quarta-feira, 31 de março de 2010

E o mundo não acabou...


Para a infelicidade dos apocalípticos, o mundo não acabou. A despeito das inúmeras elocubrações pseudo-científicas, o experimento de ontem, na Organização Europeia para Pesquisa Nuclear (CERN), não criou um buraco negro engolidor de realidades. Criou, sim, vários — com o perdão da precisão científica em favor do viés poético — buracos negros em miniatura, cujos resultados devem fornecer dados para inúmeras outras pesquisas futuras.

Segundo o portal de notícias G1, ontem, às 8:06 h (horário de Brasília), a equipe do LHC (monumental acelerador de partículas chamado de Grande Colisor de Hádrons, em inglês, Large Hadrons Collider) realizou o primeiro experimento bem sucedido com a colisão de prótons altamente energéticos, após mais de um ano de atraso. As partículas foram aceleradas a 99,99% da velocidade da luz (c = 300.000 km/s), atingindo uma energia recorde da ordem de sete trilhões de eletronvolts, nível energético próximo do que se acredita ter surgido no preciso momento da origem de nosso universo.

O LHC está localizado na fronteira entre a França e a Suíça e conta com um túnel subterrâneo de 27 km de extensão — onde as partículas são aceleradas por gigantescos eletroimãs — construído há cerca de 100 m da superfície. Possui vários detectores de sub-partículas elementares e custou, ao consórcio multinacional responsável por sua construção, cerca de três bilhões de Euros. Entre os objetivos — lógico, tão humildes quanto o investimento — estão o de simular as condições originais do "Big Bang", o de investigar outras dimensões além das três conhecidas (não há nada de místico aqui!) e o de encontrar provas experimentais do, atualmente teórico, Bóson de Higgs (aquele sobre o qual este autor disse que se recusava comentar) que explicaria o porquê de todos os corpos terem massa.

Um feito de tamanha superação humana, merece aplausos, independentemente das crenças, ou ausência delas, de cada um. Mesmo porque, se foi tão difícil simular apenas o estalo dos dedos de Deus, será, muito provavelmente, inviável, econômica e intelectualmente, destituí-Lo da criação do universo, não importando o quão próximo da realidade cheguem nossas teorias. Assim, não misturemos hádrons com bósons e continuemos, pacificamente, com nossa infinita busca pelo conhecimento.


terça-feira, 30 de março de 2010

Sexomnia?!


E por falar em Sade, a BBC, através da Folha Online, publicou uma história sobre um cidadão belga, acusado de molestar sexualmente sua própria filha, e que foi absolvido pela justiça de seu país recentemente. A denúncia fora feita por por sua ex-mulher que ouviu a filha contar ter acordado com seu pai, molestando-a, em uma noite de junho de 2008. O acusado não negou os fatos, mas disse não se lembrar de absolutamente nada.

"E como o cidadão foi absolvido?" deve estar se perguntando o leitor ou a leitora... Pois é, esta é a parte inusitada da história. A alegação dos advogados de defesa é de que o acusado sofre de um raro distúrbio do sono chamado de sexomnia — um tipo de sonambulismo que leva a pessoa a praticar atos sexuais sem acordar, ou seja, inconscientemente, e sem se lembrar de nada posteriormente.

Segundo os advogados de defesa, o acusado esteve, na noite anterior aos fatos, em uma discoteca libertina com uma "amiga", situação que, associada ao consumo de álcool, poderia ter desencadeado suas reprováveis ações durante o sono. Como a junta de especialistas, convocada pela defesa, disse não poder assegurar que o cidadão sofria, ou não, de tal distúrbio, o magistrado, pela dúvida, optou pela absolvição do réu. E antes que se condene o que a justiça belga parece ter absolvido, é importante mencionar que a própria garota disse que seu pai não a teria visto ou reconhecido durante o ocorrido.

