sexta-feira, 30 de abril de 2010

Viagens Cronológicas


O leitor ou a leitora talvez discorde, mas parece ser bem mais comum a ideia de que o passado determina o presente e que este, por sua vez, determina o futuro. Isto talvez se deva à direção temporal única, direta e linear, segundo a qual a cronologia é construída. E as implicações desse tipo de visão são várias, entre elas, a de que o presente pode ser justificado pelo passado e a de que o futuro apenas reflete o presente. Ambas são razoavelmente aceitáveis e explicam uma variedade de atitudes humanas com relação ao próprio viver, mas, decerto, essa não seriam a única forma de se compreender a existência.

Durante uma discussão sobre as diferenças entre o pensamento de Wundt e James, adveio uma visão de mundo absolutamente excêntrica à luz do senso comum, mas que, talvez, reflita com maior precisão o transcorrer cronológico e suas consequências. Para Simão, L. M., o futuro determina o presente e este, o passado. Em outras palavras, as realizações presentes se baseiam nos objetivos de um futuro projetado que, apesar de ainda inexistente, determina o que fazemos hoje. E o passado, escravo das interpretações, é sempre descrito com base em nosso presente estado de conhecimento, alterando-se constantemente.

A ideia, entretanto, não é de todo nova, conforme advertido pela própria autora. Já na metade do século passado, George Orwell escrevia em seu livro 1984: "Who controls the past controls the future: who controls the present controls the past." (ou em tradução livre: "Quem controla o passado, controla o futuro: quem controla o presente, controla o passado."). O trecho ficou famoso o que nos leva a crer que, de alguma forma, uma alteração na linearidade de pensamento tem o poder de fazer com que compreendamos além do que nos permitiria o mero mecanicismo científico.

Mas se nada o que foi aqui escrito lhe fez muito sentido, não há com que se preocupar. O texto de hoje era apenas uma utópica tentativa de se compartilhar um "insight" que, por definição, não pode ser compartilhado. Pode-se, no máximo, acusar-lhe a existência, cabendo a cada um buscar o seu já que, infelizmente, não há fórmula para isso.

Mas, creia ou não, essas coisas existem...


quinta-feira, 29 de abril de 2010

Vício


"Dentre os vícios de todas as pessoas que conhecia, achava o seu próprio o mais patético. Sabia de gente que sempre bebia até cair ou que fumava até queimar os dedos. Tolerava a todos, sem se incomodar, mas sua própria situação o torturava todos os dias. Chegou até a procurar um psiquiatra para se curar de um quadro de transtorno obsessivo compulsivo auto-diagnosticado, mas fora advertido de que possuía uma fisiologia saudável e que, se realmente achasse seu comportamento problemático, deveria procurar um terapeuta comportamental. Marcou com um analista, mas desistiu de seguir com as sessões assim que ele lhe disse não ver qualquer problema nas suas ações cotidianas.

Agora estava ali, ainda aprisionado por seu vício, outra noite após tantas similares, repetidas ao longo dos anos. Sabia que precisava entregar um relatório importante para seu cliente no dia seguinte, mas não conseguiria produzir nada enquanto não se desvencilhasse daquilo. Tomou outro gole da xícara de café já morno e tentou, novamente, seguir com o que estava fazendo. E apesar de saber que aquilo não precisaria ser concluído naquele momento, assim não o sentia, fazendo com que sua alma se consumisse, dolorosamente, naquele impasse entre terminar o que sentia ou o que sabia ser, de fato, necessário.

Resolveu se levantar e tentar espairecer. Talvez o ar fresco lá de fora o fizesse se movimentar na direção correta. Talvez a estimulação motora produzisse a inspiração que desejava. Ou talvez um milagre o tirasse daquela situação ridícula. Mas nada aconteceu e voltou a se sentar de fronte ao papel em branco sobre a mesa. Como explicaria para seu cliente, no dia seguinte, que não havia terminado o que prometera? Como conseguiria conviver com a própria culpa tendo escolhido um destino que sabia poder ser diferente?

Remexeu-se impaciente na cadeira com a auto-estima despedaçada pelos próprios pensamentos. Olhou para o relógio e viu que já passava da meia-noite. Encontraria com o cliente logo cedo, por volta das 8:00 h, e tinha certeza de que, se tivesse iniciado à tarde, mal teria tido tempo para terminar o relatório antes daquele horário. Sentiu vontade de chorar, mas se conteve. Tentou outro gole de café, mas a xícara já estava vazia havia algum tempo. Pousou, então, o olhar sobre a escuridão que encobria o restante da sala e se sentiu pequeno. Tratou, então, de rabiscar algumas palavras no papel em branco e, finalmente, depois de horas angustiantes, uma inesperada inspiração o fez escrever seu poema.

Pronto, agora podia se dedicar ao seu relatório...
"


quarta-feira, 28 de abril de 2010

Quarta Sociológica


Não há como falar em sociologia sem mencionar pelo menos três personagens fundamentais de sua história: Durkheim, Marx e Weber. Os pensamentos dos três autores permeiam, se não todo, boa parte dos estudos sociológicos do mundo ocidental. Contribuíram, cada qual a seu tempo, para uma maior compreensão das influências sociais sobre os indivíduos, deixando uma vasta obra que influencia a área até hoje. Capturar a essência do pensamento de cada autor sem uma análise minuciosa de seus escritos é praticamente impossível, mas talvez alguns de seus textos chaves forneçam uma noção útil a curiosos como este autor.

Émile Durkheim (1858-1917) era francês e fundou a escola francesa de sociologia. Dono de uma metodologia invejável, combinava a pesquisa empírica com a teoria sociológica e foi um dos maiores teóricos do conceito de coesão social. Um de seus principais e mais conhecidos livros publicados foi "O Suicídio" (1897) em que classifica os suicídios em três categorias: egoísta, altruísta e anômico. Para tanto, baseou-se, sobretudo, nos índices de suicídio verificados nas diferentes comunidades religiosas — católicos, protestantes e judeus — estabelecidas na europa do século XIX. Uma de suas principais conclusões foi a de que os índices de suicídio eram influenciados pelo nível de coesão social de cada comunidade, evidenciando o efeito social sobre o indivíduo.

Anterior à Durkheim, o alemão Karl Heinrich Marx (1818-1883) foi um pensador revolucionário que fundou a doutrina comunista. De maneira geral, suas ideias tiveram maior impacto na economia e na política, mas também foram fundamentais para a construção da moderna ciência sociológica. Sua principal obra foi, sem dúvida, "O Capital" (1867), porém foi "O Manifesto Comunista" (1848), escrito em parceria com Engels — como já mencionado por aqui em "O Manifesto e a Sociedade" —, que inaugurou a projeção internacional de seu pensamento. Uma de suas principais contribuições para a sociologia foi a de ter explicitado o efeito da organização social, baseada na forma de produção capitalista, sobre as decisões de cada cidadão.

Finalmente, Maximillian Carl Emil Weber (1864-1920), outro alemão, também é considerado um dos fundadores da sociologia moderna. Sua principal obra foi "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo" (1920) na qual discorre sobre como ideias sagradas para o protestantismo, em especial o calvinista, podiam, através da racionalização do trabalho, ser transferidas para um mundo profano e influenciar a organização social da época. Já na introdução do texto, faz uma apologia ao conhecimento ocidental e explica que a essência do capitalismo moderno já estaria presente desde os primórdios das relações comerciais. Weber, contrapondo-se a Marx, parte de um dado empírico — de que a maioria dos dirigentes da época eram protestantes, especialmente na Alemanha — e tenta demonstrar que a motivação para a sociedade se organizar de uma determinada forma não dependia exclusivamente da lógica econômica, mas de um ethos característico do povo.

Graças a esses autores, a sociologia, hoje, pode, sem nos eximir da responsabilidade pelas posições pessoais, ajudar-nos a compreender que devemos muito do que somos a algo maior do que nós mesmos: a sociedade.


terça-feira, 27 de abril de 2010

Problemas de atualização e cache...


Há uma visão psicanalítica de que o mundo humano, como construído, espelha o próprio organismo: entradas, saídas, janelas, interior, exterior... Seja como for, fato é que analogias entre os seres humanos e a infinidade de objetos que permeiam nosso cotidiano é algo relativamente comum de se encontrar, especialmente no que diz respeito aos nossos tão úteis e, hoje, praticamente indispensáveis, microcomputadores com seus programas incríveis. E a relação entre máquina e ser humano anda tão próxima que as analogias aparecem em qualquer direção, tanto do homem para a máquina quanto vice-versa. Já ninguém mais se assusta quando alguém, sob grande tensão, "dá pau" ou quando o micro do escritório "surta".

Alguns dizem, inclusive, que não se pode demonstrar pressa ao lidar com computadores para que eles não comecem a se comportar de maneira estranha, deixando qualquer usuário maluco. Um exemplo típico dessas formas estranhas surge quando um sistema baseado em ambiente de rede — como a internet ou intranet — deixa, subitamente, de funcionar adequadamente. Aqueles com um pouquinho de experiência em informática, já sabem que um grande candidato a causador do misterioso mau funcionamento é o bendito "cache" do navegador. O cache nada mais é do que um entreposto, entre o servidor do sistema e a interface manipulada pelo usuário, responsável pelo armazenamento temporário de arquivos mais frequentemente usados. Apagar todo o conteúdo do cache obriga o programa a recarregar todos os arquivos necessários ao funcionamento do sistema, inclusive aquele que, por estar desatualizado, estava impedindo a realização adequada da operação.

