sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Votos na Véspera


Papai Noel, leitor do Automorfo, mesmo absolutamente assoberbado com todas suas obrigações natalinas, arrumou um tempinho para questionar este autor sobre o porquê do sumiço. Recebeu como resposta o mesmo que a maioria dos seres humanos contemporâneos respondem ao terem alguma falta de suas ações questionada, a saber: falta de tempo. Logo começou um verdadeiro debate sobre as diferentes visões sobre o modelo de vida ideal que as pessoas ditas "normais" deveriam levar ao longo de suas existências.

Papai Noel é um excelente interlocutor e costuma apresentar inúmeros argumentos lógicos para sustentar seus pontos de vista em qualquer discussão, mas nunca se limita a isso, acrescentando, com maestria, uma série articulada de raciocínios que, apesar de serem passíveis de refutação por petição de princípio em interpretações estritamente cartesianas, mostra-se absolutamente válida em um contexto social e humano. Na ocasião, entretanto, todas suas objeções quanto à impossibilidade de se encontrar algum tempo disponível para se postar algo foram rebatidas, uma após a outra. Não havia, de fato, a menor chance de ele estar com a razão se fosse considerada a conjuntura como um todo.

No final da conversa, já preocupado com o crescente atraso na programação de suas tarefas, Papai Noel disse que, simplesmente, era uma questão de prioridades, não havendo, portanto, qualquer justificativa válida que pudesse ser apresentada contra tudo o que havia falado. Ouviu como explicação que esse era, exatamente, o problema e ainda recebeu como pedido de natal mais algum tempo, além do que era destinado a todos os seres. Disse que, tempo para dar, não tinha nem para ele, mas que adiantaria, como presente, um pouco da sua própria experiência, explicando que o estabelecimento de prioridades era responsabilidade exclusiva da própria pessoa. Já montava em seu trenó quando este autor sorriu e disse: "Papai Noel, você não existe mesmo!".

Assim sendo, decidiu-se que o Automorfo não deixaria de lhe desejar um excelente natal e dias ainda melhores que os anteriores nesse ano que se achega, extensíveis, claro, a sua família e entes queridos! Boas festas!


domingo, 17 de outubro de 2010

Haikai Narcísico



O mito de Narciso nasceu na mitologia greco-romana, tendo atravessado os séculos e influenciado sobremaneira a cultura ocidental. Conta a história que Eco, uma bela jovem apaixonada por Narciso, definhou até a morte por não ter seu amor correspondido. A deusa Nêmesis, então, condenou Narciso a se apaixonar por seu próprio reflexo na água, levando-o ao mesmo destino de sua pretendente. Muitos anos mais tarde, em 1914, Freud acabou se inspirando na história para lançar seu modelo psicanalítico: o narcisismo. Ele acabou concluindo que não é bem com os olhos que o Narciso em nosso interior enxerga o próprio reflexo...


segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Mensagens das urnas...


A primeira etapa da grande "festa" democrática terminou e o resultado, surpreendente ou não, pode revelar muito sobre o pensamento atual dos eleitores brasileiros. Há que se tomar um certo cuidado com análise, entretanto, uma vez que, visível apenas de uma ótica estatística, nada, ou muito pouco, tem a dizer sobre pensamentos individuais ou de minorias. Por outro lado, sem se adotar uma perspectiva distante, jamais seria possível vislumbrar, no conjunto, as inclinações ideológicas que orientam toda a nação. A extrema relevância deste ponto de vista se justifica pelo fato de, na vida em sociedade, todo poder emanar das maiorias. E como suas opções visam atender, justamente, a maioria desses interesses, pode-se dizer que, tecnicamente, sempre estarão com a razão.

Um excelente exemplo a ser analisado é o do estado de São Paulo, onde não haverá segundo turno nestas eleições. Pode-se afirmar, de forma pragmática, que a maioria absoluta dos eleitores acreditam que a situação em que o estado se encontra, já há décadas, está adequada e atende às necessidades de sua população. Mais da metade dos eleitores escolheram manter os rumos das políticas públicas atuais, utilizadas pelo estado mais rico da federação para solucionar questões como o baixo nível da educação pública paulista, o aguçamento das desigualdades sociais no estado, a banalização da violência urbana, a degradação do meio ambiente, a dificuldade no acesso da população mais carente a serviços públicos essenciais, etc. Não há muito o que se discutir, o resultado é suficientemente sucinto e claro: a maioria dos eleitores acha que nada deve mudar na política estadual nos próximos quatro anos.

Já no cenário nacional, parece que não foi bem esse o consenso. A mensagem implícita no resultado da votação foi tão clara quanto a outra: mais da metade dos eleitores não deseja que as políticas públicas federais continuem, exatamente, da mesma forma. A ampla maioria dos eleitores entendem que, a despeito das inúmeras conquistas sociais e do desenvolvimento econômico singular do Brasil, não há mais como tolerar o descaso com o meio-ambiente, a canalização de dinheiro público para o setor privado por meio do pagamento de juros abusivos, a negociação de posições em troca do apoio de partidos e políticos oportunistas, etc. A diferença da esfera estadual é que, no segundo turno, a escolha se polarizará e os eleitores se verão na difícil tarefa de escolher, não entre dois candidatos, mas entre duas propostas distintas de governo. Como os partidos de ambos os candidatos já exerceram as mesmas funções no Poder Executivo, pode-se ter, pelo menos, uma noção prévia do desempenho de cada um.

E em 31/10/2010, dia do segundo turno das eleições, caberá novamente à maioria decidir se prefere que o país siga na direção em que está ou retorne àquela adotada há oito anos atrás.


quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Dilema ideológico


A caminho das eleições, as caixas de mensagens eletrônicas vão se abarrotando e se pode encontrar de tudo: pesquisas amadoras contradizendo pesquisas profissionais, comparativos "imparciais" entre históricos dos candidatos, interpretações inéditas da legislação, enfim, uma enxurrada de propagandas políticas travestidas de argumentos lícitos e imparciais. No embate ideológico virtual, usualmente envolto em uma anonímia conveniente, defensores de todos os lados opinam tão livremente que é possível, ao leitor mais atento, ter uma boa amostra do que se passa na cabeça de uma parte da sociedade. O amplo espectro de opiniões trazem à tona o que há de melhor e de pior nos seres humanos, tal como visto em uma das mensagens, digna de destaque por, primeiro, carregar um ranço preconceituoso repugnante e, segundo, porque o autor, anônimo, provavelmente sequer deve suspeitar que carrega tal preconceito em si, ou teria vergonha de ter escrito tamanha estupidez.

O referido texto chamava à ação os eleitores do candidato que representa a social-democracia, segundo melhor colocado nas pesquisas de intenção de voto, devido ao iminente risco da candidata da situação ganhar as eleições em primeiro turno. Propunha que eles, o autor e seus amigos, parassem de trocar mensagens eletrônicas sobre "o que já sabiam" e passassem a conversar com pelo menos duas outras pessoas por dia para convencê-las a votar no dito candidato. Não bastasse isso, ainda especificava quem seriam essas pessoas: "sua" assistente doméstica ou diarista; "seus" funcionários; o guarda e as "tias" da escola e da cantina; o porteiro da "sua" casa e trabalho; o manobrista do "seu" carro; o ascensorista do prédio do "seu" dentista, do "seu" advogado e do "seu" cliente; o frentista; a caixa do supermercado, da farmácia e do sacolão; a recepcionista da empresa do "seu" cliente; a vendedora da loja de sapato e de roupa; o garçon [sic]; o cabeleireiro; a manicure; a fisioterapeuta; a massagista; o atendente da sauna, da academia, da escola de natação, da escola de inglês das crianças, etc. Enfim, qualquer cidadão ou cidadã que, apesar de trabalhar duro e contribuir com a sociedade, não compartilha da formação, inteligência, superioridade e discernimento do autor e de "seus formadores de opinião".

Ao invés de também opinar sobre a barbaridade acima, talvez algumas definições, encontradas em qualquer "pai dos burros", sejam mais esclarecedoras e úteis:

  • Social: "concernente à sociedade; concernente à amizade e união de várias pessoas" (Houaiss, 2001). "Da sociedade, ou relativo a ela; sociável; que interessa à sociedade" (Aurélio, 1994).
  • Democracia: "governo do povo; governo em que o povo exerce a soberania; sistema político cujas ações atendem aos interesses populares; (...) sistema político comprometido com a igualdade ou com a distribuição equitativa de poder entre todos os cidadãos" (Houaiss, 2001). "Governo do povo; soberania popular; doutrina ou regime político baseado nos princípios da soberania popular e da distribuição equitativa do poder, ou seja, regime de governo que se caracteriza, em essência, pela liberdade do ato eleitoral, pela divisão de poderes e pelo controle da autoridade, i. e., dos poderes de decisão e execução; (...) as classes populares; povo, proletariado" (Aurélio, 1994).

Então, fica o dilema: o candidato, se eleito, deveria ou não, responder positivamente aos anseios de seus eleitores?



terça-feira, 14 de setembro de 2010

O preço das diferenças


Ontem a BBC veiculou uma notícia sobre a notificação feita pelo Pentágono ao Senado estadunidense, dando conta de um acordo para vender armas ao governo saudita no valor de US$ 60 bilhões. A Inteligência estadunidense estima que o acordo poderá manter cerca de 75 mil empregos nas indústrias bélicas do país e o porta-voz do Departamento de Estado, a despeito da polêmica, deixou claro que os EUA não tomariam qualquer atitude que pudesse comprometer o equilíbrio de forças na região. A Arábia Saudita, aliada dos EUA no Oriente Médio, é uma das maiores compradoras de equipamentos bélicos do mundo entre as nações em desenvolvimento, com negócios estimados em mais de US$ 36 bilhões entre os anos de 2001 e 2008. Na década de 1980, quando os EUA se negaram a vender armamentos ao país, a Arábia Saudita acabou comprando a maioria de seus aviões militares do Reino Unido.

