de que seu berço fosse o velho mundo. Tão antiga quanto as civilizações da Mesopotâmia, Egito, Índia e China, Caral se desenvolveu, aparentemente, de forma isolada, sem as interações culturais comuns entre os povos da Europa, Ásia e África. Mesmo assim, a cidade de Caral nada deixa a desejar em termos de riqueza cultural e artística, ou até obras monumentais, haja vista ostentar uma das maiores pirâmides do mundo, cujo volume de material é estimado em torno de 2 milhões de metros cúbicos.

Localizada ao norte de Lima, cerca de 190 km da capital peruana, Caral revela, em uma área de 65 hectares, monumentos, praças, habitações e outras construções, além de uma infinidade de outras características típicas de uma complexa civilização. Estima-se que a cidade possa ter abrigado próximo de 3000 pessoas, mantendo intensa vida social. A principal responsável pela descoberta na década de 1990, a antropóloga e arqueologista peruana da Universidade de San Marcos, Ruth Martha Shady Solís (1946-), tem trabalhado no projeto de estudo do sítio arqueológico desde 1994.

A constatação mais intrigante, porém, foi o fato de não se ter encontrado quaisquer indícios de conflitos ou organização militar, o que refutou a tese da guerra como força motriz para o surgimento da civilização, defendida por antropólogos como os estadunidenses Jonathan Haas e Winifred Creamer. Na cidade, foram encontrados restos de peixes oceânicos e produtos da selva amazônica, indicando um constante afluxo de mercadorias provenientes de diferentes regiões dali distantes e, portanto, a manutenção de estreitas relações comerciais entre diversos povos de outras localidades. Os sinais de intenso cultivo de algodão também sugerem que o produto, matéria-prima para redes de pesca, pudesse ser uma moeda de troca, especialmente entre os pescadores da costa pacífica, cerca de 32 km da cidade.

Talvez as guerras, de algum modo, tenham contribuído com o desenvolvimento das civilizações, uma vez que, além de elevar o nível de proteção do próprio grupo, a fabricação de armas e a formação de exércitos demandava uma organização social tal que pudesse haver produção de excedentes agrícolas para sustentar quem dedicava seu tempo para outras atividades que não a obtenção do próprio alimento. Mas, definitivamente, não foi o que motivou a transição do modo de vida dos pequenos grupos caçadores-coletores para os grandes grupos civilizados, pelo menos em Caral.

A mensagem da antiga cidade peruana é clara: evoluir pacificamente é possível. E parece que isso, os povos americanos, pré-colombianos, já sabiam há muito tempo.


quarta-feira, 26 de maio de 2010

O desafio real


"O rapaz tinha uma altivez atrevida no olhar e parecia apenas aguardar o momento certo para demonstrar toda sua capacidade. Ninguém, entretanto, conhecia-o por aquelas bandas, mas as cicatrizes, expostas pelo seu corpo como medalhas, serviam de base para os mais diversos comentários a respeito de seu desempenho. E mesmo observando os melhores, ele permanecia ali, calado, impassível. Como seu comportamento era, de fato, algo intimidador, alguns logo começaram a apostar que suas habilidades poderiam superar às dos competidores ali presentes. Assim, sua presença passou de absolutamente anônima para amplamente percebida, gerando boa parte do burburinho local.

Mas ausentes aos comentários, as provas evoluíam mais ou menos como nos anos anteriores. Vez ou outra um competidor que ficara em segundo lugar na competição anterior tomava para si a primeira posição. Mas os concorrentes de elite eram, basicamente, sempre os mesmos. E isto, não era por acaso, afinal treinavam exaustivamente durante todo o intervalo entre os torneios para poder vencer o encontro anual; era o único prêmio que interessava depois de tanto esforço. No final, com poucas novidades na classificação geral, o primeiro lugar da competição anterior acabou por se sagrar bicampeão.

Descendo do pódio, o vencedor caminhou até o rapaz que a tudo observava do alto de sua indiferença e o encarou. Tendo ouvido os comentários entre os espectadores, não pensou duas vezes antes de o desafiar fora da competição. O rapaz sorriu furtivamente e não titubeou em aceitar o desafio. Ambos abriram caminho entre a turba que se formava e se dirigiram ao local do confronto. A expectativa explodiu em gritaria geral, divididas entre as torcidas pró e contra o recém-sagrado campeão. E quando, finalmente, tomaram suas respectivas posições, uma apreensão geral silenciou a todos enquanto aguardavam o início do embate final.

No primeiro movimento, o misterioso rapaz escorrega sozinho e desaba no chão. Não conseguiu mais se levantar."



terça-feira, 25 de maio de 2010

Quando rir faz chorar


Há pouco mais de nove anos atrás, uma plataforma de petróleo da Petrobras, a P-36, foi avariada por algumas explosões e afundou na bacia de Campos, Rio de Janeiro. Na ocasião, onze pessoas morreram e outras tantas ficaram feridas. Apesar de todo esforço das equipes de contenção, o dano ambiental foi bastante grande e a mancha de óleo na região ultrapassou os 50 km². A Petrobras estimou que cerca de 26 mil litros de óleo tenham vazado durante o acidente e nos dias que se seguiram. À época, muitos "brasileiros" não pouparam críticas à estatal e, indiretamente, a engenharia brasileira.

Em 2010, quase um mês depois de um acidente que afundou uma plataforma de petróleo no Golfo do México, matando 11 pessoas, técnicos de uma empresa petrolífera do primeiro mundo tentam, desesperadamente, conter um vazamento submarino de petróleo que vem ocasionando uma catástrofe ambiental de tal ordem que deve ir além dos limites da região e estender-se até o litoral da Luisiana. Estima-se, conservativamente, que o vazamento chegue a impressionante marca de 800 mil litros de óleo cru por dia e que os prejuízos, entre custos diretos, indiretos e de recuperação ambiental, sejam da ordem de bilhões de dólares americanos. Pelo menos, a empresa estrangeira não foi alvo de chacotas similares àquelas dirigidas à Petrobras alguns anos atrás.

Mas a esquizofrenia da brasilidade é apenas um adereço que adorna uma questão muito mais delicada: quanto vale a pena explorar fontes energéticas com elevado risco ambiental? Parece claro que, no longo prazo, os custos — ambientais, sociais e econômicos — decorrentes de grandes catástrofes superam as vantagens auferidas nesse tipo de exploração. Uma evidência disso é que são os Estados que assumem a maior parcela dos custos de recuperação ambiental. Qual seria, por exemplo, a real extensão dos prejuízos ocasionados por uma eventual explosão em um dos reatores nucleares em Angra dos Reis? Claro que o risco é baixo, mas já aconteceu em Chernobil há 24 anos atrás...

Ninguém seria tolo o suficiente para crer que seria possível abandonar, simples e imediatamente, todos esses recursos, especialmente o petróleo. Mas não há dúvidas de que um maior esforço para se pesquisar alternativas seria perfeitamente viável, tal como já comentado por aqui em "E por falar em energia...". A própria Petrobras é um dos grandes investidores na pesquisa de alternativas energéticas, limpas e renováveis, não só pelo fato de ser estatal e perseguir objetivos de caráter público nem sempre lucrativos, mas também por reconhecer que deter a tecnologia de tais alternativas é absolutamente estratégico dos pontos de vista político, econômico e militar. Enquanto a China, por exemplo, vem montando a maior usina de energia solar do planeta, o Brasil, país com a maior extensão territorial na região tropical do mundo, ainda não parece compartilhar da mesma visão de futuro.

Quem, de fato, acredita neste país sabe que não falta competência científica por aqui para se alcançar a liderança mundial na produção de energia limpa e ecologicamente segura. Já para quem não acredita, tudo parece piada. Ah, se riso fosse energia...


segunda-feira, 24 de maio de 2010

A pichação da coroa...


Se a rainha não surtou, deve ter chegado bem próximo disso ao ver, estampada nos tabloides, a foto de uma de suas cunhadas flagradas traficando influência. Não obstante o mal-estar real, a verdade é que a ambiciosa duquesa não fez nada muito diferente do que inúmeras pessoas fazem, todo santo dia, em várias partes do mundo. Ela apenas cometera dois erros fatais: cobrou em espécies pelo favor e deixou-se ser pega por um repórter. Mas antes de julgar as asserções anteriores, saiba que não há qualquer intenção de se justificar o ato daquela senhora, mas apenas de chamar a atenção para uma hipocrisia que tem se tornando frequente nesses tempos de farta veiculação informativa.