Guardadas as devidas proporções, o ser humano também tem um cache, constituído por uma série de conceitos frequentemente utilizados nas análises de situações e tomadas de decisão. Vez por outra, algo que já estamos cansados de fazer, simplesmente não se desenvolve e, por mais que procuramos, as razões da falha não aparecem. Usualmente, quando isso acontece, estamos cansados e precisamos parar o que estamos fazendo, respirar e apagar nosso cache de ideias previamente concebidas. Sem a devida atualização, uma alteração sutil na realidade pode não ser percebida e ocasionar grandes problemas.

Assim, aqueles com um pouquinho de experiência no "help desk" da vida, recomendariam reavaliar constantemente os próprios conceitos, evitando problemas de atualização e cache ao longo da existência.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Para transitar melhor...


Em São Paulo, dois dias na semana parecem ser especiais para se falar de trânsito: segunda e sexta-feira. Se bem que, para quem reside na capital paulista, congestionamento é um assunto um tanto redundante. Assim, deixemos o insolúvel problema do tráfego para falar sobre outras curiosidades do trânsito caótico da cidade, apesar da inspiradora segunda-feira.

Há algumas regras de direção que parecem não ser bem explicadas durante as aulas necessárias à obtenção de licença para dirigir. Umas são bastante sutis, outras, nem tanto. Decerto, há quem as desrespeite deliberadamente, entretanto, neste caso, não há muito o que se fazer. Mas, nos demais casos, quem sabe o mero relembrar das boas práticas em algum recanto perdido na internet — como este — ajude divulgá-las, aumentando a boa convivência no trânsito paulistano...

A primeira já quase não é mais uma regra, afinal, não há notícias de punições à quem a desrespeite. De qualquer forma, o bom senso, simplesmente, já deveria ser o suficiente para que fosse cumprida. A pista da esquerda, especialmente em uma via expressa, serve à ultrapassagem. Logo, deve ser deixada a pista da esquerda livre à quem vem detrás em velocidade para que a ultrapassagem possa ser feita com segurança. O fato de já se estar à velocidade máxima permitida na via não habilita ninguém a se manter bloqueando a pista da esquerda para possíveis infratores de velocidade — roubar o ladrão também é crime.

A segunda se refere à preferencial que é de quem já está na rotatória, exceto quando expressamente sinalizado do contrário. Simples, não? Mas muito pouca gente parece entender isso. Independentemente do fluxo de cada via, quando há uma rotatória no cruzamento, tem preferência aqueles já estão na rotatória. Repetindo: a preferencial é sempre de quem já está na rotatória, exceto quando o contrário estiver sinalizado. Deixar a área da rotatória livre é uma dedução, também, bastante lógica. E se não estiver acreditando neste autor, há uma animação educativa na página da Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo (CET-SP).

A terceira, também, não é uma regra. Aliás, nem de bom senso poderia ser chamada de tão óbvia. Ao fazer uma conversão — como um retorno, por exemplo — em qualquer via, havendo uma faixa exclusiva para conversão, não há a necessidade de esperar o fluxo parar para realizá-la. Isto porque, sendo exclusiva à conversão, ninguém no fluxo original da via acessada está autorizado a usá-la. Logo, basta uma rápida verificação para ver se não vem algum alucinado — há sempre que se considerar esta possibilidade — e a passagem está livre.

Nem é preciso mencionar outras como aguardar que o pedestre atravesse na faixa de segurança — mesmo sem o semáforo —, dar passagem quando alguém sinaliza, nunca parar em vias movimentadas, etc. Mas deixemos os tópicos para alguma outra segunda ou sexta-feira infernais...

domingo, 25 de abril de 2010

Quando o mundo não para...


E para a completar a semana poeticamente, nada melhor do que se inspirar naquele a quem chamaram "poetinha", Vinicius de Moraes. Ainda referente à sua composição, apresentada em "O lado B.", o poeta afirma, em um dos versos, que não "há nada sem separação". Perguntemos, então, se mesmo com separação, ainda assim, poderia não haver nada...


sábado, 24 de abril de 2010

Homem Primata — Parte IV


Não obstante todas essas evoluções e revoluções, muito pouco — ou nada — mudou na fisiologia humana que continua praticamente igual a de nossos ancestrais primatas de dez mil anos atrás. E o fato de não ter havido uma mudança genética significativa durante esse período, sugere que o "pulo-do-gato" na distinção da espécie humana do resto do reino animal tenha se dado em um nível psico-social — como isto aconteceu, exatamente, é uma outra história que deve render um Nobel à quem descobrir. E a partir dessa mais-do-que-razoável inferência, é possível se ter uma noção do quão relevantes, para o desenvolvimento humano, são a epistemologia e a humildade.

Com relação à primeira, pode-se dizer que não há como negar a importância de descobertas simples — e que, hoje, parece-nos banais — como saber que o fogo poderia transformar certos produtos tóxicos em comestíveis. Cada avanço, por mais insignificante que pareça, contribuiu para que pudéssemos, no atual momento, pretender enviar alguém a outro planeta. Mesmo os equívocos, evidenciando por onde não seguir, foram fundamentais para delinear o avançado estado tecnológico em que a humanidade se encontra no presente. Conceitos científicos esdrúxulos atualmente eram, em seu tempo, amplamente aceitos e defendidos de forma acalorada por muitos. Outros, considerados absurdos em um determinado período, acabaram, mais tarde, mostrando-se adequados se considerados sob uma nova perspectiva.

Só para citar um exemplo, a força gravitacional de Newton, difícil de ser aceita em sua época, tornou-se tão comum para os mortais que seria um sacrilégio questionar sua existência. Hoje, entretanto, busca-se explicar o efeito da atração gravitacional não mais pela ação de uma força, mas pela troca de partículas subatômicas¹ entre corpos com massa. Desprezar, no entanto, a contribuição de Aristóteles porque ele acreditava que corpos com massas diferentes caiam na Terra com velocidades diferentes é, no mínimo, ignorar a forma como o saber humano é construído ao longo do tempo.

Mas talvez a falta de perspectiva epistemológica seja apenas um efeito colateral de uma doença grave e cada vez mais comum neste momento histórico: a falta de humildade. Este é o pior inimigo da aprendizagem porque aquele que já sabe, não tem como aprender. A cada certeza científica defendida com unhas e dentes, morre a possibilidade de uma nova descoberta no futuro. A cada fato desprezado, simplesmente por não se enquadrar à metodologia científica vigente, perde-se um rico mundo de novos conhecimentos.

Àqueles com absoluta certeza de seus próprios pontos de vista, este autor pede sinceras desculpas e lembra que não há por que se preocupar com qualquer ponto discordante deste texto, já que não existe certeza sobre o que foi exposto aqui.


sexta-feira, 23 de abril de 2010

Homem Primata — Parte III


Pouco a pouco, com a popularização da escrita, foi surgindo a necessidade de se reproduzir os textos de uma forma mais eficiente e barata. Assim, é inventada a imprensa no seio da revolução burguesa, alterando, definitivamente, a forma da humanidade se relacionar com o conhecimento produzido. O intercâmbio de informações em nível mundial, ainda que restrito a uma pequena elite, passava de utopia a realidade, aumentando, exponencialmente, as conquistas tecnológicas dos H. sapiens. A isso se seguiu o desenvolvimento de todos os dispositivos de comunicação disponíveis até os dias de hoje, como o rádio, o telefone, a televisão, etc. E a cultura humana, claro, não poderia sair icólume de tudo isso e se alterou, mais uma vez, profunda e irreversivelmente. Surgia, então, a era da informação.

Tente não aprender nada novo por um único dia e perceberá como isto é difícil na atualidade. A incessante torrente de informações lhe força a conhecer as regras de uma nova promoção — mesmo que para, apenas, decidir não participar —, as implicações do tempo na Groenlândia para o resto do globo, as potencialidades do processamento quântico na determinação de variáveis multidimensionais ou mesmo as "provas" de seu candidato ter falado, ou não, a verdade durante uma sabatina política. O acesso à informação, que antes limitava o compartilhar do conhecimento, acabou por se tornar um problema moderno ao saturar,  constantemente, a aprendizagem humana.

Como bem lembra Pozo, nem São Tomás de Aquino, com sua prodigiosa memória (Boorstin apud Pozo, 2002), capaz de reproduzir as aulas de seus professores com tamanha precisão, poderia, nas últimas décadas, memorizar uma fração significativa de tudo a que fomos expostos. Logo, a capacidade de retenção e reprodução foi deixando de contar tanto e deu lugar à de selecionar e interrelacionar conteúdos para produzir estratégias de ação efetivas, obtendo alguma previsão e controle no ambiente dinâmico — talvez caótico — que criamos e no qual escolhemos viver. Obviamente, não se está querendo dizer com isso que o conteúdo não seja essencial na aprendizagem — na hora da cirurgia, por exemplo, um médico não pode consultar um manual de anatomia para saber se está cortando o tecido correto — mas que, apenas ele, já há algum tempo, não é mais suficiente para suprir as demandas da recente conjuntura.