Considerando as diferenças político-ideológicas entre os dois mundos, anglo-saxão e árabe, não há como não se admirar com um anúncio dessa natureza. Por outro lado, talvez essa admiração mostre, apenas, a enorme distância entre o que é "dado a entender" nos meios de comunicação de massa e a realidade, nua e crua. Depreende-se de tal fato que o radicalismo capitalista seja ainda mais efetivo que o religioso, uma vez que, no cenário em questão, não parece ser bem os ideais aquilo que orienta as relações comerciais ou ações militares entre os Estados — senão o capital, fundamentalmente. São critérios financeiros, não ideologias, que geralmente definem a interferência de uma nação para impedir que nativos se matem, pessoas morram de fome, crianças definhem em condições sub-humanas, etc.

Além disso, não deixa de ser curiosa a lógica que permeia todo o sistema, na qual, para se garantir a vida de alguns, ameaça-se a vida de muitos outros — afinal, não se produziria armas de guerra não houvesse a intenção de utilizá-las. E, apesar de pouquíssimos indivíduos realmente lucrarem com essa lógica perversa, muitos acreditam também ganhar com o processo, nem que seja somente pelos empregos gerados na indústria bélica. O que não costuma ficar evidente, no entanto, é a inversão de valores proporcionada por um modelo em que a "indústria da morte" passa a sustentar a vida. Só para se ter uma ideia um pouco mais clara da situação, estima-se que, no ano passado, quase US$ 1,5 trilhão tenham sido empregados em gastos militares em todo o mundo — pouco mais de US$ 200 per capita.

Nada como um vultoso volume financeiro para aproximar ideologias, superar sectarismos e, principalmente, sujeitar a vida ao capital.


segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Fim


"Ele terminou de almoçar e desejou sentir na comida algum sabor diferente que tivesse a capacidade de lhe marcar, de alguma forma, aquela última refeição. Apesar de conformado quanto a inevitabilidade do fim, não conseguia afastar, de forma eficaz e duradoura, os sentimentos mais profundos que insistiam em lhe sufocar. E ao mesmo tempo que seu lado racional o apressava, sua alma suplicava, lamuriosa, para permanecer ali por mais alguns instantes apenas. A despeito de toda emoção, externamente, não escapava sequer uma brisa de todo o furacão de pensamentos que lhe varria os cantos da mente, tanto que sorriu e respondeu com naturalidade a quem lhe dirigiu um amistoso 'até amanhã'. Era curioso que só agora notasse o quão especial eram aquelas palavras tão triviais...

Seu humor lhe deixou ficar, por alguns minutos, com o olhar vago, mas o senso de responsabilidade logo o alçou daquele estado inerte, jogando-o, novamente, na amarga realidade a ser enfrentada, afinal, ainda havia muito o que fazer antes do momento derradeiro. Ajeitou suas coisas, levantou-se da mesa já arrumada e seguiu o caminho que lhe era tão familiar. Condenava-se por não ter reparado mais, ou se espantado mais, com as peculiaridades dos detalhes banais que abundavam naquele lugar. Cada ressalto no chão, cada objeto comum, cada odor conhecido, cada ruído que tantas vezes ouvira, despertavam-lhe, naquele momento, uma saudade imensa, sem sentido, irracional e incontrolável. Sentindo o coração apertar, sacudiu involuntariamente a cabeça a fim de espantar o arrependimento que lhe absorvia e tornou a se concentrar no seu caminho.

Quem o visse sozinho, guiando o carro em direção de casa, perceberia, sem dificuldades, a tristeza que se manifestava, transfigurando sua fisionomia. Considerava intrigante que dentre tantas reflexões que lhe assaltavam de modo recorrente, uma lhe fosse, particularmente, dolorosa: a percepção de que nada mais seria igual a partir de então. 'Bobagem!', ouviu-se gritar, pois, no fundo, sabia perfeitamente que os acontecimentos sempre mudam o futuro de forma definitiva. A dor que lhe incomodava, efetivamente, talvez se originasse da constatação de só ter aceitado a ideia, assim, tão tarde e somente no fim...
"


domingo, 12 de setembro de 2010

Soneto Automórfico


Estagnar-se em uma realidade que está em constante transformação, definitivamente, não é uma boa ideia. Por outro lado, transformar-se a ponto de perder a própria essência tampouco resolve o problema. O Automorfo foi pensado de forma a mudar sempre, mas sem perder algumas características próprias importantes. Neste último domingo, antes do aniversário deste blog, tentou-se transformar esse sentimento em poesia. E o verbo tentar não está empregado por acaso porque, de fato, não é nada fácil se fazer entender quando a poesia é restrita às rígidas exigências métricas de um soneto. Menos ainda quando o soneto se transforma, também, é um acróstico. Mas, como dito em outra ocasião, tentar é preciso; acertar não é preciso. A propósito, caso não saiba ou não se lembre do que é um acróstico, basta ler com atenção para descobrir...


sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Sob tensão


Quando um cupim usa uma secreção para aglomerar e endurecer a terra que molda a habitação de sua colônia, está transformando elementos disponíveis na natureza de forma a atender propósitos específicos de sua espécie. O mesmo ocorre com um pássaro, joão-de-barro, quando mistura fibras vegetais e lama para construir seu ninho. Aliás, a rigor, qualquer síntese orgânica também poderia ser encarada como uma transformação, mesmo que em um nível não intencional, de elementos naturais em materiais úteis à perpetuação da espécie que a sintetiza. Nenhum outro ser, entretanto, chegou próximo da habilidade que os humanos possuem para, intencionalmente, produzir e processar diversos tipos de materiais, desde meras ligas metálicas — obtidas a partir de óxidos minerais — até a produção dos materiais altamente elaborados e tecnológicos que delas se originam. Mas, naturalmente, a gênese de um novo material pode, também, trazer consigo efeitos inéditos de sua interação com o meio ambiente, responsáveis, às vezes, por falhas inusitadas nas estruturas construídas com esses materiais.

Uma dessas falhas é a chamada corrosão-sob-tensão que ocorre subitamente e, em geral, com consequências catastróficas. A corrosão-sob-tensão não é um processo sinérgico e se caracteriza por apresentar múltiplas trincas, face lisa da fratura e praticamente nenhuma perda de material ou danificação da superfície. Ocorre apenas com certas combinações entre ligas metálicas e condições ambientais bastante específicas, envolvendo, necessariamente, tensão de tração (residual ou aplicada) e meio corrosivo bem pouco severo. Um exemplo é o episódio chamado de "season cracking", caso clássico de falha por corrosão-sob-tensão. Conta a história que quase todos os cartuchos de munição, armazenados por tropas inglesas em abrigos improvisados nas selvas indianas, durante o período das monções, foram encontrados totalmente inutilizados (trincados). O caso só foi esclarecido no início da década de 1920, quando cientistas apontaram a umidade condensada com traços de amônia, proveniente da urina dos cavalos, sobre as cápsulas de latão estampado a frio — e portanto, submetido a altas tensões residuais de tração devido ao encruamento — como sendo a causa da falha.

Outros exemplos de combinações suscetíveis à esse tipo de falha são os de aços de baixa resistência submetidos a meios cáusticos (presença de soda cáustica, NaOH), de aços austeníticos na presença de ânions de cloro (Cl¯), além de certas ligas de alumínio de alta resistência, usadas principalmente na indústria aeronáutica, que também falham por corrosão-sob-tensão na presença de umidade — ou seja, água, apenas. Felizmente, uma vez descobertos os modos de falha, é possível evitá-los, contornando suas causas, alterando aplicações ou, simplesmente, abolindo, definitivamente, o uso do material em certas condições críticas. Os responsáveis por essas engenhosas medidas são, em sua grande maioria, os vários engenheiros das mais diversas áreas que, trabalhando colaborativamente, são capazes de transformar em realidade muitos dos sonhos humanos.

Aliás, se aviões fabricados em alumínio de alta resistência continuam voando por aí em dias de chuva é porque os engenheiros, sob tensão para realizar um dos maiores sonhos da humanidade, chegaram à conclusão que pintar a estrutura seria muito mais inteligente e barato do que substituir todo aquele material...

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Consumindo o respeito II


Pode-se formular algumas hipóteses do porquê as informações sobre os produtos comercializados serem, assim, tão nebulosas. A primeira, mais simples, é que tudo isso seja obra do acaso e que os consumidores estamos ficando absolutamente neuróticos, preocupando-se com detalhes absolutamente irrelevantes. A segunda é que os profissionais que trabalham em todas essas empresas sejam completamente ignorantes sobre a função daquilo que se expõe nas embalagens dos produtos. A terceira, e última, é que tornar nebulosas as informações dos produtos comercializados seja uma decisão tomada para, deliberadamente, ludibriar os consumidores. Essas três proposições, a princípio, parecem englobar, satisfatoriamente, todas as possibilidades para explicar o que se vê, hoje, nas prateleiras dos supermercados. Mas, caso o leitor, ou a leitora, conheça alguma outra hipótese para explicar adequadamente a razão da balbúrdia informativa em questão, fique a vontade para expô-la nos comentários da postagem.