Diz se não parece uma história típica do "Acredite se Quiser"...


segunda-feira, 29 de março de 2010

Imperativos da Superioridade


Maurice Aymard, em seu texto Amizade e Convivialidade (In: Ariès, P.; Duby, G. História da vida privada. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p.455-499. v. 3.), analisa vários aspectos da organização social ao longo da história européia. Partindo da unidade familiar, discorre sobre as intrincadas relações entre os indivíduos, seus grupos relacionais e as instituições estabelecidas, como a Igreja e o Estado.

Várias são as cenas usadas no texto para embasar as conclusões do autor, como a entrega dos filhos para as amas-de-leite — comum à aristocracia dos séculos XVII e XVIII —, a educação das mulheres orientada para o casamento e para a vida doméstica, o cultivo de amizades como fulcro para a ascensão social, os acertos matrimoniais realizados pelas famílias dos noivos, as confraternizações entre diferentes classes, sexos e idades, as delineações hierárquicas na família e na sociedade, a origem das associações civis, o surgimento de parentescos espirituais na forma dos apadrinhamentos, a institucionalização da formação educacional, entre várias outras. Despretensiosamente, o leitor é levado a perceber que qualquer semelhança com os costumes contemporâneos não é mera coincidência.

Mas dentre as muitas passagens, uma delas chama especial atenção, talvez por tratar de um momento, no mínimo, pitoresco da vida de um eminente filósofo francês do Iluminismo, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778):

"As gravuras que mostram maridos fustigados, as calças abaixadas, lembram muito as palmadas ministradas por mademoiselle Lambercier em Jean-Jacques Rousseau menino: 'Após a execução, achei a prova menos terrível do que fora a expectativa, e o mais bizarro é que esse castigo afeiçoou-me ainda mais àquela que mo impusera [...]: pois encontrei na dor, na própria vergonha, um misto de sensualidade que me despertara mais desejo que medo de prová-lo uma segunda vez pela mesma mão [...]. (...) Quem acreditaria que esse castigo de criança recebido aos oito anos de uma moça de trinta decidiu meus gostos, meus desejos, minhas paixões, meu eu pelo resto da vida [...]?' (Rousseau apud Aymard)"

Claro que há a necessidade de contextualizar a passagem. Com a história do pequeno Rousseau, o autor exemplificava uma espécie de efeito colateral da superioridade masculina imposta pela sociedade da época. A organização social, ao mesmo tempo que impingia às mulheres uma posição inferior, também obrigava os homens a exercer sua superioridade, nem sempre desejada. Mera coincidência ou não, Marquês de Sade, outro ilustre francês, que experimentara sensações semelhantes, viveu mais ou menos na mesma época.

Talvez as implicações sociológicas do machismo não sejam, assim, tão lineares quanto se acredita por aí, não é mesmo?


domingo, 28 de março de 2010

Fugir de Si


Às vezes, tudo o que se quer é desaparecer, fugir de si mesmo, dar um tempo de si próprio, enfim, sumir. Mas, claro, isto nunca é possível. Aliás, como nos alertam os estudiosos da psique humana, dissociar-se é esquizofrênico. Ainda assim, há quem insista, tentando por todos os meios: drogas, lícitas ou não, trabalho excessivo, rotina infinita, jogos intermináveis, etc. Há, também, quem não aguente e jogue tudo para o alto, quem se revolte, quem chute o pau da barraca... Os poetas apenas escrevem.


sábado, 27 de março de 2010

Desencontros pela vida...


Ela estava especialmente linda naquela manhã de terça-feira, sem qualquer razão aparente. Trajava um vestido azul de um tecido misto que parecia tocar seu corpo delicadamente, realçando e disfarçando exatamente o que deveria. Decidira ir a pé para o trabalho, aproveitando o dia ensolarado mas ainda fresco pela manhã. Caminhava de forma segura e com uma postura altiva, chamando a atenção de um ou outro transeunte que por ela passava. Seus negros cabelos, ainda úmidos, iam exalando um suave aroma de lavanda e completavam o quadro de beleza e simplicidade que desenhava involuntariamente com seu caminhar.