O mesmo tipo de conduta da nobre representante pode ser encontrada toda vez que uma regra, bem estabelecida e comum a todos, é relativizada por algum plebeu para favorecer outro, simplesmente porque o conhece ou porque deseja a retribuição do "favor" em outra ocasião. Entretanto, este mesmo razoável plebeu é o primeiro a negar a "flexibilização" da mesma regra a um pobre desconhecido cuja situação de exceção assim o requeira. Não apenas isso, usualmente, posta-se sobre um pedestal de incorruptibilidade enquanto traja as vestes da "amizade modelo", concedidas em virtude de valiosos auxílios prestados aos seus mais variados "amigos".

O mercado de influências e privilégios é tão antigo quanto a própria sociedade e está longe de ser uma exclusividade de um único povo ou nação. Também não se restringe a classes sociais nem a níveis culturais. É, aliás, muito provável que esse mal sequer termine algum dia, haja vista que, tratando-se de interações entre seres humanos e não entre sistemas inanimados, sempre deverá existir exceções à regra. Logo, além de leis, para minguar o comércio de privilégios, será necessária uma constante depuração dos princípios pessoais, até o ponto em que todos os indivíduos passem a agir virtuosamente pelo amor à virtude e não pelo medo da punição.

Enquanto isso, muito longe da realeza, nos distantes bairros de São Paulo, exemplos tão similares quanto sutis se expressam nos muros e fachadas da cidade, faturas patentes desse mercado peculiar que se evidenciam pela ausência de marcas — apenas "grafites" mínimos, espécies de assinaturas — ao lado de paredes totalmente pichadas. Provavelmente se questionados, tanto quem executa quanto quem paga por tal "serviço de proteção" lançaria mão de uma infinidade de justificativas em favor das respectivas atitudes. E isto para nem tocar nos exemplos que envolvam autoridades instituídas pelo Estado.

Nada, entretanto, que não pudesse ser ofuscado por um escândalo qualquer na Casa Real...


domingo, 23 de maio de 2010

Sem inspiração.


É, tem dia que não tem jeito! Por mais que se tente, a inspiração não vem. Mas o jeito é continuar escrevendo, mesmo sem jeito... Sempre. Bom domingo poético!

sábado, 22 de maio de 2010

Evolução Egoísta


Correndo o risco de ser excessivamente rigoroso, pode-se afirmar que Darwin não foi, exatamente, o pai do evolucionismo. A teoria evolucionista já vinha sendo estruturada pelas valiosas contribuições científicas de um naturalista francês — não menos eminente, mas frequentemente relegado — chamado Jean-Baptiste de Lamarck (1744-1829). Foi ele, aliás, quem cunhou o termo "biologia" tal como o conhecemos hoje. O que "A Origem das Espécies" de Darwin trouxe de realmente revolucionário foi a teoria sobre a atuação da seleção natural que, conforme já explicado anteriormente em "Ervilhas Férteis", também não teria grande penetração científica não fossem os trabalhos de Mendel publicados em 1866 e redescobertos apenas no século seguinte por alguns botânicos.

Décadas mais tarde, quando a teoria darwiniana já se encontrava bem estabelecida no ideário científico, a discussão sobre a seleção natural do altruísmo dominava muitos dos debates em diversas áreas de estudos evolucionistas. Foi então que um jovem zoólogo e etólogo evolucionista inglês da universidade de Oxford, Clinton Richard Dawkins (1941-), escreveu, em 1976, seu livro, "O Gene Egoísta", no qual defendia, de forma apaixonada, a ideia de que a replicação genética estaria por detrás do aparente altruísmo verificado em diferentes espécies, inclusive o próprio homem. Em outras palavras, tudo na biosfera — quiçá no universo — se passaria como se os seres vivos fossem complexas máquinas de transporte e replicação genética, conceito que justificaria o altruísmo de um indivíduo como tendo sido naturalmente selecionado, simplesmente, por propiciar uma maior quantidade de cópias de um determinado padrão genético. Dawkins afirma logo no prefácio de seu livro: "Somos máquinas de sobrevivência — veículos robô programados cegamente para preservar as moléculas egoístas conhecidas como genes." (Dawkins, 1976).

Naturalmente, tal como no caso de Einstein, os conceitos de Dawkins não surgiram, assim, do nada. Até o próprio Darwin, já em 1871, propunha em "A Descendência do Homem" que, talvez, seu mecanismo de seleção natural fosse melhor aplicado a grupos inteiros — seleção grupal — e não a apenas um indivíduo. Após a descoberta da estrutura do DNA, em 1960, outro pesquisador de Oxford, William Donald Hamilton (1936-2000), inspirado pelo artigo de um geneticista inglês, John Burdon Sanderson Haldane (1892-1964), detalhou, matematicamente, em 1964, o que seria a base da teoria de seleção parental — baseada na afinidade genética. Dois anos mais tarde, o estadunidense George Christopher Williams (1926-) publica um trabalho que expõe as fragilidades experimentais da teoria da seleção grupal idealizada por Darwin e propõe que a evolução devesse, mesmo, ser compreendida com base em seu menor nível possível, ou seja, os genes. Assim, Dawkins, ciente da dificuldade de aceitação desses novos conceitos pelo meio acadêmico, decide atribuir a noção de "egoísta" ao gene, buscando fazer com que a ideia alcançasse o maior público possível.

A atribuição metafórica de Dawkins não só lhe rendeu publicidade, como também uma enxurrada de severas críticas ao seu trabalho, provenientes de todos os lados. Apesar de sua intenção, aparentemente, não ter sido a de suscitar questões morais com o tal "egoísmo" dos genes, foi justamente o que aconteceu e os ataques atingiram impiedosamente tanto as bases científicas quanto morais de seu modelo, na mesma medida da repercussão de sua obra. Tão convencido, estava Dawkins, de seu "insight" que o estendeu ao especulativo — e não menos polêmico — modelo dos "memes" para explicar nossa evolução cultural, concorrentemente à nossa evolução genética. Mas deixemos a explicação dos "memes" para um outro dia.

Seja como for, Dawkins parece conviver melhor com a polêmica do que seus pares e antecessores. Fica a questão se tal característica seria fruto de alguma mutação, genética ou memética...

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Dilema exemplificado


Um dos vários ditos populares no Brasil alardeia que a prática leva à perfeição. Tal ideia, no entanto, nem é uma exclusividade dos lusófonos, podendo ser encontrada expressa em vários outros idiomas por aí. Mas, como tudo o mais pertencente ao senso comum, a informação trazida pelo ditado é um tanto fragmentada e imprecisa. Claro que ninguém seria ingênuo a ponto de discordar da considerável melhora, verificada no desempenho, ocasionada pela prática repetida de uma determinada tarefa, inicialmente inédita. Mas há um limite para o aperfeiçoamento, principalmente no que diz respeito às tarefas motoras, conforme mostra alguns estudos. Em outras palavras, atingido um nível ótimo de desempenho na realização de uma dada atividade, a contínua repetição da mesma não acarretará qualquer nova melhora perceptível. E mesmo na eventualidade disto ainda ocorrer, tal evento não se perpetuará pois estará mais relacionado às flutuações naturais de processos neurais do que ao aperfeiçoamento da função, propriamente dito.

Além disso, há inúmeras outras funções não-motoras difíceis de serem melhoradas meramente pela repetição. É o caso, principalmente, daquelas que dependem de processos espontâneos, tal como a produção artística, por exemplo. Repetir o processo de criação pode aprimorar a velocidade com que se concretiza uma inspiração ou a eficácia de seus métodos e ferramentas, mas não o talento ou a criatividade do artista. Estes dependem, normalmente, da própria inspiração, algo muito além de uma simples atividade consciente que poderia ser repetida indefinidamente. Clarice Lispector, um dos grandes nomes da literatura brasileira, não se considerava uma escritora profissional, simplesmente porque seus textos dependiam de sua inspiração e, portanto, de algo independente de sua vontade.