Ser obra do acaso é muito pouco provável, uma vez que há cursos, departamentos ou empresas que se ocupam, exclusivamente, da apresentação dos produtos nos pontos de venda, não sendo, aliás, um serviço barato. Além disso, no caso dessa primeira hipótese ser mesmo válida, seria bom que o governo começasse a pensar, séria e rapidamente, em alguma política pública para acompanhar e tratar a saúde mental de boa parte dos cidadãos, haja vista não ser poucos os casos em que os consumidores são vítimas nas relações de consumo e parcamente compensados por ações judiciais. Pelo mesmo motivo, é igualmente improvável que os profissionais que trabalhem nessas empresas ignorem a função do que informam nas embalagens. Certamente, não apenas possuem plena ciência do que fazem, como também se mantêm atualizados para não ferir qualquer ponto da legislação em vigor — cada vez mais apertada.

Resta como plausível, portanto, apenas a última hipótese, ou seja, a confusão informativa é proposital e deliberada com a única função de trapacear. Como ninguém normal leva um computador à tiracolo para ficar calculando o custo de tudo o que compra (aliás, apenas uma minoria na sociedade brasileira tem condições econômicas para ter um computador portátil), o consumidor acaba sendo induzido a pagar alguns reais a mais*. O mesmo acontece quando alguém vende uma "bebida láctea" (feita com soro de leite) com uma embalagem muito parecida a de um "iogurte para beber". Também quando a barra do seu chocolate começa a diminuir de tamanho para "melhor atender" as exigências dos consumidores, mesmo sem ter um centavo de abatimento no preço. Ou quando o suco de caixinha deixa de ser "suco" e passa a ser "néctar de fruta" pelo mesmo preço. Ou, ainda, quando a empresa se recusa a rotular um produto indicando o uso de alimentos transgênicos. Empresas com esse modus operandi são desonestas e merecem o desprezo por parte de toda a sociedade.

E quando o Estado intervém para coibir abusos assim, os preços voltam a subir para refletir o aumento dos custos na adequação à nova legislação. Assim caminha a humanidade...


* Volte na tabela da postagem de ontem e note que, excetuando-se a marca I (própria do supermercado), a marca II aparece com o menor preço, mas, na realidade, é a segunda mais cara.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Consumindo o respeito I


Hoje, em uma loja de um grande supermercado da capital paulista, podiam ser vistas diversas marcas de papel-toalha expostas em algumas prateleiras de um dos seus corredores centrais. Bem dispostas, as opções disputavam a preferência dos preciosos consumidores, tanto por meio de atraentes embalagens e promessas de melhor desempenho quanto, claro, pelos mais variados preços. Havia papel-toalha para todos os gostos: com maior absorção, mais resistentes quando úmidos, dupla face, brancos, ilustrados, mais ou menos picotados, com dois ou mais rolos, etc. Qualquer desavisado que intentasse descobrir, rapidamente, a opção mais em conta perceberia as nuances de uma perversidade cada vez mais comum nos dias de hoje — pelo menos no Brasil. A situação era a seguinte:

  • Marca I: pacotes de 2 rolos com 100 toalhas de 19 x 22 cm por R$ 2,49.
  • Marca I: pacotes de 4 rolos com 100 toalhas de 19 x 22 cm por R$ 7,47.
  • Marca II: pacotes de 2 rolos com 60 toalhas de 20 x 22 cm por R$ 3,15.
  • Marca III: pacotes de 2 rolos com 75+15 toalhas de 14 x 22 cm por R$ 3,29.
  • Marca III: pacotes de 3 rolos com 75+15 toalhas de 14 x 22 cm por R$ 4,77.
  • Marca IV: pacotes de 2 rolos com 60 toalhas de 22 x 20 cm por R$ 3,25.

Surge, então, a primeira pergunta simples: qual das opções é a mais barata? Acertaria quem apostasse na opção de menor preço absoluto, ou seja, a marca I com dois rolos, no entanto, enganar-se-ia, redondamente, caso optasse pelo pacote com quatro rolos da mesma marca. Outra pergunta, um pouco menos simples, seria: qual é a segunda opção mais barata? Neste caso, depende. Considerando a segunda medida como comprimento da toalha, ou seja, assumindo que o comprimento total do rolo resultasse da multiplicação do número de toalhas pela segunda medida indicada (e assumindo a largura como "padrão" entre as marcas), então, a marca III com três rolos seria a segunda opção mais barata. Por outro lado, se a medida considerada como comprimento da toalha for a primeira, então a marca I, com quatro rolos, seria a segunda opção mais barata. Se alguém, por algum motivo, desejasse comprar a terceira opção mais barata, bem, neste caso teria, primeiramente,  que escolher a medida significativa a ser considerada. Se escolhesse a primeira medida, seria a marca IV; se escolhesse a segunda, seria a marca III, com dois rolos; se escolhesse a área (recomendado!), então seria a marca III, com três rolos.

Achou complicado?! A tabela abaixo, cujos resultados foram obtidos em uma planilha eletrônica de cálculo, resume a situação:

 Por: Rolo d1 d2 Área
 Mais cara: I-4 II IV IV
III-2 III-2 II II
IV III-3 I-4 III-2
III-3 IV III-2 III-3
II I-4 III-3 I-4
 Mais barata: I-2 I-2 I-2 I-2

Tecnicamente, a opção mais cara, ou mais barata, depende da área total de papel-toalha na embalagem e de seu preço final, claro! Mas, misteriosamente, exceção feita ao preço, nenhuma outra informação necessária é disposta de forma simples. Será por que?


terça-feira, 7 de setembro de 2010

O Dia do Parto Imperial


Como muita gente sabe, o Brasil também já foi um império. Talvez não com a mesma conotação que o termo carrega atualmente, mas, sem dúvidas, já ostentou tal posição por um breve momento histórico. A historiografia oficial conta que tudo começou no final do século XVIII, quando o príncipe regente do Brasil, João VI, torna-se o príncipe regente de Portugal após a rainha, sua mãe, Dona Maria I, enlouquecer. Nessa época, o Reino de Portugal se encontrava em uma difícil situação pois, à medida em que a França de Napoleão consolidava seu domínio na Europa, a posição de neutralidade lusitana ia se tornando insustentável, até que, em 1807, Dom João negocia com o governo britânico a escolta da Família Real e da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro. A partir de então, o Brasil deixava de ser uma simples colônia para se tornar a sede do comando real. Posteriormente, elevado à condição de Reino, passa a integrar o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, iniciando um longo suceder de acontecimentos que culminaria no nascimento do império brasileiro.

Já em terras verde-amarelas, o soberano tomou inúmeras medidas, como o confisco de residências para acomodar, de uma hora para outra, os milhares de componentes da Corte Portuguesa; a abertura dos portos às nações amigas, especialmente à Inglaterra, cujos produtos eram menos taxados que os produtos portugueses; fundou escolas, bibliotecas, aboliu a proibição de construção de indústrias no território brasileiro, criou o primeiro Banco do Brasil, enfim, adequou a nova sede do império português às necessidades da monarquia. Enquanto isso, na Europa, Napoleão Bonaparte depunha o rei da Espanha e invadia Portugal com suas tropas. O exército britânico, regiamente compensado pela Coroa Portuguesa, não se encarregou apenas da proteção marítima da costa brasileira, mas, também, da retomada do território português das mãos francesas, bem como de seu governo provisório, dada a ausência da família real portuguesa na península.

Com a derrota definitiva de Napoleão, pressões do clero, nobreza e burguesia de Portugal passaram a demandar o retorno do monarca e da Corte à Lisboa. João, então, nomeia seu filho, Pedro de Alcântara, como regente do Brasil e retorna à Portugal junto com boa parte da Corte portuguesa, levando toda a riqueza que conseguiu carregar. Já em Portugal, é coroado rei e pressionado a jurar a nova Constituição lusitana que rebaixava o Brasil, novamente, à condição de colônia. Assim, o governo português passa a exigir que também o Príncipe Regente, Pedro, retornasse à metrópole o que acaba não acontecendo, já que em 9 de janeiro de 1822, Dia do Fico, o regente declara publicamente sua decisão de permanecer deste lado do Atlântico. Aos 7 de setembro daquele mesmo ano, durante uma viagem de Santos à São Paulo, ciente da possibilidade de uma invasão portuguesa ao Brasil, Pedro declara, às margens do rio Ipiranga, a definitiva independência brasileira do domínio português. É, então, coroado e se torna Dom Pedro I, o primeiro imperador do recém-criado império brasileiro. Mas, claro que alguém mais deveria dar o aval à independência brasileira, então, o Brasil negocia com a Grã-Bretanha o pagamento de uma milionária indenização à Portugal, em torno de dois milhões de libras esterlinas, iniciando aí seu endividamento externo que se agigantaria, perdurando por quase dois séculos seguintes.

E a despeito de tudo o que tiraram, tiram e desejam ainda tirar daqui, a nação brasileira continua firme. O Brasil é, antes de tudo, um forte... Parabéns pelo seu aniversário de independência!


segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Mosaico disciplinar do cotidiano


Em seu livro A invenção do cotidiano: artes de fazer, Michel De Certeau propõe uma nova contribuição à antropologia, a partir de uma perspectiva "ao rés do chão", como diz. Enquanto elucida seu modelo, nada ortodoxo aos olhos da academia à época, faz uma interessante distinção entre estratégias e táticas, segundo sua visão. As primeiras, diz o autor, baseiam-se fundamentalmente no espaço, constituindo-se em um lugar capaz de ser circunscrito em um "próprio", distinguindo-se da exterioridade que o contém. Já as segundas estão irremediavelmente ligadas ao tempo, sem que possam se delimitar de alguma forma. Nas suas palavras, enquanto "o 'próprio' é uma vitória do lugar sobre o tempo", o não-lugar tem "constantemente que jogar com os acontecimentos para os transformar em 'ocasiões'" (Certeau, 1990, p. 46-7). Exemplificando, grosso modo, uma instituição é estratégica, mas seu funcionamento, tático.