E quando a poeira da última revolução parecia ter-se assentado, eis que surge o furacão da internet para colocar tudo de pernas para o ar novamente. Nem as sagradas instituições jornalísticas mundiais restaram de pé e foram forçadas a rever completamente seus conceitos para conseguirem sobreviver. A relação com o conhecimento, mais uma vez, foi fundamentalmente alterada e, com ela, toda a humanidade e sua cultura. Basta verificar que, hoje — ainda que para uma elite restrita, como durante a invenção da imprensa —, o que renomadas instituições dizem está tão disponível quanto as opiniões pessoais de qualquer cidadão anônimo em algum lugar do planeta. Cada dia mais, obras raras e inacessíveis vêm sendo disponibilizadas para qualquer pessoa conectada à grande rede mundial de computadores e o mesmo se aplica à produção científica mundial.

Se 2010 anos atrás já não era possível comparar a espécie humana com qualquer outro ser vivente da Terra, e agora, então?


quinta-feira, 22 de abril de 2010

Homem Primata — Parte II


Pode-se dizer que a revolução humana principia, de fato, quando os grunhidos comunicativos passam a se repetir e ter algum sentido atribuído, algo que só seria possível em um grupo vivendo em sociedade — afinal, não bastaria alguém grunhir com um sentido sem que outro estivesse próximo para entendê-lo. Lenta e paulatinamente, portanto, os indivíduos que exibiam maior habilidade para articular sons devem ter sido selecionados ao longo de uns poucos milhares de anos, até que algumas conversas primitivas se tornassem possíveis. Logo, a capacidade de trocar informações legava ao grupo a possibilidade de compartilhar conhecimentos e experiências que persistiriam por gerações. Mas ainda havia uma significativa barreira a transpor: a limitação da memória. As tradições orais, além de demandar exessivamente a memória de seus seguidores, estavam sujeitas, frequentemente, a más interpretações, distorções, fragmentação e demais problemas associados à "síndrome do telefone-sem-fio".

Eis que, então, alguns comerciantes fenícios, preocupados com o registro contábil de suas atividades, desenvolvem um conjunto de símbolos gráficos padronizados que permitia a qualquer pessoa — que obviamente conhecesse o padrão — ter acesso a informações precisas sobre as transações comerciais. Não só no oriente médio, mas, independentemente, em outras regiões do planeta, a escrita surgiu como uma das primeiras grandes revoluções da recém-nascida humanidade — note que as escritas mais antigas têm cerca de 6000 anos apenas. O conhecimento germinado na habilidade da fala, agora, florescia nas folhas de papiro, tabuletas de argila, cera, pedra e onde mais se pudesse registrar os conceitos formulados pela mente humana. A escrita passava a exercer, então, o valioso papel de "memória da humanidade".

Mas, ainda que o avanço tivesse sido enorme, o acesso às fontes de informação era muito difícil. Um grego que quisesse estudar uma relíquia hieróglifa egípcia, por exemplo, teria de atravessar todo o Mediterrâneo para vê-la e, caso quisesse retornar com as informações para casa, teria que decorá-las ipsis litteris, como diriam os romanos. Esta dificuldade no trânsito das informações, continuava a demandar muito da memória humana, fazendo com que os métodos de aprendizagem privilegiassem a memorização literal de conteúdo. Aliás, os primeiros registros de truques mnemônicos usados até os dias de hoje datam do século V a.C. e são atribuídos ao poeta grego Simônides de Ceos (Pozo, J. I. Aprendizes e mestres: a nova cultura da aprendizagem. Artmed, 2002.). Logo, a semelhança com boa parte das metodologias modernas de ensino, como pode ser percebido, não parece ser mera coincidência.

Assim, já no ano 0 cristão, mesmo com uma genética pré-histórica, o nível de desenvolvimento do ser "social" humano já não podia mais ser comparado ao de qualquer outro animal na Terra. Mas, além da fala e da escrita, algo mais poderia influenciar a evolução da humanidade de maneira tão significativa?


quarta-feira, 21 de abril de 2010

Homem Primata — Parte I


Se uma caridosa família assumisse, hoje, a criação de um frágil rebento do tempo das cavernas — digamos, de uns dez ou quinze mil anos atrás —, ele, ou ela, poderia se tornar um distinto representante dos médicos, advogados, engenheiros, ou qualquer outro grupo profissional, sem grandes problemas. Talvez até enfrentasse algumas dificuldades mas, definitivamente, não muito diferentes das de qualquer garoto da mesma idade. Isto porque, geneticamente, não houve alterações muito significativas nesse período de tempo. Chamar, aliás, uma dezena de milênios de período de tempo já é um exagero em comparação com a idade do planeta. Uma fração de um instante seria, provavelmente, mais indicado.

Uma das questões das provas vestibulares do ano passado falava justamente sobre isso. Colocássemos a história geológica da Terra em um período de doze horas, toda a história humana não seria suficiente para preencher sequer o meio minuto final do período. Não obstante, há ainda quem se ache absolutamente importante neste universo. Mas o que teria, em um ínfimo instante da evolução, transformado primatas que se alimentavam de tubéculos, larvas, frutos e, nos primórdios, até carniça, em seres tão evoluídos ao ponto de lhe ser possível pensar algo dessa natureza?

Infelizmente, como tudo na vida, não há como saber a resposta com certeza. Pode-se, entretanto, inferi-la com base em uma série de achados arqueológicos e o exercício metódico da razão. Assim, suspeita-se que a organização social humana e aprendizagem diferenciada da espécie tenham lançado as bases para a revolução que nos transformou em senhores do planeta Terra.

Antes, porém, cabe algumas observações muito pertinentes para exercitar a humildade dos mais afoitos: há várias outras espécies animais com organizações sociais bem estabelecidas, principalmente — mas não exclusivamente — entre nossos primos primatas superiores. Não somos os únicos que usam ferramentas, que se comunicam, que brincam, que aprendem, que ficam alegres ou deprimidos, enfim, não há diferenças exorbitantes entre a espécie H. sapiens e as demais da mesma ordem. Inclusive, como discutido aqui em "Medicina Evolutiva", há características que compartilhamos com todo filo dos vertebrados, como o cruzamento da traqueia com o esôfago.

Mas fato é que nos organizamos mais eficientemente que os demais seres da Criação. Por que?


terça-feira, 20 de abril de 2010

A Emoção e a Razão — Parte II


“O coração tem razões que a razão desconhece.” (Blaise Pascal, filósofo francês do século XVII)

Desde então, muitas pesquisas têm sido feitas com o objetivo de se compreender melhor o funcionamento dos processos mentais e as respectivas correlações com áreas específicas do cérebro. A razão e a emoção que, segundo Descartes, eram regidas pelo corpo e pela alma, respectiva e separadamente, passaram a ser compreendidas de uma forma menos dual pela ciência. Resultados recentes indicam que “a emoção é um fator que influencia, modula e pode ser até mesmo preponderante em sistemas classicamente cognitivos como na memória e aprendizado” (CARVALHO, D. Emoção. In: MOREIRA, R. G. et a. Livro do VI curso de Inverno Tópicos em Fisiologia Comparativa. São Paulo: IB-USP, 2009. p. 382-390.).

Até as decisões aparentemente racionais, para a frustração dos cartesianos mais exaltados, parecem ser profundamente influenciadas pelas emoções. A neurociência, atualmente, parte do pressuposto que as decisões não são meras escolhas entre alternativas, mas, sim, um processo dependente da experiência individual daquele que decide, associada à sua capacidade de identificar os principais elementos que devem guiar sua escolha face à situação. Dependem, portanto, não apenas do contexto ambiental como também dos estados internos do organismo, tanto em humanos como em outros animais (CORRÊA, C. M. C. Tomada de decisões. In: MOREIRA, R. G. et a. Livro do VI curso de Inverno Tópicos em Fisiologia Comparativa. São Paulo: IB-USP, 2009. p. 374-381.).

Damásio, em sua obra, daria razão a Pascal, cuja filosofia poética foi citada na epígrafe, ao concluir que não seria adequado tratar razão e emoção como áreas distintas, uma vez que a razão acaba por resultar da avaliação emocional de um determinado ato (DAMÁSIO, A. R. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.). Como será visto em outra oportunidade, há uma série de outros casos clínicos — além do de Phineas P. Gage — e diversas observações experimentais que vão ao encontro desse argumento.