Surge aí, um problema: como melhorar a qualidade da inspiração, talento ou criatividade? Justamente por acreditar que tais características sejam, mesmo, dons legados apenas a poucos indivíduos privilegiados da espécie humana, algumas pessoas acham que não precisam praticar nada, nunca. Mas, parece bastante óbvio, que a ausência de prática não resolve o problema tampouco. É relativamente fácil encontrar exemplos de pessoas absolutamente talentosas cuja concretização de sua obra é pífia, simplesmente porque não praticam o processo nunca. Imagine o que seria de um gênio como Mozart não tivesse treinado a leitura de partituras ou o manuseio de algum instrumento musical, pelo menos. Não por acaso, Thomas Alva Edison (1847-1931) chegou a afirmar que um gênio se compunha de 1% de inspiração e 99% de transpiração.

Dilemas à parte, exercitar coisas como a criatividade e a inspiração é uma atividade realmente complexa e, embora necessária, consome uma enormidade de recursos, inclusive parte do próprio talento. E talvez este texto seja um exemplo bastante claro disso...

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Interrelações e trivialidades


Durante a Segunda Grande Guerra, os EUA construíram, baseados em um projeto inglês, milhares de navios de carga para suprir a esquadra britânica que sofria com as frequentes baixas provocadas pelos ataques dos submarinos alemães. A emergência da situação exigia que o tempo de produção das embarcações fosse o mínimo necessário, assim, os estaleiros estadunidenses desenvolveram inovadores processos para acelerar ao máximo a fabricação dos chamados "Liberty Ships". Entre as inovações, estava a substituição dos rebites que uniam as chapas do casco pelo moderno processo de soldagem, conferindo à estrutura, além de maior rigidez, uma pronta estanqueidade. Entretanto, quando em serviço, alguns desses navios partiram ao meio — literalmente — sem qualquer aviso prévio, ocasionando, inclusive, a morte de algumas pessoas.

A primeira suspeita dos engenheiros encarregados pela investigação daquela falha surreal apontava para o uso de soldadores inexperientes, dado o volume de produção demandado dos estaleiros à época. Ledo engano. Análises mais apuradas mostraram que o tipo de aço utilizado no casco tinha uma temperatura de transição — aquela abaixo da qual o metal deixa de ser dútil, tornando-se frágil — acima da que a embarcação estaria sujeita em alguns momentos. Só que, até aquele momento, nenhum outro navio similar, mas construído com chapas do mesmo aço rebitadas, submetido a condições de trabalho semelhantes havia apresentado falha parecida. O que teria, então, causado tão pitoresco defeito?

Mais tarde, a mecânica da fratura — uma interessantíssima área de estudos de algumas engenharias como a mecânica, a naval e a metalúrgica — viria elucidar o misterioso caso dos "Liberty Ships". Descobriram que uma importante característica a ser prevista no projeto de estruturas é o ponto de instabilidade de uma eventual fratura. O controle dos parâmetros relacionados à estabilidade na propagação de uma trinca pode evitar falhas catastróficas como as que ocorreram com os navios em questão. E, apesar das propriedades mecânicas do material exercerem grande influência nessa característica — maior tenacidade, por exemplo, implica em maior estabilidade na propagação da trinca —, outras variáveis não poderiam ser esquecidas, tal como a dimensão da estrutura final — note que quebrar um copo é bem mais fácil do que um dos pequeninos cacos restantes.

Ao soldar juntas todas as chapas, os fabricantes haviam transformado o casco de cada um dos navios em uma única e gigantesca peça, contribuindo sobremaneira para que a propagação de qualquer trinca se tornasse instável e rompesse, de forma frágil, toda a estrutura de uma só vez. Em um casco rebitado, sob as mesmas condições, a trinca, eventualmente gerada, pararia em qualquer descontinuidade entre uma chapa e outra, proporcionando tempo hábil para que se procedesse com o reparo antes de uma falha catastrófica. Guardadas as devidas proporções, essa é a mesma razão pela qual se diz ser melhor quando uma ponte balança ou quando uma casa apresenta, claramente, rachaduras nas paredes. É bem provável que, antes de falharem, os sinais de que algo não vai bem sejam evidentes em tais estruturas.

Talvez não seja trivial entender o que isto tem a ver com as espadas samurais ou com as camadas sobrepostas em nanorrecobrimentos, mas é justamente a falta de trivialidade que confere uma beleza à engenharia metalúrgica ou de materiais. Isto, no entanto, é história para um outro dia...


quarta-feira, 19 de maio de 2010

"Coping"


Em 2002, uma psicóloga e um psicólogo, Débora D. Dell'Aglio e Cláudio S. Hutz, ambos ligados à Universidade Federal do Rio Grande do Sul, investigaram os processos de "coping" em crianças e adolescentes que frequentavam escolas públicas, estaduais e municipais, na periferia de Porto Alegre e Viamão. Em linhas gerais, entende-se por "coping" as estratégias utilizadas pelos indivíduos para lidar com situações de grande tensão que envolvam outras pessoas. A pesquisa sugere que este processo dependa mais da situação em que o indivíduo esteja envolvido do que das características pessoais de personalidade. O trabalho mostrou que o grupo com idades entre 11 e 15 anos (adolescentes) apresentavam maior tendência à evitação, aceitação e expressão emocional a situação envolvia adultos, porém, tendiam a agir agressivamente ou a buscar de apoio de alguém naquelas envolvendo outras crianças.

Os resultados são muito interessantes porque levantam indícios de que haja sensíveis dificuldades — pelo menos na amostra pesquisada — na interação entre crianças e adultos durante a busca por uma solução possível em um eventual conflito, seja porque predomine uma educação autoritária, tanto na família quanto nas instituições, seja porque as crianças avaliem como incontroláveis as situações envolvendo adultos. Já a tendência de agir agressivamente — mais frequente entre os adolescentes e segunda mais frequente entre as crianças —, quando envolvendo seus pares, pode ser atribuída à ideia equivocada de que seria a única maneira de resolver um conflito ou, simplesmente, a um modelo observado e aprendido ao longo da formação.

Os autores também mencionam outros estudos que demonstram a maior popularidade, na escola elementar, dos meninos percebidos como mais agressivos. Aqueles com sucesso acadêmico e sensíveis às necessidades dos demais, detinham menor popularidade e eram, frequentemente, rotulados de afeminados (Rodkin, Farmer, Perl e Acker, 2000 apud Dell'Aglio). Logo, as condutas violentas podem advir de uma tentativa de adaptação ao grupo ou de ascensão social. O curioso é que não foram encontradas diferenças significativas entre as estratégias escolhidas pelo grupo institucionalizado e pelo que mora com a família, ou seja, ambos os grupos lidavam com as situações de tensão de forma bastante similar.

Por fim, ao concluírem que o "coping" apresenta características de um processo mais situacional do que disposicional, os autores revelam uma possibilidade de intervenção por meio de ajustes no ambiente. Tal possibilidade é importante porque permite que se pense em alternativas para tentar diminuir a incidência de comportamentos agressivos, favorecendo o desenvolvimento de outros mais saudáveis ao convívio social.


Para saber mais: Dell'Aglio, D. D.; Hutz, C. S. Estratégias de coping de crianças e adolescentes em eventos estressantes com pares e com adultos. São Paulo: Psicologia USP, 2002. v. 13. n. 2.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Tempo Estranho


"Acordou cedo, não tanto quanto planejara, mas ainda suficiente para fazer tudo o que pretendia para o dia. Vestiu-se, arrumou a cama, terminou de se arrumar no banheiro e se encaminhou à cozinha para preparar o café da manhã. Nenhuma novidade: o cereal, o leite e o café. Ingeriu tudo com uma certa pressa, afinal tinha muito o que fazer e teria apenas até o começo da noite para terminar tudo. Desejava dormir cedo para estar disposto na manhã seguinte. Escovou os dentes, sentou-se na escrivaninha e abriu um dos livros que deveria terminar de ler até o final da semana. Três parágrafos mais tarde, sentiu sede e foi novamente à cozinha buscar um pouco de água.

Saciada a sede, deixou o copo na pia e achou melhor lavar e guardar a louça do café antes que chegasse a hora do almoço. Iniciou o trabalho, mas conjecturou, também, que já era quase meio-dia e que comeria dali a pouco, assim, deixou a arrumação pela metade e retornou ao livro. Lembrou-se, entretanto, que as roupas limpas estavam por guardar desde a noite passada sobre a cômoda de seu quarto. Foi até lá arrumá-las. Peça por peça, ia separando e guardando nos devidos lugares, porém, quando faltava apenas as camisetas e as meias, viu no relógio que já passava um pouco das onze e meia da manhã. Deixou o que faltava das roupas e voltou para o livro. Havia estabelecido como meta terminar, pelo menos, aquele capítulo antes do almoço.