Essa conceituação, aparentemente complexa, forjada nos moldes das ciências humanas, deriva, fundamental e simplesmente, da própria interação humana com a realidade à sua volta. A leitura do tempo por meio do espaço, que configura a estratégia, só é possível porque vivemos sob algumas leis físicas bastante peculiares. Neste universo, a ocorrência de qualquer evento detectável envolve, necessariamente, alterações em ambas as variáveis: espaço e tempo. Não havendo mudança em alguma delas, o evento, aparentemente, não pode existir. Uma partícula material, por exemplo, só existe à medida em que ocupa um dado espaço por um certo período de tempo. O mesmo ocorre com uma onda eletromagnética que se propaga, variando sua coordenada espacial em um intervalo temporal característico. Mais concretamente, desde que mantida uma distância segura, um animal feroz não tem como fazer mal a ninguém porque o desfecho de seu ataque demorará, pelo menos, o tempo necessário ao deslocamento até a vítima, propiciando tempo para fuga ou outra medida de proteção.

Suponha, por exemplo, que um cidadão necessite passar por algum local perigoso, sujeito a crimes, tarde da noite, em alguma grande cidade por aí. Prevendo o que lhe pode acontecer e procurando se proteger, escolhe, estrategicamente, a trajetória que lhe permita a maior amplitude de visão possível e seja a mais iluminada do lugar porque, dessa forma, terá tempo para fugir, esconder-se, etc., ao menor sinal de perigo. Por outro lado, quando o mesmo cidadão vai caminhando, despreocupado, por algum lugar supostamente seguro, à luz do dia, pode ser que seja subitamente rendido por alguém com uma arma de fogo e, enquanto é levado em outra direção, decida saltar de uma ponte, submergindo sob a água para se salvar; isto é tática.

Mas não se preocupe caso não tenha entendido lhufas do que foi tratado aqui hoje. Basta compreender apenas que a interdisciplinaridade e o cotidiano, mesmo que pareçam frequentemente ininteligíveis ou caóticos, são fontes riquíssimas do saber humano, bastando um pouquinho de sensibilidade, humildade e boa vontade para os processar...


domingo, 5 de setembro de 2010

Haikai do Absoluto



Lá em Jericoacoara, no município de Jijoca de Jericoacoara no Ceará, o andarilho pode, eventualmente, cruzar com alguns equinos (jumentos ou burros) que vivem soltos, pastando entre as dunas e as formações rochosas da região. De vez em quando, como qualquer ser vivo, um ou outro acaba cometendo algum erro fatal, ou simplesmente envelhece, chegando ao final de sua existência terrena. Ainda não se sabe se enquanto vivos, analogamente ao ser humano, eles manifestam, intimamente, alguma preocupação com a relação à cronologia (passado, presente e futuro). Seja como for, no fim de ambas as espécies, isto certamente deixa de ser importante para o indivíduo que o experimenta...


sábado, 4 de setembro de 2010

Sutilezas imperiais


Quem acha que os processos colonizadores terminaram lá no final do século XIX é porque não acompanha os sutis lances da geopolítica mundial. Todavia, não se pode dizer que as formas de subjugar outros povos, visando exclusivamente os próprios interesses, tenham permanecidos inalteradas desde então. Ferramentas e métodos mudaram sensivelmente e a "sutileza" das ações é um bom exemplo disso. Nenhum Estado, hoje, chega em outros locais assassinando habitantes nativos e tomando suas terras, riquezas naturais e autonomia totalmente às claras, como tantas vezes foram feitas alguns séculos atrás; os meios atuais são bem mais sutis. Isto não necessariamente é uma vantagem, uma vez que ações veladas dificultam, sobremaneira, a adequada identificação do inimigo contra quem se deve lutar.

Em meados de junho, o The New York Times noticiou a descoberta, por parte do Pentágono, de uma enorme reserva inexplorada de lítio no Afeganistão. Segundo as autoridades estadunidenses, estima-se que o potencial econômico das reservas possa atingir cerca de US$ 1 trilhão. Só para se ter uma vaga ideia do que isto significa, todo o produto interno bruto do Afeganistão é estimado pelo Fundo Monetário Internacional como sendo, para este ano, cerca de US$ 17 bilhões, ou quase 1/60 do valor atribuído à reserva. Além disso, considerando a crescente demanda do elemento, essencial à produção de baterias para equipamentos elétricos e eletrônicos, o valor estratégico da reserva — que é maior do que qualquer outra conhecida no mundo — deve ultrapassar em muito seu valor financeiro.

Do outro lado do mundo, no extremo sul da América Latina, os britânicos iniciaram, entre fevereiro e março deste ano, a prospecção de petróleo nas águas de um de seus territórios ultramarinos. O problema é que especificamente esse território, o das Ilhas Malvinas (ou Falkland Islands), tem sido disputado há anos no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU) pela Argentina. O Brasil, em conjunto com os demais países que participaram da Cúpula da América Latina e Caribe, posicionou-se favorável à reintegração do arquipélago à soberania argentina, repudiando a decisão unilateral tomada pela Grã-Bretanha de prospectar petróleo na região. Um detalhe interessante é que, à época, ninguém sequer podia imaginar a catástrofe que as operações de uma empresa petroleira britânica causariam no Golfo do México.

E quem poderia pensar que a sutileza se tornaria um mecanismo de dominação?


sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Quando a verdade não importa


"Por fim, desistiu de segurar-se e desabou, chorando compulsivamente sentada no chão e acuada em um dos cantos da sala já escura. Sequer tivera forças para sair dali após a notícia recebida naquela tarde. Não conseguia compreender como um ser humano poderia espalhar tantas mentiras caluniosas contra outro ser humano, fosse por inveja, raiva ou até duas coisas juntas. Quem quer que tivesse feito isso, decerto não avaliara, adequadamente, as consequências de seus atos. Os danos seriam enormes, não apenas para a vida, pessoal e profissional, do objeto da difamação, como também para toda a equipe por ela gerida. Era notório que passavam por momentos cruciais para o adequado cumprimento do cronograma de um projeto que já durava anos e que os prejuízos de um eventual atraso — não restava dúvidas — seriam devastadores para todos ali.

Lembrou-se de umas poucas vezes que havia passado por cima de algumas regras que ela considerava bobas e como ficara receosa de ser descoberta tempos depois. Tinha plena consciência, entretanto, de sempre ter agido exclusivamente em prol de seu trabalho e de sua equipe. Nunca tivera ímpetos de flexibilizar normas com o intuito de auferir, para si ou para outrem, algum tipo de privilégio, ou, então, de prejudicar qualquer pessoa que lhe fosse incômoda pessoal ou profissionalmente. Mas o conjunto de ações que haviam atribuído a ela, certamente, tinham o objetivo de aniquilá-la, além de seus superiores, por consequência. E tornou a chorar, ainda mais copiosamente...

Passou aquela noite insone e na primeira hora do dia seguinte, ela estava sentada à espera de seu superior imediato. Mal ele entrou, trazendo consigo um semblante sisudo, ela logo começou a apresentar os dados e documentos que contrariavam todas as histórias que haviam contado sobre ela. Explicou, também, as razões de certas decisões tomadas ao longo dos últimos meses e que pudessem, talvez, serem consideradas dúbias. Quando, finalmente, cessou o falatório, o homem disse, simplesmente, que ela estava fora e que seria melhor, para todos, que ela mesma colocasse sua função à disposição. Explicou, também, que não tinha mais como sustentá-la ali com acusações tão graves contra ela, fossem ou não verdades. O estrago, afinal, já havia sido feito...
"


quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Fase-S


À primeira vista, o título parece mais o de um texto sobre estratégias para se vencer um jogo de videogame. Longe disso, fase-S se refere a um estado particular assumido pela austenita (fase alotrópica do aço) quando submetida a tratamentos de nitretação (adição de nitrogênio) ou cementação (adição de carbono) ao ponto de ter expandida sua estrutura cristalina original, que é cúbica de face centrada (CFC) — por este motivo, a fase-S também é conhecida como austenita expandida. Associados a esta peculiar configuração cristalográfica, estão muitos defeitos de empilhamento (falhas na sequência de empilhamento dos planos atômicos) e altas tensões residuais, conferindo à fase elevadíssimas durezas (que podem ultrapassar 1500 HV) e resistência ao desgaste por abrasão.

Outra particularidade da fase-S é a elevada concentração de solutos intersticiais (da ordem de 25 at.%) exclusivamente em solução sólida, ou seja, sem a formação de precipitados (fase distinta) devido à interação do carbono, ou do nitrogênio, com os demais elementos da matriz metálica (ferro, cromo, níquel, etc.) que formariam compostos específicos. Tal característica também proporciona uma excelente resistência à corrosão, uma vez que não empobrece a liga metálica dos elementos responsáveis por sua passivação (proteção contra oxidação), tais como o cromo e o níquel. Dessa forma, as aplicações dos aços inoxidáveis austeníticos e ligas de cobalto-cromo e níquel-cromo, importantes em diversos setores — que vão desde a fabricação de componentes críticos para reatores nucleares até apetrechos de cozinha —, podem ser bastante ampliadas, já que suas principais limitações são, justamente, as baixas resistências à abrasão e à corrosão.