Felizmente, há, ainda, muito mais a se descobrir e os poetas podem ficar tranquilos...


segunda-feira, 19 de abril de 2010

A Emoção e a Razão — Parte I


O coração tem razões que a razão desconhece.” (Blaise Pascal, filósofo francês do século XVII)

Supostamente, é a partir da rara união entre duas “genéticas” tão distintas, quanto a da razão e a da emoção, que se forma o embrião quimérico da consciência humana. Mas, independentemente de serem diferentes ou não, formam um ser único que não mais poderá prescindir de uma ou outra para existir. Seria um erro, portanto, presumir que alguém mais propenso à racionalidade, ou às emoções, fosse melhor ou pior que seus semelhantes. Ambas as características são necessárias e esta indissociabilidade entre razão e emoção, ponto chave para uma adequada compreensão da natureza humana, constituirá o eixo central da argumentação deste texto.

Recentes avanços na área da neurobiologia veem correlacionando certas regiões cerebrais ligadas a cada um dos processos mentais da mente humana. Muitos desses estudos são realizados comparativamente com animais — o que, de certa forma, limita os possíveis resultados — e outros com pacientes humanos que sofreram lesões cerebrais. Um dos primeiros casos relevantes estudados foi o de Phineas P. Gage, ricamente descrito por António R. Damásio em seu livro O Erro de Descartes (DAMÁSIO, A. R. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.).

Gage era um capataz da construção civil, à época, em 1848, com 25 anos de idade, que, ao substituir um de seus homens nas obras da Estrada de Ferro Rutland & Burlington em Vermont, Nova Inglaterra, sofre um grave acidente de trabalho que lesa seriamente o lobo frontal de seu cérebro. Ao calcar, acidentalmente, uma carga de pólvora na rocha, provoca uma explosão que arremessa sua ferramenta, uma barra cilíndrica de ferro com cerca 100 x 3 cm, há mais de 30 m de distância do local, não sem antes trespassar o crânio de Gage. A barra havia entrado pelo lado esquerdo de sua face e saído pelo topo de sua cabeça, entretanto, contra todas as expectativas, ele não apenas sobreviveu ao acidente, como também se manteve consciente a ponto de explicar os detalhes do ocorrido ao médico que lhe atendeu.

Cerca de dois meses mais tarde, Phineas P. Gage já havia se recuperado, mas não era mais o mesmo. Apesar de sua recuperação física ter sido completa — apenas a perda da visão do olho esquerdo lhe sobrara como sequela —, seu comportamento foi drasticamente alterado. Sua personalidade, antes socialmente louvável, depois do acidente se tornou irreverente, indolente, desrespeitosa, volúvel e extremamente prejudicial ao seu convívio social. Também sua capacidade de se emocionar e tomar decisões fora prejudicada. Estudos posteriores revelaram que a alteração de seu comportamento havia se dado pela lesão que sofrera naquela região cerebral específica.


domingo, 18 de abril de 2010

Haikai da Continuidade



Decidir-se pode ser uma ação simples, mas nem sempre fácil. Especialmente quando o tempo não dá trégua para que o complexo neocórtex humano faça todas as considerações que considere pertinente antes de escolher uma dentre inúmeras possibilidades, aparentes ou não. Nesses casos, às vezes, é muito útil seguir o exemplo de nossos coabitantes terrestres, "menos evoluídos", que, ao invés de muito refletirem, fazem o mais simples e dão apenas o próximo passo necessário ou o próximo bater de asas. Afinal, o mundo não para para ninguém descer...

sábado, 17 de abril de 2010

O lado B.


Poucos devem se lembrar, mas existiu, em um tempo remoto, uma forma um tanto arcaica de se comercializar músicas e que fazia a alegria da grandes gravadoras: os discos de vinil. Naquela época, a pirataria musical era incipiente — se é que existia — e, com pouquíssima concorrência, o negócio musical era altamente rentável. Mas, aos poucos, as estrias no plástico que produziam o som pela vibração foram substituídas por estrias no plástico que produziam o som pela interferência do raio laser na forma digital. Hoje, praticamente, não há mais discos, estrias ou laser e as músicas vagam eletronicamente, transmutando-se entre ondas eletromagnéticas, registros magnéticos e, claro, som.

Nessa transição, enquanto as crianças aprendiam a dominar seus "MP3 Players" com maestria, a indústria fonográfica surtava em desespero e usava, mundialmente, tudo o que lhe restava de poder político-econômico para criar dificuldades legais ao compartilhamento de músicas, sob a alegação de proteger os direitos autorais. Logo, fiscais autuando escolas, por tocarem músicas de quadrilha nas festas juninas infantis sem o devido pagamento dos direitos autorais, tornou-se uma cena corriqueira. Mas, tal como os vinis, a história também tem um outro lado que proporcionou uma maior democratização musical, a redução de monopólios culturais, uma certa melhoria da obra musical — ninguém mais vende um disco inteiro por causa de uma única boa música —, a criação de formas mais inteligentes de comercialização musical, etc.

Mas, na realidade, toda essa palração era só para introduzir o real motivo desta postagem: o lado Bom. Procurando com cuidado, consegue-se achar coisas realmente muito boas onde menos se espera. A música de abertura da novela das oito é um bom exemplo disso. A composição de Toquinho e Vinicius de Moraes é de beleza e profundidade singulares. Tão bela que vale a pena até parar o que se está fazendo por alguns instantes só para ouvir, ao longe, a novela começando...


Sei lá a Vida Tem Sempre Razão
Composição: Toquinho / Vinicius de Moraes

Tem dias que eu fico pensando na vida
E sinceramente não vejo saída
Como é por exemplo que dá pra entender
A gente mal nasce e começa a morrer
Depois da chegada vem sempre a partida
Porque não há nada sem separação

Sei lá, sei lá
A vida é uma grande ilusão
Sei lá, Sei lá
A vida tem sempre razão

A gente nem sabe que males se apronta
Fazendo de conta, fingindo esquecer
Que nada renasce antes que se acabe
E o sol que desponta tem que anoitecer
De nada adianta ficar-se de fora
A hora do sim é o descuido do não

Sei lá, sei lá
Só sei que é preciso paixão
Sei lá, sei lá
A vida tem sempre razão

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Ética !Kung


Os !Kung são um pequeno grupo do povo San que vive próximo à fronteira de Botswana e Namíbia, ao norte do deserto de Kalahari no continente africano. Caçadores-coletores, originalmente nômades, os !Kung têm seu modo de vida pesquisado desde a década de 1960, especialmente por pesquisadores da Universidade de Harvard, já que seus hábitos pouco mudaram nos últimos milênios. Atualmente, há pouquíssimos povos na mesma condição ao redor do mundo, limitando os estudos de seus costumes e organização social, bastante relevantes para auxiliar na compreensão da sociedade moderna que se originou, provavelmente, a partir de grupos com padrões de comportamento similares.

No século XIX, os antropólogos ainda encaravam esses grupos com um certo preconceito, considerando-os selvagens e primitivos. A imposição de interpretações sob uma visão ocidental levava a uma série de equívocos quanto aos costumes desses povos, interpretados, geralmente, como gestos desesperados por causa da necessidade. A realidade, entretanto, era diversa e os estudos que se seguiram mostraram que tais sociedades guardavam uma rica cultura e vários conhecimentos perfeitamente adaptados às suas necessidades. No caso dos !Kung, pode-se citar, como exemplo, a constante mudança dos acampamentos para locais mais próximos aos recursos naturais que, longe de ser uma busca aflitiva por alimentos, devia-se a uma mera questão de conveniência que objetivava diminuir o percurso necessário à coleta diária.

Os !Kung apresentam uma rica cultura baseada na oralidade — já que, sendo nômades, não seria viável carregar registros materiais —, são hábeis caçadores — capazes de identificar um animal e suas condições pelo rastro —, naturalistas e botânicos, reconhecendo mais de 200 espécies de plantas, muitas delas comestíveis. Com uma dieta predominantemente vegetal, contendo apenas 30% a 40% de carne, os homens se ocupam da caça e as mulheres da coleta vegetal e do cuidado infantil.

Em "A evolução da humanidade" (São Paulo: Melhoramentos, 1981), Richard E. Leakey apresenta ainda outras interessantes características da ética !Kung. Segundo o autor, não há estocagem de suprimentos visando uma eventual escassez futura. Os recursos são igualmente compartilhados entre os membros do grupo, especialmente a carne, mais rara, que atende a redes de parentesco, alianças e obrigações, muito importantes para a comunidade. Paralelamente à reciprocidade, marco central na conduta da vida social do grupo, o igualitarismo se apresenta em alto grau, de forma a não existir chefes ou líderes. Os eventuais conflitos são rapidamente resolvidos coletivamente, antes que possam ameaçar a harmonia da comunidade. Além de um forte senso de responsabilidade individual para com o grupo, os !Kung ainda guardam alguns rituais usados para desencorajar a arrogância e a vaidade de qualquer membro. Quando um caçador é bem sucedido, por exemplo, este se manifesta de forma a minimizar suas ações e o grupo zomba e atenua seu feito, evitando prestígio ou diferenciação individual devido a talentos pessoais.

Por pressão governamental, alguns grupos passaram a adotar uma vida sedentária, baseada na agricultura e pecuária. Nestes grupos, entretanto, notou-se um aumento populacional, elevação da taxa de natalidade, surgimento de diferentes graus de hierarquização, depreciação do papel feminino no grupo, violência social, acúmulo material, etc., tornando obsoleta a antiga ética !Kung.