A leitura era bastante densa e resolveu conferir os significados de algumas palavras no dicionário para ter a certeza de que compreendera o texto adequadamente. Por segurança, achou melhor resumir todo o capítulo para que pudesse rever o conteúdo rapidamente se precisasse. Quando finalmente terminou o capítulo, quase duas horas haviam passado. Correu, então, para almoçar antes das duas horas da tarde, uma vez que teria de concluir, ainda, dois outros capítulos para que conseguisse escrever bem a primeira parte de seu trabalho.

Enxaguou um dos copos sobre a pia, serviu-se de suco, aqueceu a comida já pronta no microondas e sentou-se para almoçar. Comeu, escolheu um doce como sobremesa e juntou a louça usada com parte daquela que restara do café. Lavou tudo. Quando voltou ao livro, já eram três horas da tarde. Tornou a ler, mas quase na metade do capítulo, sentiu um sono incontrolável e achou por bem tirar um cochilo rápido de uns quinze minutos antes de continuar. O quarto de hora se transformou em dois terços e, quarenta minutos depois, levantava-se defronte à última pilha de roupas por arrumar. Sacudiu a cabeça como para espantar sua ânsia de arrumação e voltou ao livro. Não tinha terminado os capítulos planejados e sequer havia começado a escrever a introdução de seu trabalho.

Terminou o segundo capítulo e viu com espanto que escurecia rápido lá fora e viu que no relógio passava um pouco das seis. Decidiu começar a escrever algo, mesmo sem ter terminado de ler o que planejara, haja vista a necessidade de apresentar uma parte, mesmo que embrionária, de seu trabalho. Ligou o computador, checou algumas mensagens eletrônicas recém chegadas e vinte minutos depois, começou a elaborar o texto. O primeiro parágrafo demorou a tomar forma e só foi se estabilizar meia hora depois. Continuou no mesmo ritmo com o segundo, no entanto o ronco em sua barriga denunciava a hora de jantar. Comeu e sentiu sono. Era sempre assim. Olhou no relógio e viu que eram mais de oito horas quando seu colega ligou. Ficaram quase duas horas acertando os detalhes da apresentação do trabalho no dia seguinte.

Assim que desligou o telefone, voltou ao livro, mas percebeu que estava tarde e começou a arrumar o material que deveria levar no dia seguinte. Entreteu-se organizando algumas folhas de papel soltas entre suas coisas e, quando terminou, foi tomar banho. Notou as horas marcarem meia-noite e desistiu de qualquer outra coisa. Preparou-se e foi dormir, muito mais tarde do que havia previsto.

A pia bagunçada, o livro deixado aberto, as roupas por guardar e o computador ligado denunciavam que aquele dia, como de costume, havia sido, de fato, cheio. Era o tempo que, estranhamente, andava muito curto."


segunda-feira, 17 de maio de 2010

A Farmacogenética


O leitor, ou a leitora, já se perguntou por que o efeito de um determinado remédio ou tratamento é, às vezes, tão diferente entre duas pessoas? A resposta de que isto se deve ao fato das pessoas serem diferentes entre si pode não ser tão óbvia quanto parece, afinal, todo mundo toma os mesmos comprimidos contra dor de cabeça exatamente pelo mesmo motivo. Já imaginou se, para comprá-los, fosse necessário fazer um exame de DNA do paciente? Pois, guardadas as devidas proporções, é mais ou menos para isso que devem caminhar os tratamentos em um futuro não muito distante.

A farmacogenética estuda as diferenças na resposta ao uso de medicamentos causadas pelas variações genéticas que podem afetar o metabolismo — e, portanto, a eficácia e a toxicidade — das substâncias ativas na composição da droga. Diferenças alélicas em determinados genes podem alterar drasticamente a forma como o organismo processa tais substâncias (farmacocinética), alterando suas concentrações — logo, a ação das mesmas — ao longo do tratamento, ou, ainda, serem responsáveis pelas diferenças nos alvos posteriores da droga (farmacodinâmica), tais como os receptores, enzimas e vias metabólicas. Em suma, a depender da estrutura genética de um organismo, os medicamentos podem ser processados ou assimilados de formas diferentes daquela prevista para um tratamento bem sucedido.

O estudo da farmacogenética se dá pela identificação dos genes ligados às reações a uma determinada substância. Há, entretanto, um complicador que é a variabilidade étnica, ou seja, diferentes populações do planeta apresentando certas características em frequências distintas. Ao se ministrar isoniazida a pacientes com tuberculose, por exemplo, constatou-se diferentes respostas ao tratamento entre grupos de indivíduos. Alguns eram curados, outros não e outros, ainda, apresentavam severos efeitos colaterais devido a uma diferença alélica em um gene (da N-acetiltransferase), responsável pela significativa diferença na velocidade — e, portanto, na eficácia do tratamento — em que a droga era metabolizada pelo organismo. Posteriormente, verificou-se também que os indivíduos com processamento lento da droga eram mais comuns (mais da metade) entre as populações negra e branca, menos comuns nas asiáticas e raros entre os Inuit (Burroughts, 2002 apud Nussbaum).

Há, também, uma abordagem um pouco diferente que é a farmacogenômica. Nela, não apenas genes individuais, mas conjuntos de alelos são investigados para se identificar as causas genéticas comuns às diferentes respostas aos medicamentos. A personalização dos tratamentos, portanto, parece ser uma interessante tendência que ainda deve salvar muitas vidas e poupar muitas pessoas do sofrimento causado por efeitos colaterais. Como, infelizmente, tratam-se de procedimentos bastante caros, o sucesso da empreitada vai depender da viabilidade econômica, tanto na implementação quanto na pesquisa.

Mas quem sabe o gene dos conflitos na genética dos Estados não possa sofrer uma mutação, favorecendo ainda mais a pesquisa em saúde?


Para saber mais: Nussbaum, R. L. et al. Thompson & Thompson - Genética Médica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. p. 429-438.

domingo, 16 de maio de 2010

Haikai rápido...



Dizem que em São Paulo, tudo é muito rápido! O paulista, geralmente, é pouco tolerante às perdas de tempo. Há, inclusive, quem arrisque a própria vida para ganhá-lo. Logo, os dias, as semanas, os meses e os anos, por aqui, acabam passando a uma velocidade diferente, quase alucinante. Só a cidade, propriamente dita, insiste em não compreender bem isso...


sábado, 15 de maio de 2010

Quando Nietzsche Chorou


Sigmund Freud (1856-1939) é considerado o pai da psicanálise e sua obra é tão importante quanto polêmica. Mas, à época, vários outros profissionais também investigavam a mesma área, entre eles, seu conterrâneo, mestre e tutor Josef Breuer (1842-1925) com quem Freud compartilharia algumas publicações posteriormente. Ambos acompanharam o caso de Bertha, referida por Anna O., uma das primeiras pacientes tratadas segundo os métodos que dariam origem a algumas das principais técnicas psicanalíticas. A bela jovem que sofria de acessos histéricos, diz a lenda, teria sido alvo da paixão de vários de seus médicos, dentre os quais o próprio Breuer.

É neste contexto histórico que se desenrola o romance "Quando Nietzsche Chorou" ("When Nietzsche Wept") de Irvin D. Yalom, psiquiatra e escritor estadunidense, lançado em 1992 e adaptado para filme homônimo em 2006. Yalom mistura fatos reais e elementos de ficção sem o menor pudor e conta a história de um encontro (fictício) entre Breuer e o filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900). O filme dirigido por Pinchas Perry, apesar de aparentemente não possuir a mesma densidade do romance, apresenta bons roteiro e cenário, garantindo a diversão daqueles que se interessam pelos interessantíssimos elementos da história, romanceada ou não.

O filme começa com um encontro entre o Dr. Josef Breuer (Bem Cross) e uma excêntrica senhorita da elite austríaca, Lou Salome (Kather Winnick), que lhe pede ajuda para tratar de um amigo, o filósofo Friedrich Nietzsche (Armand Assante) por cujo intelecto se apaixonara. Nietzsche, pobre e desconhecido, cujas tendências suicidas e enxaquecas haviam se agravado após a atribulada relação com Lou, passa a ser atendido por Breuer que tenta convencê-lo a continuar com o tratamento. Mas, percebendo seu desinteresse, Breuer pede ao filósofo para ajudá-lo a se livrar das próprias angústias e exasperações. No princípio, Nietzsche se recusa de forma categórica, alegando ser meramente um filósofo — não um médico, psicanalista ou psicólogo —, dizendo-se incapaz de resolver os próprios conflitos existenciais. Mas depois de alguma insistência, acaba concordando.