As principais técnicas de obtenção da camada superficial de fase-S são os tratamentos termo-químicos de baixa temperatura, especialmente os auxiliados por plasma. Isto porque estes processos possuem a capacidade de eliminar a camada de passivação desses metais durante o processo, eliminando a necessidade de etapas adicionais e permitindo que a difusão dos elementos intersticiais, essencial à formação da camada, não seja prejudicada. Nas últimas duas décadas, a tecnologia de obtenção dessa estrutura vem sendo sensivelmente apurada, não obstante muitas das características fundamentais da fase-S ainda não terem sido satisfatoriamente esclarecidas. Um caminho promissor nesse sentido é o desenvolvimento de novas técnicas para uma avaliação mais efetiva das propriedades mecânicas da camada, tal como a microesclerometria instrumentada, mas isto é um assunto para um outro dia.

Para quem quiser se aprofundar no assunto, uma das melhores referências sobre o tema é o artigo de Dong, H. S-phase surface engineering of Fe-Cr, Co-Cr and Ni-Cr alloys. In: International Materials Reviews. ASM International: 2010. v. 55. n. 2.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Paranormalidades


A ciência e a fé têm andado de mal já há algum tempo, mais por conta das pessoas do que por elas mesmas, propriamente ditas. Embora não haja, tecnicamente, qualquer incoerência no fato de um crente ser um cientista ou vice-versa — mesmo porque ambas as áreas são meros constructos da intelectualidade humana — sempre há tensões, veladas ou explícitas, a cada avanço científico ou a cada nova crença estabelecida. Talvez a origem de todo o problema esteja nas concepções enviesadas, tanto de um lado quanto do outro. Afinal, parece que pretender compreender a fé a partir da ciência é tão sem sentido quanto buscar compreender a ciência pela fé. "Cada-macaco-no-seu-galho" seria um excelente mantra de paz!

Seja como for, não se pode impedir que os seres humanos tentem conciliar duas cosmovisões tão distintas a partir de uma mesma lógica. No final de maio deste ano (30/05/2010), o caderno Ciência da Folha de São Paulo trouxe uma reportagem sobre o Núcleo de Estudos de Fenômenos Paranormais (Nefp) da Universidade de Brasília (UnB). Ligado ao Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares, o núcleo era responsável por estudos sobre fenômenos que escapam à ciência convencional. Recentemente, o instituto de Física da UnB protocolou um pedido de extinção do núcleo de estudos — talvez porque o coordenador do núcleo também seja físico, graduado pela Universidade de Oxford, Reino Unido, e especialista em física da matéria condensada — sob a alegação de que, além do núcleo não produzir conhecimento científico, ainda põe em xeque a credibilidade de toda a instituição. A polêmica se agravou com a prisão de uma "paranormal" por atrapalhar as investigações de um triplo assassinato no qual, aparentemente, tem ligações. A vidente apresentava como "prova" de suas habilidades um certificado de instrutora em um dos cursos de extensão organizado pelo núcleo. "Durma-se-com-um-barulho-desses" seria um mantra mais adequado nesse caso!

Interessante notar, no entanto, como os "macacos continuam dividindo os mesmos galhos", a ponto de parecer impossível separá-los. A alegação de que a credibilidade de toda uma universidade pode ser abalada por um núcleo de estudos cheira à preconceito. Com perdão dos mais puritanos, "universidade" é qualidade ou condição do que é universal (Houaiss, 2001) e não do que é "científico" e, portanto, não deveria, mesmo, preocupar-se apenas com o que se encaixa, exclusivamente, na metodologia científica vigente. A Universidade de Duke, nos EUA, por exemplo, manteve por mais de seis décadas um departamento de parapsicologia. Não se está dizendo com isso, obviamente, que a ciência atual está equivocada, que charlatões devam ser protegidos ou qualquer baboseira que o valha (esse macaco deve ir para aquele galho vazio, ali, mais adiante!), apenas que cassar um departamento por irregularidades no funcionamento, contenção de despesas ou por uma mera deliberação coletiva é bem diferente do que extingui-lo porque seus trabalhos vão abalar a credibilidade de uma instituição.

Quem sabe, algum dia, ciência e fé voltem a fazer as pazes e acabem de vez com essas relações paranormais*...


* No sentido de "fora da normalidade", considerando que "normal" seja uma coexistência pacífica.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

O niilismo político


Durante a visita feita à Bienal do Livro de São Paulo, ocorrida neste mês, entre as muitas campanhas publicitárias que se desenvolviam no local, um candidato à reeleição ao cargo de deputado federal pelo estado de São Paulo, em pessoa, promovia, também, sua campanha política. Junto a alguns correligionários, panfletava na calçada para os apressados transeuntes e para os passageiros que aguardavam na fila do ônibus gratuito que os levaria do Anhembi à estação do Metrô mais próxima. Alguém ali, ao notar a presença do político, fez o seguinte comentário a uma das meninas que ajudavam na panfletagem: "Aqui, pelo menos, eles [os políticos] trabalham, né?!".

É bem verdade que a classe política anda bastante desacreditada e há motivos de sobra para que isto esteja acontecendo. Mas, é igualmente verdade que toda generalização é burra. Essa espécie de niilismo político nada tem de útil para a construção de uma nação melhor e mais justa. Muito pelo contrário, serve, justamente, para manter privilégios de quem nunca os mereceu possuir. Alguém que valha a pena ser eleito jamais compraria votos ou faria acordos espúrios em troca deles; quem não vale a pena, sim. E à medida que bons e maus são jogados na mesma vala comum, os últimos se dão melhor porque conseguem os votos necessários se utilizando de meios sórdidos que nunca seriam cogitados pelos primeiros. Por qual outro motivo, pensa o leitor ou a leitora, tantos escândalos apareceriam, exatamente, na época das eleições?

Aquele comentário, desrespeitoso e cheio de preconceito, deixa claro que parte da sociedade precisa ser, urgentemente, chamada à responsabilidade, pois se a situação da classe política chegou ao nível atual, não foi por causa dos maus políticos, mas, sim, por causa dos maus eleitores que os elegeram ou se omitiram, permitindo que fossem eleitos. A tempo, o fato do candidato escolhido não ter sido eleito também não legitima, em hipótese alguma, o boicote ao seu governo por parte dos cidadãos, simplesmente, porque a sociedade é a mesma, antes e depois das eleições. Trabalhar para que as coisas piorem, só porque foi o outro candidato quem ganhou, é uma atitude infantil e absolutamente irresponsável para com as demais pessoas, inclusive, para com os próprios descendentes.

Da próxima vez que lhe chegarem com um papo de que "políticos são todos iguais", pergunte à pessoa o que ela tem feito para mudar o cenário e se admire com as respostas...


segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Corações Sujos


Estima-se que hoje, no Brasil, vivam mais de 1,5 milhão de descendentes japoneses. É, de longe, o país que abriga a maior colônia japonesa em todo o planeta. Oficialmente, os primeiros imigrantes chegaram por aqui no princípio do século XX, trazidos pelo histórico navio Kasato Maru. Com sonhos de enriquecer e voltar para sua terra natal, os imigrantes trabalharam duro e com singular dedicação, entretanto, apesar de muitos terem, de fato, atingido o tão almejado sucesso econômico, poucos retornaram ao seu país de origem. Após algum tempo, acabaram por se tornar mais brasileiros do que japoneses e, como tantos outros imigrantes, ajudaram a forjar o povo desta imensa nação brasileira.

Poucos atentam, entretanto, às agruras experimentadas pela comunidade japonesa no Brasil, principalmente na época da Segunda Grande Guerra, período em que o Japão passou a integrar as forças do Eixo, junto com a Alemanha nazista e a Itália fascista. Quando em agosto de 1945 os japoneses — cuja nação, em 2600 anos, jamais havia perdido uma guerra — assinou sua rendição incondicional após o massacre nuclear estadunidense, muita gente não acreditou, em especial os kachigumi (ou "vitoristas"), compostos por cerca de 80% dos mais de 200 mil imigrantes japoneses no Brasil àquela época. Estes passaram a apoiar uma organização criminosa chamada Shindo Renmei (ou "Liga do Caminho dos Súditos") que decidiram fazer uma "limpeza ideológica" na colônia, assassinando os makegumi (ou "derrotistas"), apelidados por eles de "corações sujos", que acreditavam na derrota do Império japonês. Assim, entre janeiro de 1946 e fevereiro de 1947, os tokkotai, matadores da Shindo Renmei, promoveram atentados em várias cidades do estado de São Paulo, matando 23 e ferindo cerca de 150 imigrantes.

É esta a emocionante história, real, que Fernando Morais relata em seu livro "Corações Sujos" (2000), editado pela Companhia das Letras. Conhecido por outras grandes obras, como "Olga" (1985) que conta a saga da militante comunista Olga Benário Prestes, o autor mineiro apresenta vários fatos relacionados às ações da seita nacionalista que aterrorizou a colônia japonesa no Brasil após a Segunda Grande Guerra. O livro traz também uma coleção de fotos, cópias de documentos e reportagens, além de transcrições de alguns dos ameaçadores bilhetes atribuídos a Shindo Renmei. O excelente trabalho de pesquisa de Fernando Morais, que tem obras publicadas em mais de dezoito países, é uma ótima referência para quem se interessa por ciências humanas, para os descendentes nipônicos que desejam saber mais sobre a história de seus antepassados no Brasil ou para qualquer outro "gaijin" mais curioso.