Já havia algum tempo que mergulhara fundo no trabalho depois de um frustrado relacionamento. Curara-se, finalmente, e talvez por isso sentia-se algo especial naquela manhã. Quem sabe não seria aquele o dia em que conheceria alguém legal e descomplicado para compartilhar seus sucessos e fracassos? Enquanto caminhava, divertia-se pensando que aquela sensação de bem-estar, talvez, pudesse ser também o prenúncio de alguma outra grande encrenca no escritório e, assim, ia sorrindo furtiva e esporadicamente pelo caminho.

Ele acordara de bem com a vida, tão de bem que pressentia ser aquele o dia em que encontraria seu par ideal. Estava cansado da vida boêmia que vinha levando e pretendia encontrar alguém legal e descomplicada, como ele, para que pudesse, finalmente, estabilizar-se na vida. Vestiu uma camiseta branca e a única calça jeans limpa do seu guarda-roupa, calçou o tênis e juntou o monte de roupa suja que trouxera da última viagem no final de semana. A segunda-feira havia sido deveras difícil na empresa e não houve tempo para arrumar aquela bagunça toda na noite anterior. Além disso, viriam hoje limpar o apartamento e sua consciência o proibia deixar tudo como estava. Olhou para o relógio e se apressou, mas na garagem, uma surpresa: o pneu dianteiro do carro estava totalmente vazio. Olhou de novo para o relógio e desistiu de trocá-lo. Pegou as coisas e decidiu ir andando, afinal, o tempo que perderia no trânsito por causa de dez minutos de atraso equivaleriam ao percurso feito a pé. Acenou para o porteiro e saiu apressado.

Correu para aproveitar o semáforo de pedestres aberto e, no meio da rua, esbarrou de leve em uma moça. Desculpou-se, mas ao olhar para ela, não conseguiu dizer mais nada. Ela era linda em seu vestido azul, cabelos pretos e ondulados recém lavados e um ar que misturava altivez e simplicidade. Teve até a impressão de ter sentido um suave aroma de lavanda no ar. E, apesar de não ter conseguido identificar a expressão em seu semblante, ela parecia ostentar um suave sorriso.

Ela, distraída em seus pensamentos, desculpou-se quando sentiu um esbarrão, mas ao olhar para o rapaz que também se desculpava, sentiu um frio na espinha. Ele se parecia  muito com a pessoa que ela idealizara encontrar: trajes simples, aparentemente bem educado e com uma aura de responsabilidade incomum naqueles dias. Ela tentou dizer alguma coisa, mas nada lhe ocorreu, a não ser que já estava encima da hora para chegar no escritório.

As buzinas tocaram e ambos, percebendo-se no meio da faixa de pedestres, correram cada um para um lado.  Olharam para trás, em busca um do outro, mas o fluxo contínuo de veículos e pessoas bloquearam as respectivas visões. Olharam novamente para os próprios relógios e correram para nunca mais se encontrar...


sexta-feira, 26 de março de 2010

A Medicina Evolutiva - Parte II


Não se poderia falar em evolução dos seres vivos se não existissem os genes. São as constantes mutações do genoma que possibilitam as mudanças decisivas para a adaptação das populações aos ambientes que habitam. Entretanto, segundo a medicina evolutiva, os genes também podem ser os responsáveis por algumas doenças que acometem a raça humana atualmente.

A anemia falciforme, por exemplo, é uma doença hereditária causada pela produção de hemácias em forma de foice, daí seu nome, causando dificuldades na passagem de sangue pelos vasos mais finos e no transporte de gás pelo sangue, entre outros problemas. Alguns estudos mostraram uma certa coincidência entre as zonas africanas habitadas por populações com elevada incidência da doença e as regiões endêmicas da malária, sugerindo que a mutação responsável pela produção de hemácias falciformes tenha sido selecionada ao longo do tempo. Isto porque indivíduos com este tipo de células sanguíneas apresentam maior resistência à malária.

