quinta-feira, 20 de maio de 2010

Interrelações e trivialidades


Durante a Segunda Grande Guerra, os EUA construíram, baseados em um projeto inglês, milhares de navios de carga para suprir a esquadra britânica que sofria com as frequentes baixas provocadas pelos ataques dos submarinos alemães. A emergência da situação exigia que o tempo de produção das embarcações fosse o mínimo necessário, assim, os estaleiros estadunidenses desenvolveram inovadores processos para acelerar ao máximo a fabricação dos chamados "Liberty Ships". Entre as inovações, estava a substituição dos rebites que uniam as chapas do casco pelo moderno processo de soldagem, conferindo à estrutura, além de maior rigidez, uma pronta estanqueidade. Entretanto, quando em serviço, alguns desses navios partiram ao meio — literalmente — sem qualquer aviso prévio, ocasionando, inclusive, a morte de algumas pessoas.

A primeira suspeita dos engenheiros encarregados pela investigação daquela falha surreal apontava para o uso de soldadores inexperientes, dado o volume de produção demandado dos estaleiros à época. Ledo engano. Análises mais apuradas mostraram que o tipo de aço utilizado no casco tinha uma temperatura de transição — aquela abaixo da qual o metal deixa de ser dútil, tornando-se frágil — acima da que a embarcação estaria sujeita em alguns momentos. Só que, até aquele momento, nenhum outro navio similar, mas construído com chapas do mesmo aço rebitadas, submetido a condições de trabalho semelhantes havia apresentado falha parecida. O que teria, então, causado tão pitoresco defeito?

Mais tarde, a mecânica da fratura — uma interessantíssima área de estudos de algumas engenharias como a mecânica, a naval e a metalúrgica — viria elucidar o misterioso caso dos "Liberty Ships". Descobriram que uma importante característica a ser prevista no projeto de estruturas é o ponto de instabilidade de uma eventual fratura. O controle dos parâmetros relacionados à estabilidade na propagação de uma trinca pode evitar falhas catastróficas como as que ocorreram com os navios em questão. E, apesar das propriedades mecânicas do material exercerem grande influência nessa característica — maior tenacidade, por exemplo, implica em maior estabilidade na propagação da trinca —, outras variáveis não poderiam ser esquecidas, tal como a dimensão da estrutura final — note que quebrar um copo é bem mais fácil do que um dos pequeninos cacos restantes.

Ao soldar juntas todas as chapas, os fabricantes haviam transformado o casco de cada um dos navios em uma única e gigantesca peça, contribuindo sobremaneira para que a propagação de qualquer trinca se tornasse instável e rompesse, de forma frágil, toda a estrutura de uma só vez. Em um casco rebitado, sob as mesmas condições, a trinca, eventualmente gerada, pararia em qualquer descontinuidade entre uma chapa e outra, proporcionando tempo hábil para que se procedesse com o reparo antes de uma falha catastrófica. Guardadas as devidas proporções, essa é a mesma razão pela qual se diz ser melhor quando uma ponte balança ou quando uma casa apresenta, claramente, rachaduras nas paredes. É bem provável que, antes de falharem, os sinais de que algo não vai bem sejam evidentes em tais estruturas.

Talvez não seja trivial entender o que isto tem a ver com as espadas samurais ou com as camadas sobrepostas em nanorrecobrimentos, mas é justamente a falta de trivialidade que confere uma beleza à engenharia metalúrgica ou de materiais. Isto, no entanto, é história para um outro dia...


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