Pode-se descobrir, também, ao final da leitura, que a realidade, às vezes, se parece muito com a ficção.

domingo, 29 de agosto de 2010

O Silêncio


Quem já experimentou ficar em algum lugar muito silencioso deve ter percebido uma estranha sensação. Parece que falta algo... Na realidade, lutar contra os ruídos tornou-se tão comum que, quando não é necessário, chega a causar um certo estranhamento. Ademais, os ruídos vão além de sua natureza sonora e perturbam, também, aspectos visuais, sociais, etc. E quando tudo está em silêncio, é a sutileza que fala, dizendo coisas muito mais profundas do que se pode extrair da algazarra diária...


sábado, 28 de agosto de 2010

Liberdade como utopia


Como qualquer outra criação humana, os sistemas político-econômicos nunca são perfeitos. Cada qual com suas peculiaridades, prós e contras, disputam, incansavelmente, a posição de melhor opção dentre todas as existentes. Em uma selva de concepções filosóficas, sobrevivem as ideologias mais fortes e que melhor se adaptam às "contingências ambientais" e, como em um excêntrico darwinismo ideológico, acabam, também, evoluindo gradativamente. E apesar de descendentes dos vários ideários ainda serem encontrados até hoje ao redor do mundo, o fato da lógica democrático-capitalista chegar à hegemonia na atual sociedade globalizada parece ser indiscutível.

Quase duas décadas após o final da Gerra Fria, ainda se discute os efeitos da polarização mundial entre os dois sistemas mais relevantes do mundo contemporâneo: o capitalismo e o socialismo. Ambos se destacaram dos demais, não por apresentar as soluções mais adequadas entre todas, mas por arregimentar a maior quantidade de pessoas em torno de seus próprios princípios, permitindo que se estabelecessem ao longo do período histórico. E a despeito da condição hegemônica do capitalismo, nenhum dos regimes saiu incólume dessa polarização; evoluíram. O capitalismo, hoje, possui várias facetas do socialismo, e vice-versa, distorcendo muitos dos próprios fundamentos primordiais — exemplo patente é a recente discussão sobre ampliação de benefícios sociais e auxílio estatal à saúde pública estadunidense, ou a adaptação da China socialista à nova ordem econômica mundial.

Sabe-se que um dos principais pontos de divergência, entretanto, repousa sobre o controle estatal da economia que, para os capitalistas, deve ser mínimo e, para os socialistas, máximo. Os primeiros alegam que o controle estatal excessivo tolhe a liberdade dos indivíduos, uma vez que restringe a diversidade de opções. Os segundos defendem que a falta de controle permite o privilégio de uns em detrimento de outros. Mas, considerando o número de países capitalistas existentes hoje em dia, pode-se dizer que a visão dos primeiros foi melhor aceita pelas pessoas, afinal, a liberdade é um direito fundamental do ser humano. O que pouca gente explica, no entanto, é que essa liberdade é utópica, simplesmente porque é condicionada ao capital. Se não acredita, tente se alimentar, morar ou transitar (especialmente nas excelentes e caríssimas vias pedagiadas do estado de São Paulo) sem ter dinheiro suficiente.

Não se assuste se constatar que, em um regime capitalista, sua liberdade é tão utópica quanto aquela sociedade sem classes de outros regimes...


sexta-feira, 27 de agosto de 2010

A cama


"O dia amanhecera agradável, apesar do frenético ruído gerado pelo movimento viário antes mesmo das seis da manhã. O sol, que ainda se espreguiçava entre as franjas cinzas do horizonte urbano, prometia mais um dia quente e seco, típico do final de inverno paulistano. Mas, a despeito da baixa umidade relativa do ar — associada à poluição — que maltratava os organismos habitantes da cidade, a estiagem acabava sendo a melhor opção para cidadãos que eram obrigados a se submeter, diariamente, às intempéries. O homem que dormia rente a uma das enormes pilastras, sob o elevado por onde passava o trem metropolitano, era um exemplo típico de alguém que sempre torcia para que a estação das chuvas não chegasse tão cedo.

Sentindo o nariz impregnado pelo forte cheiro de fumaça dos veículos e os ouvidos inundados pelo fluxo sonoro da cidade em movimento, não viu outra alternativa senão despertar de vez. Tomou um gole d'água para disfarçar a fome que sentia desde a noite anterior e já estava pronto para mais uma luta diária pela própria sobrevivência. Apesar do incômodo nas manhãs dos dias úteis, aquele lugar que encontrara — protegido por baixas muretas de concreto e entre duas grandes avenidas — vinha lhe servindo bem como abrigo para pernoitar. Ajeitou os papelões que com custo conservava para servir de cama, reuniu os poucos pertences e saiu para ver se conseguia o almoço em troca de alguma tarefa que pudesse realizar durante o dia. Depois das inúmeras e infrutíferas tentativas de arranjar um trabalho fixo, passou a contar diariamente com o auxílio de alguns conhecidos que o remuneravam, sempre que possível, por trabalhos realizados esporadicamente.

Percorreu as vilas próximas durante umas boas horas antes de conseguir o almoço em troca de seu auxílio, por quase todo o dia, em uma horta comunitária. Cansado, retornou para o local de seu dormitório já no final da tarde e encontrou uma gari da prefeitura terminando de varrer o lugar. Como não viu nada no chão, correu até ela e perguntou exasperado:

— Senhora, senhora... Minha cama, cadê minha cama?
— Cama?! Que cama? Não tinha nada aqui! Apenas uns papelões velhos que o caminhão da prefeitura já levou...

O homem sentiu um vazio no peito e os olhos lhe pareceram, de súbito, mais confortáveis com as lágrimas que ameaçaram se formar. Apenas sorriu, agradeceu a informação e voltou correndo para ver se ainda achava o comércio da vila mais próxima ainda aberto. Quem sabe, se tivesse a sorte, acharia novamente um papelão grosso para dormir no mesmo local que, pelo menos, havia sido limpo naquela tarde.
"


quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Sabe com quem está falando?


Segundo reportagem da Folha de São Paulo veiculada hoje, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) "condenou os bancos a pagar a correção monetária da poupança de quatro planos econômicos das décadas de 1980 e 1990: Bresser (1987), Verão (1989), Collor 1 (1990) e Collor 2 (1991)". Até aí, tudo normal, afinal, durante todo o período o dinheiro ficou à disposição das instituições bancárias para usá-lo e multiplicá-lo com maestria. Acontece que na mesma sentença o tribunal decidiu, também, "reduzir de 20 para 5 anos o prazo para que os correntistas entrassem na Justiça com ações coletivas". Com este pequeno "ajuste", "os bancos derrubam 1.015 das 1.030 ações coletivas que correm na Justiça. Essas ações negadas representam 99% dos 70 milhões de contas de poupanças que teriam direito à correção (...)".

Inacreditável, não?! Mas é verdade. Some-se a isso outro importante detalhe: "a causa dos bancos tem apoio do BC [Banco Central] e do próprio governo, controlador do BB [Banco do Brasil] e da Caixa [Caixa Econômica Federal], banco que mais perde com as correções.". Segundo os bancos, que em 2009 entraram com uma ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) no Superior Tribunal Federal (STF) para tentar resolver de uma vez por todas a questão (a favor deles, claro!), "a disputa causa instabilidade jurídica e ameaça a solvência do sistema financeiro.". A preocupação tem motivo, já que o valor total da dívida estimada pelo BC e pela Fazenda bate na casa dos R$ 105 bilhões.

Entretanto, para se ter uma noção mais nítida da situação, talvez seja útil a informação de que o BC, só no primeiro semestre deste ano, praticamente dobrou o lucro que registrou em todo o ano passado, ultrapassando a casa dos R$ 10 bilhões. No mesmo período, os bancos lucraram alguns bilhões de reais a mais do que TODO o setor de petróleo e gás brasileiro, o que inclui todos os negócios da gigante Petrobras, firmando-se, com folga, como a atividade mais lucrativa do país.

Quem sabe agora esses pretensiosos cidadãos que desejam reaver o valor que lhes foi subtraído de suas economias saibam, exatamente, com quem estão falando...


quarta-feira, 25 de agosto de 2010

A tribologia


Tente empurrar um carro sem rodas e tenha um vislumbre dos fenômenos estudados pela tribologia, este ramo da ciência e tecnologia que lida com o contato relativo entre superfícies. A etimologia do termo indica que a palavra nasceu da união de dois afixos gregos: "tribo" que significa esfregar, atritar ou friccionar e "logos", significando área de estudo. O campo reúne vários conceitos de matemática, física e química aplicadas, especialmente aqueles relacionados às engenharias mecânica, metalúrgica e de materiais, compreendendo fenômenos ligados à fricção, lubrificação e desgaste. A tribologia busca compreender e modelar os mecanismos relevantes envolvidos na interação estática ou dinâmica entre superfícies, objetivando a previsão e o controle de suas consequências.

Obviamente, o exemplo do carro sem rodas é grosseiro e meramente ilustrativo. Os estudos tribológicos se concentram em um universo nanométrico (1 nanômetro = 1/1.000.000.000 m = 1/1.000.000 mm) onde sutis modificações estruturais no material podem resultar em propriedades físico-químicas absolutamente diferentes. É possível compor estruturas multicamadas com distintos materiais para se obter uma propriedade peculiar — um bom exemplo é a aplicação de uma camada de cromo metálico sobre um aço ligado a fim de promover a adequada adesão de uma camada cerâmica mais superficial, como a de nitreto de cromo (CrN), conferindo à peça uma excelente resistência ao desgaste e alta durabilidade. Por outro lado, pode-se também investigar alterações nos materiais para que se evite a formação de alguma camada entre as superfícies durante a interação — como as que aparecem entre as pastilhas e os discos de freios de alto desempenho, diminuindo o atrito e, consequentemente, prejudicando a frenagem.