Outra das causas de doenças, segundo a ótica evolucionista, seriam os ajustes no desenho. Adequados pela seleção para melhor desempenhar determinadas tarefas, os seres humanos acabam por sofrer alguns efeitos colaterais resultantes desses pequenos ajustes. É o que se passa com os problemas mais comuns de coluna vertebral manifestados pela nossa espécie, devido ao custo da postura ereta herdada pelos primatas humanos.

Finalmente, os legados evolutivos formam a última categoria compreendida como causas de problemas enfrentados pelo ser humano moderno. Alguns "detalhes de projeto" mal resolvidos pela evolução, ainda causam transtornos, como o cruzamento entre a traquéia e o esôfago que aumenta, sensivelmente, a possibilidade de engasgamento nas pessoas.

Obviamente que muitas dessas hipóteses propostas pela medicina darwinista são, ainda, apenas especulações que carecem de comprovação científica. Entretanto, a capacidade dessa abordagem de gerar novas perguntas, por si só, já parece bastante proveitosa.

Acompanhemos, portanto, o a seleção evolutiva aplicada a esta mutação científica.


quinta-feira, 25 de março de 2010

A Medicina Evolutiva - Parte I


A medicina evolutiva se originou a partir das ideias de Charles Darwin (1809-1882) com a missão de buscar explicações — e, se possível, tratamentos — para as doenças humanas segundo uma ótica evolucionista. Segundo a compreensão evolutiva, muitas das patologias têm origem nas características perpetuadas pela seleção natural devido a um "ganho líquido" do ser humano no ambiente em que vivia. Segundo alguns autores, a medicina darwinista divide as causas das doenças em seis categorias: defesas, infeccção, novos ambientes, genes, ajustes no desenho e legados evolutivos.

A categoria das defesas não seriam causas de doenças, propriamente ditas, mas, sim, adaptações do organismo selecionadas para protegê-lo de determinadas ameaças. Tome como exemplo o enjôo de uma gestante que, ao longo de muitos anos, deve ter sido muito útil para evitar a ingestão de toxinas prejudiciais ao feto na fase mais crítica de seu desenvolvimento.

No caso das infecções, tratar-se-ia de uma seleção competitiva entre um agente infeccioso e o organismo, ambos sendo selecionados um pelo outro, até que algum deles fosse extinto ou que chegassem a um equilíbrio. É o que ocorre, por exemplo, com as bactérias mais resistentes selecionadas pelo uso de antibióticos ou com a anemia temporária selecionada para privar o invasor do ferro presente na hemoglobina.

Já os novos ambientes, provavelmente, devem ser as causas mais comuns na atualidade. Sem tempo para que a seleção ocorresse de forma adaptativa ao novo ambiente, o seres ficaram sujeitos aos efeitos de uma base genética selecionada há vários milhares de anos atrás. Esta seria, por exemplo, uma explicação do porquê as taxas de obesidade estarem subindo de forma tão alarmante em algumas civilizações modernas. A popularização de uma alimentação altamente calórica, combinada à atuação da seleção no sentido de privilegiar os dispositivos fisiológicos para armazenamento de gordura — bastante úteis em um período de baixíssima disponibilidade de calorias — estariam por trás do problema.

Carregamos um perfil genético excelente, mas para coletores-caçadores de alguns milhares de anos atrás...


quarta-feira, 24 de março de 2010

O Manifesto e a Sociedade


Quando Karl Marx (1818-1883) escreveu, em conjunto com Friedrich Engels (1820-1895), o "Manifest der Kommunistischen Partei" (Manifesto Comunista), a Alemanha ainda era uma monarquia, chamada de Reino da Prússia. Naquele ano de 1848, a Revolução Industrial já lançava por todo o globo as sementes do que viria a ser o moderno sistema capitalista. O florescimento da nova classe dominante, a burguesa, já podia ser notada em vários países industrializados, especialmente na França e na Inglaterra.