Qualquer semelhança com a moderna estrutura social, não será uma mera coincidência...


quinta-feira, 15 de abril de 2010

Vai um cafezinho aí?


O café é uma das bebidas mais populares ao redor de todo o mundo. Resultado da infusão das sementes, torradas e moídas, de plantas do gênero Coffea — cujas espécies mais comuns no Brasil são a arabica (arábica) e canephora (robusta) — a bebida tem um sabor peculiar e faz parte da cotidiano de muita gente. Foram os árabes quem descobriram a bebida, sendo que os primeiros indícios de sua existência remontam ao século XV, dentro dos monastérios sufis.

O Brasil, maior produtor do grão, já possuiu quase que o monopólio do produto no mundo ao ponto de milhões de toneladas de café, na era Vargas, serem queimadas para fazer subir o preço do produto no mercado internacional. Além disso, pode-se dizer que o estado de São Paulo deve boa parte de sua primazia econômica atual à produção cafeeira que rivalizava com a pecuária leiteiria de nossos vizinhos mineiros no princípio do século passado.

Não bastasse a importância econômica, histórica e cultural do café, a bebida é uma delícia e costuma fazer muito bem a saúde daqueles que a consomem com regularidade. Duas xícaras (300 mL) ou mais, tomadas diariamente, são suficientes para reduzir os riscos de ataques cardíacos, internações por arritmia, desenvolvimento de doenças como Alzheimer, Parkinson e diabetes, etc. Um recente estudo da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, coordenado pela nutricionista Dra. Daniela Sartorelli, por exemplo, correlacionou o hábito de se tomar um cafezinho após às refeições com o efeito protetor contra a diabetes tipo 2.

Para quem procura subsídios para embasar, cientificamente, o próprio hábito de tomar café, o caderno de Saúde da Folha de São Paulo do dia 1º de abril pode ser uma boa opção. A edição traz uma relação de estudos, desenvolvidos ao longo dos últimos anos, elencando prós e contras da ingestão habitual de café. As informações abaixo foram compiladas da reportagem:


Assim, ninguém precisará mais se sentir culpado pelas saídas básicas para o café ao longo do dia, afinal, além da manutenção da saúde mental, parece haver também significativos ganhos fisiológicos!

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Informar pra quê?


Em 11 de fevereiro de 2010, a Folha de São Paulo noticiou a posição sobre os organismos geneticamente modificados (OGM ou, popularmente, transgênicos) do presidente da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CNTBio) — o agrônomo Edilson Paiva, escolhido no dia anterior. Segundo ele, favorável à liberação comercial das variedades transgênicas no país, a rotulagem dos alimentos contendo OGMs, por não causarem risco nenhum, seria desnecessária. Paiva, doutor em engenharia genética, foi pesquisador da Embrapa por mais de trinta anos e substituiu Walter Colli, ex-presidente da comissão.

Os defensores dos OGMs são unânimes em garantir a biossegurança desses organismos e apresentam uma extensa lista de vantagens que os tornariam muito mais produtivos e vantajosos. O que ninguém sabe explicar é por que, sendo tão melhores economicamente, há tanta resistência em, simplesmente, identificá-los e proceder com os estudos de longo prazo requeridos pela maior parte dos grupos da sociedade civil contrários à sua liberação indiscriminada. Como já comentado por aqui em "Ética Transgênica", qual seria a justificativa plausível para se esconder dos consumidores o que, de fato, estão comprando?

Segundo a mesma reportagem, Paiva disse ainda, referindo-se aos ativistas ambientais, que "os grupos contrários são muito eficientes em assustar" as pessoas, como se alertas sobre efeitos maléficos à saúde fossem eficazes para impedir a venda de qualquer coisa. Se assim o fosse, o comércio de cigarros já teria se extinguido há tempos no Brasil após a obrigatoriedade da veiculação das fotos e advertências do Ministério da Saúde nas embalagens. A propósito, o leitor, ou a leitora, recorda-se de alguma manifestação de grupos ambientalistas nas fábricas de cigarro?!

Por detrás da resistência em rotular alimentos que contenham OGMs — exigência, inclusive, prevista em lei — esconde-se uma ética mutante sedenta por lucros auferidos pela exploração da ignorância inocente de consumidores. E qualquer tentativa de impedir, formalmente, que se tenha acesso às informações sobre os produtos que adquirimos deve ser ativamente combatida por toda a sociedade, sempre.

Ou, brevemente, salsichas de ratos ou cachorros poderão ser vendidas tranquilamente no varejo sem qualquer aviso na embalagem. Afinal, é tudo carne mesmo...


terça-feira, 13 de abril de 2010

É Hora...


"— Vamos, deixe tudo como está e venha comigo.
— Não posso, há muito o que fazer ainda...
— Não há mais tempo. Venha...
— Minhas coisas... Todas minhas coisas ainda estão aqui!
— Olhe ao seu redor. O que vê?
— Além de minhas coisas? Nada...
— Pois, então. Não há mais ninguém aqui. Desapegue-se e venha comigo.
— Não posso! Minha vida está aqui!
— Você não é o que tem de carregar. Venha...
— Por que eu tenho de lhe obedecer? Você não manda em mim...
— De fato. Se eu tivesse poder sobre você, já o teria tirado daqui por minha conta. É porque não tenho que ainda estou aqui, conversando... Quero apenas o seu bem, mas não lhe posso provar. E a opção é sua, só sua. Você pode confiar em mim ou não. É um risco que terá de correr...
— E se eu não for?
— Continuará aqui. Só isso... É o que deseja?
— Não, não quero ficar só! Mas tudo o que é meu está aqui! O que eu fiz, o que deixei de fazer e o que eu ainda gostaria...
— Como lhe disse, não há mais tempo. É hora de escolher se quer ficar aqui ou seguir adiante. Se resolver ficar, terá tudo a que tanto se apega, mas não estará com aqueles com quem deseja compartilhar sua existência. Se decidir seguir, entretanto, terá de deixar tudo para trás, porém estará com os demais.
— Não posso seguir levando minhas coisas?
— Infelizmente, não. É muito peso para voar como os outros.
— É muito doloroso...
— Mas compensador!
— Bem... Vamos, então! Mas para onde?
— Para o presente...
"


segunda-feira, 12 de abril de 2010

Ordem no caos!


O concurso 1169 da Mega-sena sorteou, no último sábado, a seguinte série de números: 01, 11, 14, 23, 42 e 48. Se, para o próximo concurso, propusessem-lhe uma das seguintes combinações para concorrer, gratuitamente, qual seria sua escolha: 01, 02, 03, 04, 05 e 06 ou 01, 14, 25, 32, 37 e 40?

Caso não seja afeito às teorias da probabilidade, provavelmente, sua escolha seria pela segunda opção. Isto porque, à primeira vista, o resultado de padrão sequenciado (01, 02, 03, etc.) seria praticamente impossível ocorrer. Alguns, entretanto, conhecendo um pouco de cálculo probabilístico, poderiam até escolher, deliberadamente, a primeira sequência — intentando pegar este autor no contrapé — já que ambas as alternativas, pelo atual método de sorteio, são absolutamente equiprováveis.

Esta sensação de assimetria probabilística é dada por um mecanismo de aprendizagem muito primitivo, comum a outros seres vivos, que foi moldado pela seleção natural ao longo de centenas de milhares de anos, possibilitando a identificação de regularidades no ambiente — capacidade bastante útil à sobrevivência das espécies. Alguns autores denominam esta aprendizagem de implícita (Reber apud Pozo, 2005), segundo a qual o reconhecimento de padrões, no caso dos humanos, ocorre sem a participação da consciência.

E para quem cobiçava o contrapé do autor, segue o contragolpe deste: a segunda sequência de números também guarda um padrão, bastando, para obtê-los, somar o número anterior ao correspondente da sequência decrescente de números primos iniciada por 13. Ou seja:

01+13=14
14+11=25
25+07=32
32+05=37
37+03=40

Pronto! Sabendo disto, qualquer pessoa que conheça os números primos (1, 2, 3, 5, 7, 11, 13, 17, etc.) e saiba somar, conseguirá reconstruir a mesma sequência sem precisar decorá-la. Este tipo de aprendizagem requer a intervenção de pelo menos parte da consciência, sendo chamada de explícita. Este mecanismo, mais moderno, foi constituído "sobre" o anterior e é responsável pela assimilação de conhecimentos complexos por meio do direcionamento da atenção — ou, mais precisamente, da cognição.

O detalhe interessante é que, mesmo sendo mais refinada, a aprendizagem explícita não pode ser dissociada de sua base implícita. E, por sua vez, os mecanismos mais primitivos, que funcionam baseados predominantemente em associações, não podem, sozinhos, explicar toda a complexidade de conceitos adquiridos por um ser humano.