Na sociedade moderna, é cada vez mais importante, e comum, o uso racional dos recursos disponíveis. Assim, ao controlar mais precisamente fenômenos como atrito, corrosão, desgaste, etc., torna-se possível, também, diminuir o consumo de energia, minimizar períodos de manutenção, poupar recursos não-renováveis, melhorar o desempenho de equipamentos, entre muitos outros benefícios. Alguns estudos, aliás, revelam um fabuloso potencial para efetiva redução de custos e consequente aumento na margem de lucro — só nos EUA, por exemplo, calcula-se que os custos gerados, direta e indiretamente, pelo atrito e desgaste de componentes e sistemas mecânicos ultrapassem os US$ 100 bilhões por ano (Blau, P. Tribology.). Não por acaso, a engenharia de superfície vem crescendo significativamente nas últimas décadas em vários países do mundo.

A "tribo" dos tribologistas ainda deve dar muito o que falar...

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Ouvir e falar


Miss Lucy R., uma inglesa de 30 anos, apresentava uma rinite supurativa cronicamente recorrente quando, em 1892, foi encaminhada ao Dr. Sigmund Freud (1856-1939) devido a curiosos sintomas que desafiavam o repertório clínico do médico que a tratava anteriormente (Freud, S. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 2. p. 134-150.). Era acometida por uma insensibilidade da mucosa nasal interna, bem como a ausência de reação a estímulos provenientes de odores fortes — tais como o de amoníaco, por exemplo —, embora algumas peculiares e subjetivas sensações olfativas a perturbassem insistentemente. A jovem, que trabalhava como governanta na casa de um diretor-gerente — viúvo e pai de duas meninas — de uma fábrica próximo à Viena, apresentava, também, um quadro depressivo havia algum tempo. Freud já desconfiava de sintomas de natureza histérica e tratou de investigar as origens objetivas por meio de uma longa conversa com a paciente, cuja duração, inicialmente prevista para um único encontro, estendeu-se por várias sessões.

Apesar da incapacidade de sentir quaisquer odores, a paciente se dizia perseguida por um cheiro de pudim queimado que, claramente subjetivo, foi logo tomado como ponto de partida para a investigação do trauma associado àquele quadro clínico. A cena descrita pela paciente, na qual o odor surgia pela primeira vez, envolvia uma espécie de brincadeira feita com ela pelas crianças que a impediram de abrir, imediatamente, uma carta de sua mãe, justamente em um momento que se encontrava inclinada a retornar à sua terra natal, a Inglaterra. Nesta ocasião, o pudim que estava assando queimou e o cheiro, desde então, jamais a abandonara. A cena talvez tivesse passado desapercebida não fosse a menção de um mal-estar entre ela e as demais empregadas da casa que a acusavam de, "supostamente", almejar uma posição acima da sua, ou seja, a de esposa e mãe adotiva das crianças do diretor-gerente. Analisado todo o contexto da situação, Freud logo conclui que, de fato, ela deveria estar apaixonada pelo seu patrão, suspeita que, surpreendentemente, é confirmada de imediato pela própria Miss Lucy.

Após ter admitido seus sentimentos, antes reprimidos, para Freud e, finalmente, para si mesma, Miss Lucy apresentou uma sensível melhora no seu quadro clínico geral — nada que já não fosse, de certa forma, previsto pela embrionária ciência psicanalítica daquela época. Uma sutileza do processo, entretanto, merece ser destacada, algo que seria posteriormente conceituado por Freud como fruto da transferência (entre a paciente e o analista), mas que pode ser tranquilamente extrapolada para nossas relações pessoais cotidianas. Embora a informação transmitida por Freud à sua paciente — o amor ao patrão — fosse exatamente a mesma que alimentara a intriga das demais empregadas na casa, sua recepção por Miss Lucy foi absolutamente diversa nos dois casos. A mesma informação que, sob o tom acusatório das colegas, auxiliou na consolidação do trauma, desencadeando uma série de efeitos patológicos, também foi o princípio da cura quando verbalizada pelo psicanalista.

Além de um clássico caso psicanalítico, a história de Miss Lucy, R. poderia ser, também, uma grande lição sobre relacionamentos interpessoais...


segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Quem não se comunica...


Dizem alguns estudiosos que menos de 10% da comunicação se deve, efetivamente, às palavras utilizadas (Mesquita, R. M. Comunicação não-verbal: relevância na atuação profissional. In: Revista paulista de educação física. São Paulo: jul./dez. 1997. v. 11(2). p. 155-63.). Mais de 90% do que é comunicado em um diálogo, face-a-face, deve-se a outros fatores como postura, gestual, entonação de voz, etc., que, no geral, não são conscientemente controlados ao longo do processo. Assim, considerando que quase a totalidade da informação trocada entre os indivíduos, é passada por mecanismos alheios ao controle lógico-objetivo, não é necessário ser um especialista para inferir o gigantesco abismo de compreensão existente entre semelhantes. Aliás, a despeito do alto grau de dificuldade envolvido nas comunicações, pode-se dizer que é quase um milagre que as pessoas ainda consigam se entender pela fala ou pela escrita.

Além da questão envolvendo a transmissão de uma determinada ideia ou conceito à outra pessoa, há mais um grande obstáculo que é a tradução, em palavras, das próprias emoções, sentimentos e demais sensações abstratas, frequentemente essenciais à compreensão daquilo que se deseja comunicar — tarefa que requer habilidades humanas nada triviais. Todos esses fatores combinados explicam, se não todos, boa parte dos conflitos entre indivíduos, além das diversas incompreensões de autores, intelectuais, poetas, artistas, etc. Poder-se-ia asseverar — mesmo sendo demasiadamente audacioso fazê-lo sem embasamento científico — que se as consciências pudessem se comunicar diretamente, ou seja, se um interlocutor pudesse ser o outro, ainda que por um instante, as discussões e incompreensões, simplesmente, não existiriam.

Mas, talvez o pior problema em toda dinâmica comunicativa seja a retroalimentação da mensagem durante um diálogo. Quando alguém diz algo para outra pessoa, espera uma certa reação que, se ausente ou muito distinta da prevista, desorienta o emissor da mensagem. Um efeito similar pode ser verificado em um experimento em que a mãe, interagindo com seu bebê, subitamente para de responder aos estímulos da criança — como, por exemplo, ao manter uma face neutra, sem expressão, enquanto o bebê sorri para ela. Percebendo a não-correspondência de sua mensagem, o recém-nascido reage, às vezes de forma desesperada. E uma escala diferente, o mesmo ocorre entre adultos quando, por exemplo, alguém mais emotivo espera uma reação impulsiva, mas é surpreendido pelo silêncio do outro. Enquanto a compreensão do primeiro é de que suas exasperações não significaram nada, pode ser que para o segundo, o silêncio seja a prova cabal de que aquelas palavras tocaram fundo sua alma.

Quando o saudoso Abelardo Barbosa (1917-1988), o Chacrinha, dizia: "Quem não se comunica, se trumbica!", todo mundo pensava que era só piada...


domingo, 22 de agosto de 2010

Haikai da guerra



Por incrível que pareça, agosto já vai terminando e as flores começam, tímidas, a dar o ar de sua graça em alguns pontos da cidade. Trata-se do prenúncio de uma guerra a ser travada pelas tropas floridas da primavera que devem aportar por aqui em setembro. As variadas cores lutarão bravamente, em várias frontes, contra o regime autoritário do cinza urbano e, ao menos por algum tempo, devem sobrepujá-lo, instituindo uma nova ordem na cidade: a da beleza. Pena ser tudo tão fugaz quanto as pétalas de uma flor...


sábado, 21 de agosto de 2010

Utopias...


Utopia. Segundo Houaiss (2001), o termo se refere a "qualquer descrição imaginativa de uma sociedade ideal, fundamentada em leis justas e em instituições político-econômicas verdadeiramente comprometidas com o bem-estar da coletividade" ou, por extensão de sentido, "projeto de natureza irrealizável; ideia generosa, porém impraticável; quimera, fantasia". A palavra já foi um neologismo no início do século XVI, quando Sir Thomas More (1480-1535) — hoje santo canonizado pela Igreja Católica — escreveu seu livro Utopia (1516), no qual descrevia uma ilha imaginária que abrigava uma sociedade perfeita. A etimologia do termo indica sua formação pela união de dois radicais gregos: ou (do advérbio de negação) e tópos (lugar), significando "em lugar nenhum".

Posteriormente, outros pensadores, como o filósofo alemão Ernst Bloch (1885-1977) e o sociólogo húngaro Karl Mannheim (1893-1947), desenvolveram ainda mais o significado do termo, atribuindo-lhe a um projeto de organização social alternativa capaz de apontar potencialidades concretas e realizáveis que poderiam contribuir para a transformação da ordem política instituída (Houaiss, 2001). Com o passar do tempo, o senso comum acabou adotando o termo como sinônimo de qualquer coisa ideal, inatingível, impossível de ser concretizada e, talvez por isso, as utopias começaram a ser consideradas devaneios inúteis em um mundo prático como o atual.

As utopias, entretanto, são absolutamente fundamentais para o desenvolvimento humano — como rapidamente mencionado no texto "O real e o utópico". São as utopias que fornecem a direção, o norte, a orientação para onde se deve seguir. Sem as utopias, o esforço de melhoria perde o sentido porque se corre o risco de assumir "o melhor" como sendo o estado final. Não fosse a utopia do determinismo científico, talvez os esforços na busca por mais explicações sobre os infinitos fenômenos já teria esmorecido. Por que razão, então, tanta relutância em se discutir utopias sobre regimes políticos, relações sociais, sistemas econômicos, etc.?