No texto que lançou, pública e oficialmente, as ideias socialistas, Marx e Engels apresentam, inicialmente, todo o desenrolar da história para se chegar à condição em que a sociedade estava imersa naquele momento. Descrevendo a burguesia como uma classe revolucionária, por terem se libertado da dominação suserana no sistema feudal, evidenciam suas ações para transformar os sistemas sociais e políticos de maneira a promover a hegemonia do sistema de produção capitalista e, com ele, a ampliação de seus privilégios. A consequência, segundo os autores, foi a geração de uma imensa classe proletária explorada e de um sistema que começava a fugir ao controle, contando, inclusive, com a colaboração de membros dissidentes da própria burguesia.

Quase duzentos anos depois, o leitor pode até se assustar com a contemporaneidade do conteúdo daquele texto. Mas é provável que nem mesmo os autores tivessem ideia da proporção que seus pensamentos tomariam ou das consequências para a história mundial até os dias de hoje. Suas ideias ainda reverberam nos campos da filosofia, política, economia, sociologia e outros tantos filões do conhecimento humano.

Mas longe de pretender discutir os méritos e aplicabilidades do marxismo, um de seus principais ensinamentos foi o de que somos todos frutos de uma construção e não resultados de concepções inatas. Por isso, a gênese histórica da sociedade não pode nunca ser esquecida para não se correr o risco de considerar situações como normais, simplesmente porque já estavam aí estabelecidas antes de nascermos.

E ensinar a sociedade que é sempre possível mudar, já bastaria para justificar a importância de todo o ideário de Marx.


terça-feira, 23 de março de 2010

"A Teoria dos Resultados" — Parte IV


Além da imanente dificuldade em se aceitar que a própria visão de mundo pode estar errada, assumir que os resultados obtidos podem mostrar, com relativa precisão, o quão "certo" se está com relação à realidade demanda uma boa dose de abstração e humildade. Não é fácil aceitar a responsabilidade por frustrações que poderiam, facilmente, ser atribuídas ao acaso. Mas o fato é que, uma vez sabidos onde e como chegar a um objetivo, a ausência de resultados indica falha na compreensão da realidade do sujeito.

Por outro lado, a "Teoria dos Resultados", como enunciada, oferece um inusitado método para aperfeiçoamento do próprio modelo de realidade. Em verdade, esta pretensa teoria nada tem de original, ou de inovador, exceto, quiçá, a forma como foi enunciada. Aliás, o método a que se refere é usado há milênios pelos seres humanos, apenas, talvez, de uma forma não tão explícita. Note que a tão propalada diferença entre teoria e prática poderia ser, perfeitamente, um corolário dessa teoria, afinal, sabendo-se algo bem teoricamente, o que causaria tantos problemas na aplicação prática, não fosse a falta de "ajuste fino" entre o modelo mental e a realidade?

Em resumo, o que esta "Teoria dos Resultados" propõe é um alarme que dispara a cada vez que é necessário mudar os procedimentos para alcançar aquilo que se almeja. Quem nunca ouviu falar no adágio que diz ser o primeiro sinal de loucura a atitude de desejar resultados diferentes fazendo coisas iguais? Pois, às vezes, é justamente o que ocorre conosco, homo sapiens modernos, desejando resultados distintos dos que vêm sendo conseguidos usualmente, porém sem mudar em nada a forma de agir.

Assim, da próxima vez que seu salário não aumentar da forma como tinha certeza que aumentaria, que sua promoção não sair na data que esperava, que não tiver o desempenho pretentido em algum exame, etc., lembre da "Teoria dos Resultados"...


segunda-feira, 22 de março de 2010

"A Teoria dos Resultados" — Parte III


Antes de continuar, retomemos os principais pontos estabelecidos até o momento. Dizíamos que o ser humano seria o principal, quiçá o único, responsável pelo que lhe ocorre na vida e esta, por sua vez, poderia ser encarada como uma espécie de jogo no qual deveríamos escolher as melhores opções, dentre as disponíveis, objetivando concretizar o projeto da própria existência. Mencionou-se, também, que o método mais natural para se ajustar o modelo individual de mundo com a realidade é o da experimentação. Assim, sobre essa base, construiremos os conceitos da "Teoria dos Resultados" que era nosso objetivo central.