E se não resolve o problema daquela sensação de que coisas iguais não são tão "iguais" assim, pelo menos é uma boa explicação...


domingo, 11 de abril de 2010

Tudo Igual


Outro domingo, outro soneto. Continuemos igualmente poéticos toda semana...


sábado, 10 de abril de 2010

O Cão


"A brisa marítima soprava preguiçosamente e para longe os vestígios ao longo da linha de seu caminhar. Não os traços desenhados com seus pés na areia úmida, mas as pétalas, amputadas uma a uma, da flor que levava em suas mãos. Eram as únicas pistas que poderiam distinguir seu rastro de tantos outros, lado a lado, pela orla. Naquele dia triste e frio, a solidão parecia realçar a paisagem e multiplicar a paz, tão necessária àquele momento de reflexão.

Parou e contemplou o mar por alguns instantes. Divagou sobre a quantidade de lugares e pessoas diferentes tocadas pelo mesmo mar e sobre a infinidade de coisas abrigadas por aquelas águas. Sentiu-se algo ingrato ao lembrar-se da profunda tristeza que trazia por conta de seus dramas pessoais. Fechou os olhos e, por alguns instantes, procurou cultivar aquele sentimento de humildade que surgia da consciência de si face ao mundo. Mas a água gelada, trazida subitamente por uma onda que cobriu seus pés, logo o tirou daquela meditação.

Retomados os passos, fitou um cãozinho ao longe, brincando solitário com a areia e as ondas. Foi se aproximando lentamente, com cuidado para não interferir na cena, imaginando os motivos da aparente felicidade animal. Inútil. Assim que o viu, o cão correu para festejá-lo como se o conhecesse, fazendo-o seguir adiante ainda mais rápido, sem esboçar qualquer interesse pela presença canina. Preferia continuar absorto em seus pensamentos, apesar da dor que lhe causavam.

Mas a solidão, que de início parecia complementar sua cena, começava a oprimir-lhe o peito. Recordava os amigos para os quais não havia pedido ajuda, mas que também não perceberam seu ar lúgubre. Teimava em bastar-se, mesmo quando sabia não possuir estrutura suficiente e a ciência disto o deprimia em uma espiral descendente. Sequer notara, aliás, que o cãozinho vinha seguindo seus passos, decidido, desde então.

Quando se enfastiou de andar, sentou-se na areia e surpreendeu-se com o cão que também se acomodara na areia um pouco a frente dele. O animal, agora, parecia melancólico, como se compartilhasse de sua dor. E a empatia inesperada do bicho lhe fez bem, o que o fez esboçar um sorriso. Olharam os dois para o mar e permaneceram ali, mudos, como dois amigos que não precisavam de palavras para se compreenderem mutuamente. Daquele momento em diante, tudo parecia melhorar.
"


sexta-feira, 9 de abril de 2010

De parar o trânsito


Ontem, noticiaram que algumas "noivas" teriam "parado o trânsito" da Avenida Paulista após tirarem seus vestidos e desfilarem em público trajando apenas lingerie. Mas apesar de se tratar, meramente, de uma ação promocional — uma espécie de teaser com o intuito de atrair visitantes para uma feira de produtos eróticos que começou hoje em São Paulo — poucas coisas poderiam ser mais irônicas, entretanto, do que uma promoção se referindo à paralização do surreal trânsito paulistano.

E nesse tom surrealista, citemos Karl Marx (1818-1883), quem defendia que a organização de uma sociedade se estrutura a partir da lógica econômica vigente, ou seja, que a viabilidade econômica acaba por determinar boa parte das decisões de ordem pessoal tomadas pelos indivíduos. Esta sua ideologia visionária previu uma série de fenômenos sociais verificados ainda hoje, mais de um século após sua morte. A escolha da profissão por um jovem que, ao invés de orientar-se exclusivamente pela própria vocação, acaba por considerar também — e com grande peso — o potencial financeiro da atividade escolhida, é um exemplo típico.

O filósofo, no entanto, espantar-se-ia ao saber que seu mecanismo de influência social, um dia, poderia ser aplicado de forma tão fidedigna a outra situação absolutamente diversa, como a do trânsito paulistano. Atualmente, na região metropolitana, muitas das decisões de ordem pessoal — também estratégicas — têm de considerar, necessariamente, o trajeto e os congestionamentos a eles associados. O deslocamento diário pela cidade influencia não só as escolhas dos locais de residência, trabalho e estudo, como também as opções pelas atividades de lazer cotidianas, os horários escolhidos para trabalho e descanso, entre outros inumeráveis aspectos da vida de quem mora ou passa por aqui.

Ressalte-se que a questão não se aplica apenas àqueles que possuem seus próprios veículos, mas, sim, a qualquer pessoa que tenha de se deslocar diariamente pela cidade. Talvez o maior problema seja, mesmo, para quem dirige, já que, nos horários de pico, dez minutos de atraso podem se transformar em duas horas, ou mais, em alguns trajetos. Mas também para quem toma ônibus, apesar de menos drástico nas regiões com corredores exclusivos, o inconveniente termina por se manifestar nos afunilamentos de cruzamentos e vias principais, eliminando qualquer vantagem que o sistema pudesse oferecer. E não bastasse tudo isso, quem abdica de seu veículo automotor em favor do transporte coletivo ferroviário, tem de enfrentar a insuficiência do sistema nos horários críticos e o excesso de baldeações necessárias para se chegar das zonas periféricas às centrais, o que também eleva o tempo de percurso para além do razoável.

Assim, enquanto a solução do problema não se torna verdadeiramente prioritária para o poder público, o usual mau humor dos motoristas presos nos congestionamentos poderia ser melhorado com mais campanhas publicitárias similares. O único "porém" é que as modelos semi-nuas, desfilando entre os veículos, jamais seriam, realmente, de "parar o trânsito". Afinal, é impossível parar algo já se encontra estático.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Ervilhas férteis


E, falando em genética, por que não mencionar Charles Robert Darwin (1809-1882)? Sim, o pai do evolucionismo e guru de Dawkins que, não por acaso, tem sido citado com uma razoável frequência por aqui ("Medos", "Etologia" e "Medicina Evolutiva - Parte I"). Seu livro, A Origem das Espécies, publicado em 1859, revolucionou toda a biologia e inúmeras outras áreas de estudo relacionadas. Mas, como toda obra revolucionária, foi severamente criticada pela comunidade científica da época. Entre as várias contestações de suas ideias, uma se referia à "força" geradora de mudanças nos seres ao longo da evolução, algo que, para alguns, sugeria uma indevida referência ao criacionismo. Não havia, naquele tempo, o conceito de genes como compreendido hoje e, de fato, as causas da evolução natural dos seres vivos, proposta por Darwin, andavam ainda um tanto obscuras.

Alguns anos mais tarde, os trabalhos de um abade da Ordem de Santo Agostinho, Gregor Johann Mendel (1822-1884), iriam estabelecer as bases de toda a Genética moderna e sustentar, cientificamente, as ideias de Darwin. Nascido na região da Silésia-Morávia (hoje parte da República Tcheca), na então chamada Heinzendorf (província que, na época, pertencia à Áustria), Mendel, desde cedo, já demonstrava interesse pelas plantas, estudando-as ainda na fazenda de seu pai. Após entrar no Mosteiro Agostiniano de São Tomás em Brünn (atual Brno, também na República Tcheca), foi enviado à Universidade de Viena pelo abade superior para que pudesse desenvolver seu interesse pela ciência. Anos mais tarde, retornando à província, passou a dividir seu tempo entre as aulas que ministrava na escola técnica local e suas atividades no mosteiro, entre elas, o cultivo e o estudo de ervilhas.

Mendel se interessava não apenas por botânica, mas também por zoologia, meteorologia e outras áreas do conhecimento humano. Em 1862, fundou, em conjunto com alguns colegas do monastério, a Sociedade de Ciências Naturais. Dois anos depois, em 1865, durante os encontros científicos, apresentou seu trabalho sobre hereditariedade, propondo as leis que deveriam reger a transmissão dos caracteres hereditários. Posteriormente, tomado pelas demandas administrativas do mosteiro, acabou se afastando de suas atividades científicas até que, em 1884, faleceu na mais completa obscuridade.

Ironicamente, sua obra também teve de aguardar algumas décadas até ser reconhecida, independentemente, por três outros botânicos: K. Correns (Alemanha), E. Tchermak (Áustria) e H. De Vries (Holanda). A partir de então, as Leis de Mendel ganharam vultosa importância e passaram a ser ensinadas nas escolas de quase todo o mundo. De lá para cá, a genética evoluiu muito e a dominância e recessividade mendeliana — conceitos, aliás, anteriores ao próprio Mendel — já não são mais suficientes para explicar a infinidade de fenômenos genéticos observáveis hoje, entretanto, não há como negar que sua contribuição foi fundamental para que boa parte da ciência, senão toda, chegasse no nível atual.

O bom abade, humilde e pacientemente, plantou ao longo de toda sua vida várias sementes nos campos das ciências que, de tão férteis, deram origem a verdadeiras florestas, até hoje fecundas, de raro e genuíno conhecimento científico.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Prometa a Ana Telefonar!