Parafraseando um general romano (106-48 aC.) que repetia para seus amedrontados marinheiros "Navigare necesse; vivere non est necesse." ou, em português, "Navegar é preciso; viver não é preciso." (Bachinski, C. Sic est in proverbio - Assim diz o provérbio. Juruá Editora, 2006. p. 93), poder-se-ia, com relação  às utopias, dizer: "Sonhar é preciso; ver realizar não é preciso."...


sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Ecologia urbana


Segundo reportagem do O Globo, entrou em vigor, recentemente, uma nova lei na Cidade do México, proibindo os comerciantes de fornecer, gratuitamente, sacolas plásticas a seus clientes. A lei que prevê multas entre 7.460 a 1.149.200 pesos mexicanos e até prisões de até 36 horas para quem a descumprir, também estabelece que apenas sacolas plásticas biodegradáveis poderão ser vendidas na capital mexicana. A medida, dessa forma, pretende reduzir o consumo e, obviamente o descarte, de um volume estimado em vinte milhões de sacolas plásticas por dia. A Lei dos Resíduos Sólidos foi aprovada em agosto do ano passado, prevendo o período de um ano para adaptação.

Não há como negar que a medida é um tanto ousada — e estranha — para um país que está entre os dez maiores produtores de petróleo do planeta. Independentemente disso, a notícia vem em muito boa hora. Vinte milhões de sacolas plásticas a menos, por dia, no meio ambiente pode parecer pouco em um contexto global, mas, sem dúvida, fará grande diferença no longo prazo. No início de 2008, a China também lançou mão de uma proibição similar. Lá, entretanto, o volume de sacolas plásticas descartáveis chegava a astronômica cifra de três bilhões de unidades diárias — uma verdadeira ameaça ambiental e um absurdo desperdício de recursos escassos.

O que se pode lamentar, entretanto, é que ainda haja a necessidade de governos criarem esse tipo de lei. Qualquer cidadão ou cidadã, consciente da importância ecológica para o planeta, é absolutamente livre para se negar a receber uma sacola plástica descartável que lhe ofereçam sem real precisão — não deveria haver necessidade de se criar uma legislação específica para algo, assim, tão banal. Mas, confronte essa ideia com a de alguns comerciantes da mesma Cidade do México que vêm declarando a disposição de, deliberadamente, desrespeitar a nova lei.

Quem sabe algum dia, também, outras idiossincrasias, como recolher a sujeira dos próprios cães levados a passear nas ruas da cidade, possam ser naturalmente estabelecidas, não havendo a necessidade de se criar leis para punir proprietários mal-educados...

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Automorfo

"In matematica si dice numero automorfo o anche intero automorfo un intero positivo che nelle notazioni decimali ha il quadrato che presenta nella sua parte finale il numero stesso. Esempi: 5² = 25, 76² = 5776, 890625² = 793212890625." — Wikipedia
A passagem foi extraída da Wikipedia Italiana e, claro, não se poderia deixar de comentá-la por aqui. Mesmo para quem não sabe italiano, a universalidade da matemática permite compreender, sem grandes dificuldades, o que o texto quer dizer. Descreve um número automorfo, ou inteiro automorfo, como sendo aquele cujo quadrado apresenta, no final, o mesmo número que o originou. Por exemplo, ao se elevar o número 1 ao quadrado, ou seja, multiplicá-lo por ele mesmo (1 x 1), o resultado termina com o próprio número no final (1). O mesmo se passa com 25, cujo quadrado vale 625, ou com quaisquer outros exemplos mencionados no excerto. A propriedade pode ser verificada em uma série de outros números inteiros positivos.

Apesar dessa classe numérica existir em qualquer língua, desde que se compartilhe da mesma matemática, não parece ser muito mencionada em vários idiomas. Uma rápida pesquisa em qualquer mecanismo de busca na internet revela que o termo é usado principalmente em italiano e espanhol. Em português, os números com tal propriedade são chamados de automórficos, mas também não parecem ser muito discutidos, especialmente no Brasil. Talvez as funções automórficas, conceito desenvolvido pelo matemático, físico e filósofo francês Jules Henri Poincaré (1854-1912) para solucionar equações diferenciais lineares de segunda ordem com coeficientes algébricos, sejam mais conhecidas e úteis que seus primos numéricos.

Seja como for, apesar do nome deste "blog" não ter nascido do conceito de "número automorfo", a ideia tem tudo a ver com este veículo — além da própria curiosidade do fato, claro. Um ponto-de-vista diferente pode se agregar a outros e ampliar "quadraticamente" a visão de quem o conhece. Neste processo, a pessoa em si, embora maior, permanece essencialmente a mesma no final, tal como quando se quadra um número automorfo.

E se não servir para mais nada, o conceito de número automorfo pode, ao menos, esclarecer a saudação "automórfica", lá de cima, na apresentação do Automorfo: "Bem-vindo ao seu mundo!".

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

O cachorro falante


Em 1710, o filósofo irlandês George Berkeley (1685-1753), em seu "A treatise concerning the principles of human knowledge" escreveu:

"It is indeed an opinion strangely prevailing amongst men, that house, mountains, rivers, and in a word all sensible objects, have an existence, natural or real, distinct from their being perceived by the understanding. But, with how great an assurance and acquiescence soever this principle may be entertained in the world, yet whoever shall find in his heart to call it in question may, if I mistake not, perceive it to involve a manifest contradiction. For, what are the fore-mentioned objects but the things we perceive by sense? and what do we perceive besides our own ideas or sensations? and is it not plainly repugnant that any one of these, or any combination of them, should exist unperceived?" (Berkeley, 1710, p. 23-4)

No texto, Berkeley questiona a ideia da corrente realista de seu tempo que concebia uma verdade existente fora do sujeito, passível de conhecimento à medida em que é estudado. Como não há forma de se entrar em contato com o mundo real, a não ser pelas percepções captadas pelos nossos sentidos, é evidente que a realidade, ou a verdade, em que estamos imersos jamais poderá ser conhecida exatamente como é. Outros filósofos que o sucederam, entre eles Bertrand Russell (1872-1970), admitiram tal subjetivismo, mas consideraram que, apesar de aquilo que cremos ser o mundo real não passar de inferências sensoriais, tais impressões são a única matéria disponível pela qual o cientista pode estudar e conhecer a realidade externa ao indivíduo.

Fato é que um universo objetivo, simplesmente, não existe e admitir tal ideia não significa, em hipótese alguma, refutar o conhecimento científico acumulado pelo ser humano ao longo dos séculos. Entretanto, ao negar a existência de qualquer coisa que não pertença à esfera científica, lógica ou racional, parece ser um erro primário. É óbvio que admitir a existência de alguma irracionalidade, tampouco significa tomá-la como prova de inutilidade dos métodos de investigação filosófico-científicas — isto, igualmente, também seria um erro primário.

Talvez um exemplo ilustre melhor o ponto, como o usado por Joel Rufino em uma de suas aulas: "Se, por exemplo, um cachorro entra por aquela porta e nos dá bom-dia, não acreditaremos. Vemos e ouvimos o cachorro, mas não acreditamos: cachorros não falam" (Rufino, J. Chico Xavier x Bertrand Russell. In: Revista Caros Amigos. São Paulo: Editora Casa Amarela, maio de 2010. n. 158. p. 8.). Neste caso hipotético, o mais adequado talvez fosse admitir a existência do cachorro falante e se investigar as causas, os motivos ou, pelo menos, a validade do estranho acontecimento. Ignorar o cachorro simplesmente porque animais dessa espécie não falam parece ser bem pouco produtivo.

Menos produtivo ainda seria alguém que não estava na sala no momento tentar convencer todos os demais de que, mesmo eles tendo visto e ouvido o cachorro, aquilo nunca existiu...


terça-feira, 17 de agosto de 2010

A pedra


"O rapaz ia pisando firme pelo caminho, irado com os últimos acontecimentos em sua vida. Poucas coisas vinham ocorrendo da forma como ele, tão cuidadosamente, havia planejado e, não bastasse isso, os revezes ainda pareciam assumir propositadamente — como se isto fosse plausível — a pior configuração possível. E por mais que pensasse, não conseguia entender como tudo aquilo podia estar acontecendo. Tampouco podia se ver como responsável por qualquer uma daquelas dificuldades. Suas simulações mentais teimavam em apontar sempre um ou outro culpado pelos dolorosos percalços que vinha enfrentando. Afinal, como poderia, ele, ter previsto ações, assim, estapafúrdias de outrem.

Tão entretido estava com sua ruminação mental que não percebeu uma pedra que se aproximava. Topou com ela, caiu e se feriu em várias partes do corpo. Levantou de supetão, esbravejou, gritou, esperneou, chutou a pedra, cobriu-a com todos os impropérios conhecidos, enfim, extravasou todo o sentimento reprimido ao longo dos últimos dias. A pedra, como é do feitio das pedras, permaneceu ali, apenas, calada e inerte, sem esboçar a mínima alteração, até que a última gota de ódio do rapaz tivesse sido destilada contra ela. Cansado, ele se deixou cair sobre os próprios joelhos, começando a chorar.

Depois de alguns minutos, já recomposto, embora ainda dolorido, levantou-se e olhou para a pedra que, inabalável, permanecia exatamente no mesmo lugar. Aquela passividade, por um instante, remeteu-o a si mesmo e acabou por se arrepender profundamente de sua perda de autocontrole. Compreendeu, então, a lição que aquela pedra lhe ensinava: não importaria o que fizesse, nada poderia atingi-la. Mesmo que a destruísse, ela jamais deixaria de ser uma pedra por causa disso. Logo, fez como se pretendesse agradecer o ensinamento e seguiu seu caminho, agora bem mais calmo.

Já a pedra, sequer ameaçou se mover...
"