A partir daí, ambos se embrenham em uma pitoresca e cada vez mais profunda relação entre médico e paciente, onde os papeis se alternam constantemente. E Breuer, que inicialmente usara suas preocupações apenas como um artifício para convencer Nietzsche, também acaba sendo forçado a enfrentar seus próprios fantasmas, tal como o distanciamento de sua família surgido a partir de uma paixão reprimida por sua antiga paciente, Bertha (Michal Yannai). Com o tempo, as respectivas odisseias em busca do auto-conhecimento vão forjando uma sincera e salutar amizade entre os dois. Inicialmente um mero espectador, o jovem Freud (Jamie Elman) se encarrega da surpresa final com uma participação chave e decisiva.

E mesmo quem não se entusiasma, nem um pouco, com o que Nietzsche queria dizer com "amar desejar, mais do que amar o objeto de desejo", ainda assim, poderá se divertir com as representações dos pesadelos de Breuer, sem se preocupar com o que Freud diria sobre este "sádico" prazer de quem as estiver assistindo.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

A Razão, a Emoção e a Etologia


Apesar ter ouvido falar sobre o terrível acontecimento com o Titanic, é muito provável que o neerlandês Nikolaas Tinbergen (1907-1988) não o tivesse em mente ao formular as quatro perguntas que fundariam a etologia moderna. No entanto, é fato que as ações exibidas naquele fatídico momento possuíam estreita relação com a causa, a ontogênese, a filogênese e a função dos comportamentos humanos manifestados nos últimos momentos de um navio sabidamente condenado. O estabelecimento da ordem social naquela situação de crise não seria possível sem a intensiva atuação da racionalidade humana que, sendo evolutivamente herdada, deve possuir um alto valor adaptativo, tal como tantas outras características inerentes a cada particular espécie.

Como anteriormente mencionado, essa “falta de naturalidade” das ações produzidas pelo exercício da razão já era tema e controvérsia de inúmeros pensadores, muito antes de Tinbergen ou do Titanic. Não por acaso os estudiosos das mais diversas áreas têm se deparado, ao longo dos séculos, com questionamentos áridos sobre as origens e influências da razão e da emoção na vida dos seres humanos. Seria a primeira um legado divino que nos legitimaria reinar sobre os demais seres vivos da Terra? Teria a segunda sido domada enquanto a razão nos civilizava e nos diferenciava, definitivamente, do resto da criação?

Mas respostas tão distintas em situações tão similares revelam a inegável complexidade de interação entre duas características que, historicamente, foram consideradas como sendo muito diferentes. Se a predominância emocional verificada no naufrágio do Lusitania contrasta com o ordenamento social exibido no afundamento do Titanic é porque a resposta não parecia ser a racionalmente mais adequada. Sabe-se, hoje, que em situações de grande tensão, a descarga de adrenalina acaba por desencadear ações derivadas dos sistemas de auto-preservação que se sobrepõem à modulação emocional do neocórtex, responsável pela racionalidade. O retorno dessas funções cerebrais superiores se dá apenas após alguns minutos, quando um estado de exaustão se abate sobre o organismo (HENRY, J. P.; WANG, S. Effects of early stress on adult affiliative behavior. Psychoneuroendocrinology. Great Britain: Elsevier, 1998. v. 23. n. 8. p. 863-875.).

Assim, tanto a suposta dicotomia entre razão e emoção quanto os domínios de uma e de outra não parecem ser assuntos triviais. Dependem de uma infinidade de variáveis intrínsecas e extrínsecas a cada situação e influenciam, ontologicamente, o ser humano, como indivíduo e como espécie. E, ainda de uma perspectiva etológica, pode-se dizer que, selecionadas ao longo da evolução, ambas foram filogeneticamente desenhadas, apresentando causas e funções que ainda fornecerão, por muito tempo, combustível para as pesquisas científicas.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

A Emoção e o Lusitania


Pode parecer estranho — e mórbido —, mas outro trágico evento marítimo, sucedido três anos após o naufrágio do Titanic, pode servir para bem ilustrar a real complexidade do comportamento humano e demonstrar que algumas facetas de nosso ser não podem ser consideradas tão independentes, uma da outra, quanto vários pensadores idealizaram. Pelo contrário, aliás, recentes trabalhos mostram justamente que a faculdade da razão é absolutamente dependente das estruturas emocionais mais primitivas, sobre as quais foi "construída" ao longo da evolução.

No dia 7 de maio de 1915, ao adentrar em águas britânicas, o R. M. S. Lusitania, bastante similar ao Titanic, foi torpedeado por um submarino alemão. Fatalmente danificado, o navio afundou no Oceano Atlântico levando à morte 1198 de seus 1959 tripulantes. Neste caso, entretanto, diferentemente do anterior, o navio demorou apenas cerca de dezoito minutos para sucumbir completamente, não dando tempo para qualquer tipo de racionalização das vítimas. Ao que parece, tal situação levou a uma desesperada, instintiva e individual luta pela sobrevivência, o que acabou privilegiando os fisicamente mais aptos (Frey, 2010), ou seja, homens jovens, independentemente de suas respectivas classes sociais.

Talvez duas situações tão similares pudessem ser usadas para validar a hipótese sobre a decisiva intervenção racional no caso do Titanic. Foi exatamente isso que dois suíços e um australiano, ligados a faculdades de economia e finanças de seus respectivos países, fizeram, analisando comparativamente os dados históricos de ambos os naufrágios por métodos econométricos. A conclusão a que chegaram foi a de que as ações humanas, nos primeiros instantes de uma situação excessivamente tensa, tendem a ser regidas por mecanismos instintivos de sobrevivência (Frey, 2010). Parece que a natureza entendeu como vantajoso manter alternativas, subjacente à vontade da razão, para preservar a vida de um indivíduo em uma situação de perigo.

Sendo assim, não seria interessante estudar de forma metódica essas sobreposições entre dispositivos fisiológicos e mentais inerentes ao ser humano?

quarta-feira, 12 de maio de 2010

A Razão e o Titanic


Tudo ia bem na viagem inaugural do maior transatlântico produzido pelo homem até o princípio do século XX. Em uma noite fria, aos 14 de abril de 1912, o Titanic flutuava rápido sobre as águas geladas do Atlântico, levando consigo gente de várias nacionalidades e de todos os gêneros, idades e classes sociais; eram, ao todo, 2207 pessoas confirmadas a bordo, entre passageiros e membros da tripulação (FREY, B. S.; SAVAGE, D. A.; TORGLER, B. Interaction of natural survival instincts and internalized social norms exploring the Titanic and Lusitania disasters. PNAS Early Edition, New York: 2010.). Mas o inesperado choque com um gigantesco iceberg dá início ao que seria uma das maiores e mais conhecidas catástrofes na história da navegação comercial de todo o mundo.

O acidente rompe boa parte do casco de forma fatal e todas as possíveis medidas de contenção já não mais evitariam o naufrágio da embarcação. Assim, cientes da gravidade da situação, os oficiais da tripulação passam a proceder com a evacuação do navio e, ao longo das duas horas e quarenta minutos de sobrevida do Titanic, as pessoas foram sendo, organizadamente, dispostas em botes salva-vidas, dando-se prioridade às mulheres, crianças e membros de mais alta classe social. Entretanto, como não havia disponibilidade para acomodação de todos os passageiros, a maioria sucumbe com o navio e, ao final do trágico episódio, era registrado o assustador número de 1517 vítimas fatais.

Não parece simples explicar como centenas de pessoas — aliás, a maioria — decidiram aderir a códigos sociais enquanto esperavam o inevitável enfrentamento da própria morte. Talvez, dentro de uma mesma família, não fosse difícil compreender a opção de um pai pela própria morte em troca da sobrevivência de sua esposa e filhos, mas encontrar decisões altruísticas dessa natureza entre pessoas sem vínculo afetivo, como muito provavelmente ocorreu no acidente com o Titanic, é, sem dúvida, algo que merece ser estudado com maior profundidade. A hipótese é que sem a intervenção racional da mente humana, a ordem social estabelecida após o acidente não poderia ter sido mantida e o salvamento prioritário de mulheres e crianças, certamente, não teria ocorrido.