A frase do título é um código mnemônico para se lembrar das fases envolvidas na divisão nuclear mitótica: prófase, metáfase, anáfase e telófase. Nem precisa dizer que é extremamente útil para memorizar, eficientemente, a ordem e os termos não muito comuns àqueles que não possuem formação na grande área das Ciências Biológicas. Para quem não se lembra, a mitose é parte do processo de multiplicação celular pelo qual células diploides (com dois pares de cromossomos) dividem seu núcleo em duas partes idênticas. No caso das células de origem animal, o ciclo se completa pela citocinese, ou divisão citoplasmática, dando origem a duas células iguais à original.

O processo de multiplicação celular é importante no reparo de tecidos, mas especialmente no desenvolvimento embrionário que transformará uma única célula em cem trilhões de outras, aproximadamente. Além da necessidade do embrião ter se formado com os pares de cromossomos saudáveis de seus progenitores, é fundamental que, durante todo o período, o processo de multiplicação celular se repita sem falhas, replicando e dividindo o material genético com precisão. Imperfeições cromossômicas podem desencadear problemas que vão desde o aborto natural do feto até a manifestação de numerosas doenças genéticas após seu nascimento, tais como várias síndromes (Down, Edwards, Patau, Prader-Willi, etc.), malformações diversas (lábio leporino, anencefalia, polidactilia, etc.) e inúmeras outras doenças congênitas (hemofilia, acondroplasia, etc.). Mas note que, à exceção dos genitores com histórico familiar de problemas genéticos, essas ocorrências são relativamente raras. As chances para uma mulher entre 35 e 39 anos gerar uma criança com Síndrome de Down (trissomia do cromossomo 21), por exemplo, é cerca de cinco vezes maior que o de uma outra mais jovem, no entanto, ainda assim é baixo, girando em torno de 0,5%.

Há características gênicas, entretanto, que não dependem do efeito de um ou outro gene específico, mas de um conjunto deles, denominando-se poligênicas. Quando essas características são afetadas por fatores externos, como o ambiente, por exemplo, diz-se tratar de uma herança genética multifatorial. Casos assim ocorrem com estenose pilórica, autismo infantil, hipertensão, derrame, etc., e podem ser analisados por meio de uma distribuição de suscetibilidade — geralmente uma curva normal — apresentando limiares para a manifestação na população. Pelo menos neste caso, é possível evitá-las por meio de hábitos saudáveis de vida, desde que o indivíduo não tenha, previamente, ultrapassado o limiar de suscetibilidade e manifestado o problema.

Há duas conclusões interessantes nisso tudo. A primeira é que, devido ao caráter multifatorial de uma série de doenças genéticas, manter hábitos saudáveis não é uma vaidade, meramente, e sim uma necessidade. A segunda é que, pelo menos para as características poligênicas (que são muitas), ainda deve levar um bom tempo até que as empresas de mapeamento genético por aí consigam determinar, com uma precisão razoável, as propensões de um recém-nascido manifestar, ou não, uma série de problemas bastante comuns na atualidade.


Para saber mais: Genética Médica. Jorde, L. B. et al. Elsevier: Rio de Janeiro, 2004.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Tentando explicar...


Conta a anedota que, durante uma palestra sobre alcoolismo, o palestrante resolveu demonstrar os efeitos nocivos do álcool no organismo humano. Então, enquanto falava à audiência, sacou dois pequenos béqueres transparentes de sua pasta e, colocando-os à sua frente, encheu-os até quase a borda, um com água e o outro com vodca. Nomeou os conteúdos e explicou às pessoas o que acabara de fazer.

De sua pasta, tirou também um outro recipiente com alguns vermes vivos e, sob os olhares enojados da plateia, colocou um em cada béquer. Deixou tudo ali, sobre a mesa, enquanto apagava as luzes e se dirigia ao computador para mostrar, no telão, as imagens fortes dos fígados de pacientes que haviam morrido de cirrose provocada pela ingestão excessiva de bebidas alcoólicas.

Ao final da série de imagens, apresentou também várias estatísticas e dados sobre o efeito do álcool nas células nervosas e em diversos outros tecidos do corpo humano. Fez, também, uma breve exposição sobre os problemas sociais causados pelo alcoolismo e os mais recentes avanços na legislação a respeito do tema, dando especial ênfase ao novo Código de Trânsito. No final, motivado por uma das perguntas escritas previamente pelo público, chegou a dar detalhes sobre a pesada tributação das bebidas, como exemplo de política pública para desencorajar o consumo pela população.

Depois de quase uma hora de apresentação, acendeu as luzes e mostrou os béqueres à plateia. O verme que estava mergulhado em água, ainda se mexia dentro do líquido, enquanto que o outro, submerso em vodca, permanecia imóvel, morto, já apresentando, inclusive, leves sinais de desintegração. Certo da incontestabilidade de sua demonstração e já sustentando um certo sorriso de satisfação pelo sucesso da exposição, o palestrante se volta para os presentes, perguntando-lhes o que haviam depreendido daquele teste. E eis que um cidadão se levanta e diz, cheio de certeza:

"Ora, que o álcool mata os vermes no organismo!"


segunda-feira, 5 de abril de 2010

Do Paraíso ao Apocalipse...


E por falar em Páscoa, celebrações religiosas e demais manifestações de fé, citemos uma passagem do livro mais editado do mundo: a Bíblia Sagrada. Sendo cristã a absoluta maioria da população ocidental deste planeta, é bem provável que o livro do Gênesis não cause qualquer estranhamento:

"Então a serpente disse à mulher: É certo que não morrereis. Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal." (Genesis 3:3-5)

O trecho se refere ao exato momento em que a serpente, ou o diabo, convence Eva a experimentar o fruto que Deus havia proibido tocar. O argumento do coisa-ruim era de que eles, Adão e Eva, não morreriam ao comer do fruto, mas, sim, adquiririam o conhecimento das coisas, igualando-se ao próprio Deus. O final da história todo mundo conhece: eles cedem às tentações, comem do fruto e são expulsos do paraíso pelo Criador. Obviamente que o objetivo não é catequizar ninguém com esta passagem do Antigo Testamento, senão ilustrar um drama humano interessantíssimo — aliás, só para constar, não seria nada absurdo supor que o Livro Santo se referisse exatamente a esses dramas, só que por meio de metáforas.

Imagine-se tomando seu café da tarde, tranquilamente, em um ensolarado dia de domingo, ignorando, completamente, um míssil disparado em sua direção. Qual seria seu nível de preocupação? Zero, lógico! Sua ignorância sobre o fato o manteria lá no paraíso. Agora, imagine-se tocando no fruto proibido da televisão e descobrindo o fato pelo telejornal. Pronto! Seus últimos momentos de vida se transformaram no próprio inferno.

Assim vive o ser humano, repetindo, eternamente, o drama de ser expulso do paraíso, toda vez que obtém o conhecimento e descobre-se equivocado quanto às suas expectativas. Despencar do céu ao inferno, entretanto, é humano e acaba por nos colocar em contato com a realidade mundana em que vivemos. Viver na ignorância, por outro lado, é não ter tocado no fruto proibido do conhecimento e não ter saído nunca do paraíso. Quem assistiu o primeiro filme da trilogia "Matrix", por exemplo, deve se lembrar do personagem Cypher dizendo aos agentes que a ignorância era uma bênção.

Sendo assim, aqueles que têm certeza absoluta das próprias convicções, vivem tranquilos nos seus próprios paraísos pela eternidade. Resta saber apenas se o aumento deste tipo de personalidade, ultimamente, é apenas fruto do acaso ou já o prenúncio do apocalipse...


domingo, 4 de abril de 2010

Haikai de Páscoa



A Páscoa é uma celebração religiosa e, precisamente nesta data, cristã. A palavra, entretanto, deriva de "passagem" (Pessach em hebraico) que, no judaísmo, refere-se à fuga do Egito pelos hebreus. Muito antes disso, entretanto, parece que outros povos já celebravam suas passagens, tal como a do inverno para a primavera, no hemisfério norte.

Assim, aproveitemos a data festiva para celebrar, apenas, cada qual com a "passagem" que lhe convier. O importante, mesmo, é a celebração dos bons sentimentos nos respectivos corações...

Feliz Páscoa!


sábado, 3 de abril de 2010

A Emoção


Emoção: Substantivo feminino. Comoção; ação de mover (moralmente); abalo moral; alvoroço. (Dicionário da Língua Portuguesa, Editora LEP, 1959.)

Emoção (e sentimento): Verbete. A emoção é a experiência afetiva desencadeada por fator excitante e acompanhada de reações motoras ou glandulares excessivas; os estados afetivos menos intensos, que dependem mais diretamente das qualidades reais do objeto, constituem de modo geral os sentimentos. (Enciclopédia Barsa Britânica, 1965.)

Emoção: Substantivo feminino. 1. Ato de mover (moralmente). 2. Abalo moral; comoção. (Dicionário Folha-Aurélio Básico da Língua Portuguesa, 1995.)

Emoção: Substantivo feminino. 1. ato de deslocar, movimentar. 2. agitação de sentimentos; abalo afetivo ou moral; turbação, comoção. (Dicionário Houaiss Eletrônico da Língua Portuguesa, 2001.)

