sexta-feira, 27 de agosto de 2010

A cama


"O dia amanhecera agradável, apesar do frenético ruído gerado pelo movimento viário antes mesmo das seis da manhã. O sol, que ainda se espreguiçava entre as franjas cinzas do horizonte urbano, prometia mais um dia quente e seco, típico do final de inverno paulistano. Mas, a despeito da baixa umidade relativa do ar — associada à poluição — que maltratava os organismos habitantes da cidade, a estiagem acabava sendo a melhor opção para cidadãos que eram obrigados a se submeter, diariamente, às intempéries. O homem que dormia rente a uma das enormes pilastras, sob o elevado por onde passava o trem metropolitano, era um exemplo típico de alguém que sempre torcia para que a estação das chuvas não chegasse tão cedo.

Sentindo o nariz impregnado pelo forte cheiro de fumaça dos veículos e os ouvidos inundados pelo fluxo sonoro da cidade em movimento, não viu outra alternativa senão despertar de vez. Tomou um gole d'água para disfarçar a fome que sentia desde a noite anterior e já estava pronto para mais uma luta diária pela própria sobrevivência. Apesar do incômodo nas manhãs dos dias úteis, aquele lugar que encontrara — protegido por baixas muretas de concreto e entre duas grandes avenidas — vinha lhe servindo bem como abrigo para pernoitar. Ajeitou os papelões que com custo conservava para servir de cama, reuniu os poucos pertences e saiu para ver se conseguia o almoço em troca de alguma tarefa que pudesse realizar durante o dia. Depois das inúmeras e infrutíferas tentativas de arranjar um trabalho fixo, passou a contar diariamente com o auxílio de alguns conhecidos que o remuneravam, sempre que possível, por trabalhos realizados esporadicamente.

Percorreu as vilas próximas durante umas boas horas antes de conseguir o almoço em troca de seu auxílio, por quase todo o dia, em uma horta comunitária. Cansado, retornou para o local de seu dormitório já no final da tarde e encontrou uma gari da prefeitura terminando de varrer o lugar. Como não viu nada no chão, correu até ela e perguntou exasperado:

— Senhora, senhora... Minha cama, cadê minha cama?
— Cama?! Que cama? Não tinha nada aqui! Apenas uns papelões velhos que o caminhão da prefeitura já levou...

O homem sentiu um vazio no peito e os olhos lhe pareceram, de súbito, mais confortáveis com as lágrimas que ameaçaram se formar. Apenas sorriu, agradeceu a informação e voltou correndo para ver se ainda achava o comércio da vila mais próxima ainda aberto. Quem sabe, se tivesse a sorte, acharia novamente um papelão grosso para dormir no mesmo local que, pelo menos, havia sido limpo naquela tarde.
"


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