Como avaliar a validade de tal proposição? Seria possível uma análise comparativa com outra situação similar?

terça-feira, 11 de maio de 2010

Flatulências terrestres


No longínquo mar siberiano, cerca de 8 milhões de toneladas de gás metano são liberados na atmosfera a cada ano. Não, não se trata de um desastre ambiental mal resolvido por uma das gigantes indústrias de petróleo, mas de um fenômeno natural. A questão, entretanto, está em saber o quão "natural" é o citado fenômeno, haja vista sua provável dependência do aquecimento global.

O gás metano (CH4) é naturalmente gerado com a decomposição da matéria orgânica em altas pressões e temperaturas, comuns nas camadas mais inferiores do solo. Na atmosfera, possui um pronunciado efeito estufa, muito superior àquele atribuído ao gás carbônico (CO2). Logo, parece razoável supor que milhões de toneladas de metano, anualmente liberadas na atmosfera terrestre, não devem passar desapercebidas pelo clima terrestre.

O fenômeno é natural, conforme inicialmente comentado, não despertando, assim, grandes preocupações nos cientistas. O gás, tendo sido aprisionado em depósitos naturais submarinos que formam uma camada permanentemente congelada chamada de permafrost, vem sendo liberado a medida que progride, acredita-se, o descongelamento dessa camada. Ainda não se sabe ao certo se o aquecimento global, causado pelas atividades antrópicas, seria uma das causas do fenômeno na região ártica, mas, definitivamente, é um bom palpite.

Se for, mesmo, este o caso, seria bom que a preocupação com as medidas legislativas que visem a mitigação das emissões de carbono na atmosfera ganhem uma urgência que, até o momento, não apresentaram. Isto porque — parece bastante lógico — o aumento "natural" da concentração de metano na atmosfera tenderá a potencializar, de forma sinérgica, o efeito nocivo do gás carbônico, uma vez que o aquecimento pelo efeito estufa deve acelerar o descongelamento do permafrost, aumentando a liberação de metano e agravando, em um circulo vicioso, ainda mais o processo de aquecimento global.

E como a vida imita a arte, antes de dispararmos a irreversibilidade de uma catástrofe climática, também seria bom relembrarmos o que Raul Seixas constatou em suas aventuras na cidade de Thor...

"Buliram muito com o planeta
E o planeta como um cachorro eu vejo
Se ele já não aguenta mais as pulgas
Se livra delas num sacolejo.
"


segunda-feira, 10 de maio de 2010

O Conserto


"O conserto começara ao som de Tchaikovsky. Inicialmente simples, depois se complexando gradativamente. A cada ato que ouvia, fazia novas descobertas de si mesmo e ganhava novas perspectivas. Estas eram, bem verdade, tão instáveis quanto um tom qualquer tocado em meio a orquestra, mas já era alguma coisa.

Muita coisa passava por sua mente enquanto a música se desenrolava e seus pensamentos pareciam seguir o caminho das notas; oitavas acima e abaixo, períodos rápidos e lentos... Aquele estímulo, de alguma forma, relaxava sua razão cansada de argumentar em vão, deixando as reflexões a cargo de níveis superiores da consciência que, apesar de não poderem ser controlados, pelo menos não lhe causavam angústia com inúteis constatações da inexistência de respostas.

Por um instante, achou que o violinista errou uma nota, mas logo se deu conta do absurdo de seu pensamento. Quem tocava era a Orquestra da Rádio de Luxemburgo e, mesmo que não o fosse, sabia não possuir conhecimento musical suficiente para identificar um erro daquela natureza. Certamente se distraíra ao acompanhar a música. Aliás, já haviam dado lugar a Strauss e nem sequer percebera a mudança. Aquele conserto consumia quase toda sua atenção e, talvez por isso, a música acabava por ser-lhe tão agradável.

Aos poucos, seu espírito ia se acalmando e a razão, descansada, voltava, humilde, a interferir em seu refletir. Já não mais apresentava aquela forma desesperada de quando chegara ali, mas se comportava adequadamente, com intervenções sutis aos questionamentos que se fazia. Sua lógica respondia, agora, sem excessos e a ausência de soluções já não era mais uma assustadora constante em seu horizonte.

Quando apertou o último parafuso do equipamento, o concerto tocado no aparelho de som se findou. E ao final, parecia ter consertado também a própria alma.
"


domingo, 9 de maio de 2010

Feliz Dia das Mães!


Que se abstraia o viés comercial do dia das mães e se ofereçam presentes de baixo custo monetário, mas altíssimo valor agregado a todas as mães! Um soneto, por exemplo, é uma ótima opção...


Parabéns a todas as mães pelo vosso dia!

sábado, 8 de maio de 2010

Nostalgia complicada!


Quem já teve a oportunidade de ler um artigo científico — desses que são publicados em revistas especializadas — deve ter percebido que, em geral, não são de muito fácil compreensão para quem não vivencia aquela área do conhecimento. Os motivos são vários: o uso intenso de jargões — conforme comentado em "Compreensões resilientes" —, a pressuposição de conhecimentos prévios indisponíveis no momento da leitura, o próprio desconforto de quem está lendo com relação àquela grande área da qual trata o assunto, entre muitos outros. Há quem se arrepie apenas em ouvir falar de "física"...

Mas, relativizadas as especificidades, a lógica matemática é tão necessária às humanidades quanto a metodologia humanística às ciências exatas. Um exemplo disso é o das ciências biológicas que — claro, além de suas próprias peculiaridades — reúnem ambos os perfis — de exatas e humanas — de forma bastante equilibrada. As áreas frequentemente se mesclam e, talvez por isso, tem havido uma certa tendência para o surgimento de cursos de graduação com um alto nível de interdisciplinaridade. Logo, seria de se esperar que já pudéssemos ler, confortavelmente, os trabalhos de pesquisa produzidos em qualquer ramo da ciência.

Geralmente, são os jornalistas quem têm a ingrata missão de transformar informações quase incompreensíveis em textos facilmente digeríveis por um grande número de pessoas. Às vezes são cientistas capazes de escrever de forma simples sobre assuntos bastante complexos que assumem esse papel. Em ambos os casos, no entanto, o tiro pode sair pela culatra. De vez em quando, um jornalista não consegue entender direito sobre o que está escrevendo e algumas confusões acabam surgindo nas matérias científicas por aí. Noutras vezes, é o cientista que no afã de simplificar os conceitos ao máximo, acaba por torná-los confusos até para quem é daquela área de estudo.

Em uma das primeiras edições de "Uma Breve História do Tempo", Stephen Hawking, por exemplo, escreveu sobre um certo valor cosmológico, referindo-se a ele como "...milhão de milhão de milhão...", algo difícil de compreender, especialmente para quem não tem fobia de números. Dizer que a constante de Avogrado (número de átomos, ou um mol, de carbono em 12 g da substância pura) equivale a, aproximadamente, seiscentas mil vezes um milhão de milhão de milhão parece mais complexo do que se referir ao número como 6·10²³, mesmo para quem é leigo em exatas. Afinal, se dez elevado ao cubo (3) é o mesmo que mil, dez elevado a vinte e três deve dar uma clara noção da dimensão desse número. Como diria um saudoso professor de química do cursinho, "se houvesse 1 mol de pessoas na Terra, haveria gente dependurada no planeta!".

Contudo, era um professor de diagramas de fases quem tinha a melhor dica para quando tiver de enfrentar algo muito complexo — no caso, em particular, ele se referia a diagramas de fases ternários ou quaternários. Segundo ele, a primeira atitude deveria ser o de "no panic!" (ou "sem pânico!"). Afinal, com um pouco de calma, tudo poderia ser reduzido a formas mais simples.

Mas complicar assuntos é tão mais fácil que simplificá-los, não?

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Buscas, encontros e pragmatismos


Não que este autor deseje torturar um leitor ou uma leitora que deteste a área das ciências exatas, mas há certas relações entre assuntos que não merecem ser desprezadas. A curva de tensão-deformação, apresentada ontem, fez lembrar uma história típica do dia-a-dia de um engenheiro metalúrgico e que merece ser contada. Assim, seguindo um suposto "conselho" de Maquiavel de que "o bem se faz aos poucos e o mal de uma vez só", continuemos, então, por mais um dia no domínio da engenharia metalúrgica, egrégia representante das ciências exatas, apenas para apresentar uma espécie de crônica do cotidiano profissional.

