quinta-feira, 29 de abril de 2010

Vício


"Dentre os vícios de todas as pessoas que conhecia, achava o seu próprio o mais patético. Sabia de gente que sempre bebia até cair ou que fumava até queimar os dedos. Tolerava a todos, sem se incomodar, mas sua própria situação o torturava todos os dias. Chegou até a procurar um psiquiatra para se curar de um quadro de transtorno obsessivo compulsivo auto-diagnosticado, mas fora advertido de que possuía uma fisiologia saudável e que, se realmente achasse seu comportamento problemático, deveria procurar um terapeuta comportamental. Marcou com um analista, mas desistiu de seguir com as sessões assim que ele lhe disse não ver qualquer problema nas suas ações cotidianas.

Agora estava ali, ainda aprisionado por seu vício, outra noite após tantas similares, repetidas ao longo dos anos. Sabia que precisava entregar um relatório importante para seu cliente no dia seguinte, mas não conseguiria produzir nada enquanto não se desvencilhasse daquilo. Tomou outro gole da xícara de café já morno e tentou, novamente, seguir com o que estava fazendo. E apesar de saber que aquilo não precisaria ser concluído naquele momento, assim não o sentia, fazendo com que sua alma se consumisse, dolorosamente, naquele impasse entre terminar o que sentia ou o que sabia ser, de fato, necessário.

Resolveu se levantar e tentar espairecer. Talvez o ar fresco lá de fora o fizesse se movimentar na direção correta. Talvez a estimulação motora produzisse a inspiração que desejava. Ou talvez um milagre o tirasse daquela situação ridícula. Mas nada aconteceu e voltou a se sentar de fronte ao papel em branco sobre a mesa. Como explicaria para seu cliente, no dia seguinte, que não havia terminado o que prometera? Como conseguiria conviver com a própria culpa tendo escolhido um destino que sabia poder ser diferente?

Remexeu-se impaciente na cadeira com a auto-estima despedaçada pelos próprios pensamentos. Olhou para o relógio e viu que já passava da meia-noite. Encontraria com o cliente logo cedo, por volta das 8:00 h, e tinha certeza de que, se tivesse iniciado à tarde, mal teria tido tempo para terminar o relatório antes daquele horário. Sentiu vontade de chorar, mas se conteve. Tentou outro gole de café, mas a xícara já estava vazia havia algum tempo. Pousou, então, o olhar sobre a escuridão que encobria o restante da sala e se sentiu pequeno. Tratou, então, de rabiscar algumas palavras no papel em branco e, finalmente, depois de horas angustiantes, uma inesperada inspiração o fez escrever seu poema.

Pronto, agora podia se dedicar ao seu relatório...
"


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