Tão antiga quanto o ser humano, a emoção acompanha a evolução da espécie desde seus primórdios. Muito além de meras simulações mentais, envolve também uma série de alterações fisiológicas, intimamente ligadas aos sentidos, desencadeando ações "involuntárias" por parte do indivíduo. É razoável supor que sua função evolutiva tenha sido a de garantir a sobrevivência da espécie, selecionando indivíduos que apresentassem reações quase que instantâneas ao menor sinal de perigo. E, talvez por isso, a referência ao movimento seja tão persistente nas várias definições do termo, conforme algumas conceituações dos últimos cinquenta anos — acima. Segundo Houaiss, a própria etimologia da palavra refere-se ao termo latino "motio" que significa "movimento, perturbação (de febre)".

Centenas de milhares de anos após seu cenário evolutivo original, os seres humanos vimos tentando entender e conceituar, também, a emoção e, mesmo sem uma resposta definitiva, sabemos, pelo menos, que está muito além de um simples conjunto de reações automáticas ativadas ao menor sinal de ameaça. A emoção é peça chave nas relações sociais, na arte, na comunicação, na tomada de decisões e em diversas outras atividades tipicamente humanas. Não fosse a emoção, por exemplo, como compreender o último verso do Soneto de Fidelidade de Vinicius de Moraes: "Mas que seja infinito enquanto dure."? As emoções integram, portanto, a complexa organização sistêmica da consciência humana e consolida-se como outra das características que nos diferencia das demais espécies terrestres.

No final do século XIX, o filósofo e psicólogo estadunidense William James (1842-1910) ressaltou a natureza fisiológica das emoções, chegando a afirmar que se pudesse eliminar, conscientemente, todas as sensações corpóreas de uma emoção, dela, nada restaria (James apud Damásio, 2001). É provável que os efeitos dessa natureza, algumas vezes equivocados segundo a racionalidade — como a paralisação face ao perigo —, tenham gerado, no senso comum, a ideia de que a emoção seria um obstáculo para a tomada das decisões humanas mais adequadas. Quem não se lembra da consagrada série de ficção científica, Jornada nas Estrelas (Star Trek), na qual o Sr. Spock era visto como um dos mais capacitados para tomar decisões difíceis, que exigissem lógica e racionalidade, simplesmente por não manifestar emoções, comuns aos demais tripulantes humanos da nave USS Enterprise?

Não é difícil perceber, entretanto, que, sem os auspícios indutivos da emoção, algumas decisões seriam impraticáveis, como, por exemplo, as logicamente equivalentes — tal como decidir-se entre opções idênticas. Aliás, como será apresentado futuramente, a emoção é parte fundamental de qualquer processo decisório, inclusive dos que envolvem conclusões estritamente lógico-dedutivas.

E a história continua...


sexta-feira, 2 de abril de 2010

A Razão


Razão: Substantivo masculino (sic). Faculdade espiritual própria do homem, por meio da qual ele pode conhecer, julgar, estabelecer, discorrer, etc. (Dicionário da Língua Portuguesa, Editora LEP, 1959.)
Razão: Verbete. Faculdade intelectual que permite ao homem formular conceitos ou princípios universais, através das ideias, do raciocínio e do juízo. (Enciclopédia Barsa Britânica, 1965.)
Razão: Substantivo feminino. Faculdade que tem o ser humano de avaliar, julgar, ponderar ideias universais; raciocínio, juízo. (Dicionário Folha-Aurélio Básico da Língua Portuguesa, 1995.)
Razão: Substantivo feminino. Faculdade de raciocinar, de aprender, de compreender, de ponderar, de julgar; a inteligência. (Dicionário Houaiss Eletrônico da Língua Portuguesa, 2001.)

A razão tem sido objeto de estudo — por ela própria — já desde muito cedo, bem antes dos filósofos gregos começarem a organizar o conhecimento de forma sistemática. De característica da alma até uma mera capacidade funcional do cérebro humano, a definição do que seria a razão tem desafiado os estudiosos ao longo de toda a história. Mesmo em períodos mais curtos de tempo, como no último meio século, já é possível verificar alterações significativas dessa definição, conforme ilustrado logo no início do texto.

Mas analisando as várias conceituações, pode-se depreender algo em comum a todas: a razão se refere, especialmente, às operações lógicas executadas pelo cérebro humano. Nestes termos, entretanto, não seria absurdo compreender a razão como algo absolutamente objetivo, tal como operações lógico-matemáticas processadas por um microcomputador. Afinal, que tipo de subjetividade poderia existir em se concluir que, se A é igual a B e B é igual a C, logo, A é igual a C?

Talvez pela ausência dessa subjetividade, que lhe confere um impressionante poder de transferência de conceitos precisos entre indivíduos, a razão acabou por se transformar em um objeto de fascinação para o ser humano, a ponto de cegá-lo para o que não lhe parece racional aos olhos. Decerto, sem essa habilidade estaríamos fadados ao inatismo, aos instintos, às meras reações — em lugar de previsões — e, muito provavelmente, também à ausência da consciência que nos permite questionar, diferenciando-nos das demais espécies neste planeta. Entretanto, faz-se necessária humildade suficiente para compreender que o mundo, irracional ou não, continuaria existindo mesmo que os humanos subitamente desaparecêssemos e levássemos conosco toda nossa razão.

Foi René Descartes (1596-1650) quem, no princípio do século XVII, colocou a critério da razão a existência ou não das coisas, instituindo a dúvida como metodologia. Algo só poderia existir se sua existência pudesse ser provada; "Ego cogito ergo sum" ("Penso, logo existo"), concluía ele. Cerca de cem anos mais tarde, na segunda metade do século XVIII, o alemão Immanuel Kant (1724-1804) já criticava a razão pura, associando o empirismo da escola inglesa de Hume e Locke ao método dedutivo de Descartes e Leibniz. Era o princípio de uma compreensão mais profunda da razão que, por ser humana, não poderia estar totalmente isenta de subjetividade.

E este é só o princípio da história...


quinta-feira, 1 de abril de 2010

E o Rodoanel não acabou...


É inegável o fato do estado de São Paulo possuir as dimensões de um país. Como consequência natural, os investimentos por aqui acabam tendo a mesma ordem de grandeza. Eis que em uma profética coincidência, quis o destino que a monumental obra do governo paulista, o trecho sul do Rodoanel (via expressa que interliga as principais rodovias que chegam à capital, evitando que os veículos de passagem tenham de entrar na cidade para seguir viagem), fosse inaugurada no mesmo dia (anteontem) em que foi realizado o primeiro experimento bem sucedido do CERN — também monumental. Ou melhor, mais ou menos no mesmo dia, já que a obra foi inaugurada, porém ainda não liberada para uso dos cidadãos.

Há várias similaridades com o gigante acelerador de partículas que vão muito além da forma circular (depois de completados os trechos leste e norte), senão vejamos: tal como o LHC, a obra paulista também atrasou, mais de dois anos, sendo que os investimentos foram de magnitudes parecidas. Enquanto o consórcio europeu que construiu o laboratório de partículas de última geração empenhou cerca de € 3 bilhões (~ R$ 7 bilhões), o governo de São Paulo, praticamente sozinho, desembolsou R$ 3,6 bilhões apenas para o trecho sul que, somado aos investimentos do trecho oeste (R$ 1,4 bilhão) e o orçado para o leste (R$ 5 bilhões), ultrapassa de longe o que foi gasto no Grande Colisor de Hádrons. O trecho norte ainda está em estudo.

O que não parece muito similar são os métodos. Deixando de lado as especulações a respeito do favorecimento ilícito de grupos de construtoras, que não ocorre no Brasil, e a perigosa aceleração das obras para serem inauguradas antes do desligamento do governador, pré-candidato à presidência, pode-se mencionar dois métodos heterodoxos utilizados pelo poder público paulista: os pedágios no Rodoanel e a resposta aos impactos da obra. No primeiro caso, o método desrespeita uma lei (2.481/53) do próprio estado que proíbe a cobrança de pedágio em um raio de 35 km do marco zero da capital e ainda vai em direção contrária à defendida  por um dos principais idealizadores do grande anel viário, o falecido Mário Covas, membro do mesmo partido do governo. No segundo caso, o método desconsidera informações essenciais para o aperfeiçoamento do projeto, haja vista a desconsideração de um estudo, solicitado pela ARTESP (Agência Reguladora de Serviços Públicos Delegados de Transporte do Estado de São Paulo) ao Lincoln Institute of Land Policy, informando que a obra teria um efeito insignificante, em longo prazo, nos congestionamentos da Grande São Paulo e a minimização pela DERSA (Desenvolvimento Rodoviário S.A.), responsável pela coordenação das obras, dos resultados do laudo de um supervisor ambiental indicando que os impactos ambientais haviam superados os previstos no licenciamento da obra.

E o destino, irônico, apresenta mais uma coincidência entre o Rodoanel e o LHC: no trecho recém entregue, há seis praças de pedágio — e apenas dois postos de atendimento ao usuário, mas isto é um detalhe! —, o mesmo número de detectores de sub-partículas elementares do LHC — dois de grande, dois de médio e dois de pequeno porte.

Incrível, não?!