Trabalhar com metal é uma arte. Quem pega um simples parafuso nas mãos pode não ter ideia do que ocorre entre o céu e a Terra para que alguém possa usá-lo. E um dos trabalhos do metalurgista que trabalha com análise de falhas é, justamente, descobrir em que ponto desta imensa cadeia de processo ocorreu o erro causador da falha observada. Quanto mais próximo do produto final o problema é detectado, mais difícil é encontrar sua causa, dado o significativo aumento de possibilidades a cada etapa extra considerada. Só para ilustrar o drama, saquemos apenas uma das várias histórias que compõem o saber prático da profissão.

Certa vez, verificou-se uma incoerência entre os valores, obtido experimentalmente e informado no certificado de qualidade do fornecedor, do limite de resistência especificado para um parafuso. Isto é um problema sério para empresas que trabalham com um sistema de qualidade assegurada, pois o controle dessas características é feito por lotes, estatisticamente, confiando-se na eficácia do sistema de quem fornece. Logo, incoerências desse tipo geram desconfiança e desencadeiam ações bastante dispendiosas para a companhia.

Ao ser questionado, o representante da empresa fornecedora do parafuso acabou confessando que o valor informado da propriedade era obtido pela conversão de uma medida de dureza e não pelos resultados de um ensaio de tração como era de se esperar. Mas, até aí, nenhum problema. O aço é, geralmente, bastante homogêneo em suas características e a conversão do valor obtido em um ensaio de dureza Brinel, por exemplo, apresenta ótima correlação com o valor do limite de resistência extraído de um ensaio de tração convencional. Entretanto, mesmo aparentemente normal, há relações que não merecem ser desprezadas e se seguiu uma minuciosa análise do problema a partir daquele ponto.

Para se produzir uma barra laminada, parte-se, normalmente, de outra mais espessa, obtida diretamente do metal líquido, que é conformada até atingir a geometria desejada — a espessura do parafuso, por exemplo. Essa deformação, entretanto, endurece o material (experimente dobrar seguidamente um arame e perceba como ele vai endurecendo até se quebrar), especialmente na superfície que entra em contato direto com as ferramentas — só um detalhe curioso: se a dureza tivesse sido medida nesta etapa, o problema, provavelmente, não teria sido detectado. Assim, para facilitar a fabricação do parafuso, a barra é levada ao forno para amolecer por um processo conhecido em metalurgia por recozimento. E era aí onde que estava a origem do problema...

No recozimento, quanto mais deformado — ou encruado, para os metalurgistas — mais facilitado é o amolecimento do aço. Logo, a superfície da barra, mais deformada, amolecia mais rapidamente que seu núcleo e, como era nele que a medida de dureza era realizada, o resultado da conversão acabava por não refletir o valor do limite de resistência do material como um todo. A solução teórica seria a aquisição, por parte da empresa fornecedora, de uma máquina de tração ou do serviço de ensaio de tração feito por laboratórios terceirizados, mas o fornecedor preferiu resolver o problema com uma "regra-de-três".

E nunca mais se ouviu falar no assunto...


quinta-feira, 6 de maio de 2010

Compreensões resilientes


Não é raro os alunos de metalurgia e materiais se verem perdidos em meio a um amontoado de definições referentes às propriedades do material, encontradas em uma única curva de tensão-deformação. Para quem não faz ideia do que seja isto, uma curva de tensão-deformação é o resultado de um teste padronizado (um corpo-de-prova com uma geometria específica tracionado a uma velocidade, ou tensão, pré-determinada) no qual, instante a instante, registra-se, na vertical, a tensão aplicada no corpo e, na horizontal, sua deformação. Daí se pode extrair valores indicativos de propriedades como o módulo de elasticidade, as tensões de escoamento, resistência e ruptura, a deformação plástica, a tenacidade, entre outras características.

Como é praxe, muitos termos se cunham e se emprestam entre as várias áreas do conhecimento humano, mas, com o tempo, vão ganhando definições cada vez mais específicas até se tornarem parte dos jargões de uma dada disciplina. Encontrar um desses termos específicos usado figurativamente em uma área distinta, apesar de comum, causa um certo estranhamento, principalmente para alguém envolvido em pesquisa, por exemplo, na área original daquele termo.

Um curioso caso é o da resiliência. O termo parece ter se cunhado na física, ciência exata, mas, de vez em quando, também aparece emprestando seu sentido às áreas humanas e biológicas. Em metalurgia, o termo se refere à energia empregada para deformar um metal elasticamente. Logo, um aço é mais resiliente que outro quando um deles demanda maior energia para atingir o mesmo estado de deformação elástica que o outro. Isto é importante porque um componente qualquer feito de um aço mais resiliente, quando sujeito a um eventual impacto em trabalho, tem maior capacidade de absorver a energia envolvida, sem prejudicar sua integridade estrutural. E é justamente essa "vantagem" que dá conotação ao termo nas outras áreas, pois, diz-se que uma pessoa possui personalidade resiliente, por exemplo, quando sua capacidade de absorver e se recuperar diante de um infortúnio é grande.

Provavelmente, em um fórum multidisciplinar, ao se ouvir, como resposta, que a resiliência é "a área sob a curva tensão-deformação na região elástica", não se poderá afirmar, sem conhecer a pergunta, se a resposta é correta ou não...


quarta-feira, 5 de maio de 2010

Recordar é viver


Aproveitando um certo clima nostálgico deste veículo comunicativo moderno, relembremos uma ilustre figura, frequentemente citada em vários dos textos aqui postados: Albert Einstein (1879-1955). Este alemão de origem judaica foi, incontestavelmente, um ícone da ciência moderna. Suas teorias da relatividade, restrita e geral, viraram o mundo científico de cabeça para baixo no princípio do século XIX. Até hoje, apesar de amplamente aceitas e aplicadas, suas ideias ainda causam uma certa polêmica entre vários estudiosos.

Einstein nasceu em Ulm, uma belíssima cidade alemã, mas viveu sua infância em Munique — outra belíssima cidade alemã na região da Baviera — para onde sua família se mudou um ano após seu nascimento. Após o fracasso do pequeno empreendimento comercial familiar, seus pais mudam, em 1894, para Milão, Itália, deixando o jovem Albert em Munique para terminar seus estudos. Entretanto, seu espírito rebelde o prejudica em sua adequação escolar e, alguns meses mais tarde, junta-se à família na Itália. Em 1900, conclui seus estudos na prestigiosa Escola Politécnica Federal (Eidgenössische Technische Hochshule) em Zurique, Suíça, mas, sem a simpatia de seus professores, não consegue uma vaga para seguir com sua carreira acadêmica. Dois anos mais tarde, torna-se assistente no departamento suíço de patentes, em Berna, seguindo com seus estudos paralelamente à sua atividade burocrática. Já em 1905, publicou os três artigos que o tornariam um dos maiores cientistas do mundo, mudando não apenas os modelos científicos vigentes na Física da época, como também o conceito humano de tempo, espaço e realidade.

Longe de pretender minimizar sua genialidade, qualquer físico minimamente interessado em história sabe que boa parte dos conceitos adotados por Einstein já haviam sido formulados por outros estudiosos. Era o caso da constância da velocidade de uma onda eletromagnética — como a luz —, prevista por James Clerk Maxwell (1831-1879), bem como a contração do espaço e o retardamento do tempo para corpos em movimento propostos pelo físico irlandês George Francis FitzGerald (1851-1901) e pelo físico holandês Hendrik Antoon Lorentz (1853-1928). De qualquer forma, foi a mudança de paradigmas — componente essencial à genialidade — proposta por Albert Einstein, ao postular a constância da velocidade da luz para todos os observadores e a inexistência do éter, que, de fato, fez a diferença.

Mas Einstein, como qualquer ser humano, também tinha suas limitações e não percebeu outra mudança de paradigmas que vinha sendo indicada por seus pares. Sua certeza determinística de universo acabou por impedi-lo de contribuir ainda mais com a ciência, unindo sua teoria da relatividade com os efeitos recém descobertos da mecânica quântica — objetivo, aliás, perseguido até hoje. Einstein estava tão certo de que a teoria quântica estava equivocada que, junto a alguns colegas, tentou ridicularizá-la idealizando um experimento cujo resultado, teoricamente inevitável, julgava ser impossível — uma espécie de reductio ad absurdum experimental. Ironicamente, este mesmo experimento, mais tarde, não apenas provou que a Teoria Quântica era válida como constatou um novo fenômeno físico que não foi bem compreendido até hoje: o emaranhamento quântico (maiores detalhes em uma antiga postagem homônima do Automorfo).

Infelizmente, Einstein não viu os resultados. Morreu antes, ainda achando que estava certo...

terça-feira, 4 de maio de 2010

Conversa ao pé do lírio


"Noutro dia, enquanto andava pelo jardim, um lírio dourado me fitou por um instante — decerto percebera minha angústia por mais que eu disfarçasse. Meneou com suas pétalas em sinal de reverência, mas não deu qualquer outro indicativo que pudesse comprovar sua atenção em mim. Os lírios não são muito afeitos a satisfazer caprichos humanos.

De qualquer forma, sentia que ele me observava com particular interesse e lamentava meu estado de espírito. Sua simples presença, ali, denunciava parte do que refletia: apesar de compreender as necessidades próprias dos seres humanos, não conseguia entender como algo criado por nós mesmos podia perturbar tanto nossos espíritos. Provavelmente, ao longo de sua breve existência, viu passar muitas outras almas como a minha, vagueando perdidas por aquelas bandas.

Sorri e, sob o sol, sentei-me de fronte a ele. Passamos, então, a conversar. Não como se faz com outro semelhante, mas de uma forma diferente, em uma espécie de linguagem universal. Claro que ouvia apenas minha própria voz na minha mente, mas, pelo menos naquele instante, tinha certeza de que era o lírio quem falava. Disse-me que seus pares, lírios, também tinham de enfrentar várias dificuldades para sobreviver, mas isto não lhes impedia de se fazerem tão belos quanto possível assim que a época da floração chegava. E faziam isto porque, de alguma forma, sabiam que doar sua beleza àquele mundo era essencial para a existência deles. Não se preocupavam se choveria no dia seguinte, se alguém os arrancaria em alguma manhã ou se algum outro ser os perturbaria em busca de néctar, pois confiavam em um propósito muito maior do que eles próprios.

E enquanto eu, sem dizer palavra, ouvia tudo o que me dizia, fui me confortando. Até que, de súbito, olhei ao redor e voltei a mim. Senti-me um tanto desconfortável com a ideia de estar ali, conversando com uma flor, afinal, lírios não falam!

Mas era tarde. Meu ânimo já havia melhorado...
"

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Já fez sua prece hoje?



Há muito tempo atrás, lá na gênese do Automorfo, a postagem "Entender-se." falava sobre a sabedoria budista e as experiências de monitoramento, por tomografia computadorizada, da atividade cerebral de monges tibetanos, revelando, neles, uma atividade incomum na região cerebral que, segundo os neurologistas, responde pelas boas emoções — como a felicidade, por exemplo. Hoje, uma reportagem, no Jornal Hoje, da Rede Globo, apresentava os resultados de estudos médicos que indicam uma menor tendência à manifestação de doenças cardiovasculares nas pessoas que praticam algum tipo de culto religioso. Para desgosto de alguns e júbilo de outros, parece que a ciência vem encontrando evidências físicas dos benefícios da religiosidade na vida das pessoas.

Segundo alguns renomados psicanalistas, como o Prof. Dr. Gilberto Safra, a experiência pessoal com o sagrado é fundamental para a boa saúde psíquica do ser humano. E mesmo sob um prisma darwinista ortodoxo, como o defendido por Richard Dawkins, não há como negar a importância da representação simbólica adquirida por meio das artes e de rituais de cunho religioso — como o sepultamento dos mortos — no peculiar desenvolvimento da espécie humana. Ao longo de milhares de anos, as mais íntimas e variadas crenças têm contribuído — e ainda contribuem — para uma melhor compreensão do próprio ser humano e de seu lugar no universo.

Infelizmente, hoje, há quem só consiga enxergar malefícios em qualquer manifestação de fé, confundindo dogmatismos individuais e/ou institucionais com os valores sagrados que fundam as religiões. Com um mínimo de boa vontade, qualquer pessoa pode verificar que não há registro de intolerância nos fundamentos éticos do judaísmo, no amor fundador do cristianismo ou na divina obediência islâmica. Também nos princípios xamânicos, nos preceitos budistas ou na lendária crença tupi não há exortações para se fazer o mal a outro ser humano, tenha ele a crença que tiver. Pelo contrário, é a tolerância, o respeito e o bom-senso que constituem qualquer ideário sagrado.

Infelizmente, foi a partir da percepção dessa necessidade imanente do ser humano que as instituições foram tomando para si a verdade das religiões, moldando-as a seus interesses políticos e econômicos. Chegou-se, hoje, ao ridículo das doutrinas institucionalizadas serem confundidas com os princípios que originaram suas filosofias. Aqueles que guardam a mística de qualquer doutrina, sabem que não há espaço para a intolerância ou desrespeito para com o outro. Sabem que há lugar para todas as crenças e, se pregam sua forma de ver o universo, fazem-no não com a presunção de quem sabe a verdade, mas com a alegria de ter encontrado o próprio caminho.

Assim, se ainda não possui um deus no seu horizonte, invente um e lhe ofereça uma prece quando precisar. Segundo modernos profetas, os médicos, essa atitude pode salvar...

domingo, 2 de maio de 2010

Haikai do Frio Súbito



A caminho do inverno, o clima paulistano se diverte pregando peças nos desprevenidos habitantes da capital. O frio aparece com a mesma velocidade que se vai, deixando transtornado quem não se acostumou com as mudanças súbitas e intensas de temperatura ao longo de um mesmo dia na cidade. Por aqui, só mesmo quem sai de casa de manhã já com a roupa da balada noturna não se surpreende com o desvario climático desta época do ano... Bem-vindo ao outono de São Paulo!


sábado, 1 de maio de 2010

O Dia Internacional do Trabalhador


A comemoração pelo Dia do Trabalhador tem sua mais remota origem na cidade de Chicago, EUA, quando, no 1º dia de maio de 1886, irrompe uma manifestação pela redução da jornada de trabalho para oito horas diárias. Seguiram-se dias de violência nos quais policiais e manifestantes se enfrentaram, deixando mortos e feridos de ambos os lados. Três anos depois, na Europa, a Segunda Internacional, cisão marxista da Associação Internacional dos Trabalhadores, decide convocar anualmente, no 1º dia de maio, uma manifestação de luta pela redução da jornada laboral. Em 1891, outro episódio violento com vários manifestantes mortos, dessa vez em Paris, reforça a data como o dia internacional das reivindicações dos trabalhadores. Entretanto, apenas no início do século seguinte, em 1919, o senado francês ratifica a jornada de oito horas diárias de trabalho, proclamando feriado nacional o dia 1º de maio naquele ano.

Nos EUA, o "Labor Day" é comemorado na primeira segunda-feira de setembro, sendo, também, um feriado nacional por lá. E, apesar de manter um certo vínculo com a causa trabalhista, está muito longe do viés socialista patente nas demais comemorações de 1º de maio em outros países ao redor do mundo. Casualmente ou não, a tradução direta do "Labor Day" estadunidense para "Dia do Trabalho" tem aparecido com uma certa frequência ao se referir a 1º de maio. Mas, pelo menos em português, "Dia Internacional do Trabalho" tem um significado radicalmente distinto de "Dia Internacional do Trabalhador", o que transforma uma inocente imprecisão linguística em um polêmico erro ideológico.

Seja como for, para se entender o real significado do feriado de 1º de maio, basta analisar comparativamente a forma como os Estados enxergavam — legislativa e juridicamente — as relações de trabalho logo após a Revolução Industrial, no final do século XIX, e depois, na atualidade. Sem pretender retornar à eterna questão levantada por Marx, ficam evidentes não apenas as conquistas dos trabalhadores como, também, a inegável influência do poder econômico, tanto na política quanto na sociedade. E, relembrando os mártires da luta trabalhista ao longo da história, são esses os avanços sociais a que se referem as celebrações do Dia Internacional do Trabalhador.

Portanto, a todos os trabalhadores que cedem parte de suas vidas para poderem sobreviver dignamente, parabéns! Hoje é um dia muito importante para todos vocês...