O fato de desejarmos coisas no futuro implica, necessariamente, na utilização de nosso modelo de realidade para fazer previsões, fundamentais para se traçar estratégias de como alcançar aquilo que se deseja. Uma boa estratégia considera os graus de incerteza associados a cada ação e, prevendo-se uma impossibilidade, por exemplo, evita-se gastos desnecessários de energia em uma determinada tarefa. Finalmente, definido o plano, passa-se à etapa de experimentação, quando as ações, propriamente ditas, começam a ser executadas. É neste ponto que as previsões — e consequentemente o modelo que as gerou — serão colocadas à prova, mostrando-se condizentes ou não com a realidade. Os imprevistos revelam as imprecisões do modelo utilizado.

Logo, a "Teoria dos Resultados" estabelece, simplesmente, que os resultados são uma boa medida do quão próximo se está da realidade. Em outras palavras, se a pessoa crê estar fazendo o necessário para atingir seus objetivos mas não os realiza, sua concepção de realidade está falha. Tal hipótese é perigosamente polêmica porque demanda uma certa abstração para compreendê-la.

Ninguém se proporia a conseguir algo que não deseja ou que não pode conseguir. Não haveria apostadores, por exemplo, se não se acreditasse, minimamente, na possibilidade de se acertar na loteria. Perceba que os milhares de apostadores, mesmo nunca tendo acertado uma única combinação, não se sentem angustiados com a situação, simplesmente porque todos sabem — conforme previsões do respectivos modelos de realidade — que a probabilidade de ficarem ricos da noite para o dia é baixíssima. Por outro lado, ao se atrasar para um compromisso pela n-ésima vez, a pessoa, que desejava chegar pontualmente, indigna-se com os congestionamentos, com o mau tempo, com a falta de sinalização e com tantos outros "imprevistos" pelo caminho. Neste caso, um modelo de mundo que refletisse com precisão a realidade teria discriminado todas os potenciais problemas no percurso, tendo-os evitado ou aceitando-os como riscos assumidos.

Note que a vida observada segundo essa perspectiva revela profundas implicações...


domingo, 21 de março de 2010

Haikai do prenúncio de outono...



Parece que o calor típico do verão só resolveu dar as caras no final da estação, haja vista os dias excessivamente quentes das últimas semanas. Mas houve, também, alguns dias gelados, prenunciando a chegada da nova estação: o outono, cá no hemisfério sul. O tempo, claro, não dá trégua e ontem mesmo já deixamos o equinócio de 2010 para trás. Daqui para frente, as noites tenderão a durar mais do que os dias e a temperatura deve ir diminuindo até o inverno.

Mas se a curteza dos dias não os tornam menos belos, por que as tardes de sol nas praças das cidades deixariam de ser poéticas?


sábado, 20 de março de 2010

Amor não tem preço!


John Bowlby (1907-1990) foi um psicanalista britânico estudioso do desenvolvimento infantil e precursor da teoria do apego. Seus trabalhos, com base etológica, contribuíram para uma melhor compreensão dos mecanismos envolvidos no desenvolvimento do comportamento de apego entre os seres humanos. Analisando uma série de experimentos realizados com primatas (não-humanos), Bowlby conclui que a teoria mais aceita à sua época, a teoria do impulso secundário — segundo a qual o desejo de estar com outros membros resultava da vontade de ter as necessidades essenciais, como o alimento, providas por eles — não se sustentava diante das constatações experimentais (Bowlby, 1984).

Um dos mais contundentes resultados, vieram das experiências de Harry Harlow realizadas com macacos rhesus que, privados da presença da mãe durante as primeiras semanas após o nascimento, apegavam-se a um modelo cilíndrico envolto em tecido, mesmo sendo alimentados por outro modelo, similar, fabricado em arame. Ou seja, apesar da alimentação favorecer a aproximação, não era suficiente para fazer com que os filhotes se "apegassem" ao modelo de arame, passando quase todo o período com sua "mãe" de pano. Verificou-se, também, que mesmo sob ameaça (algumas vezes, jatos de ar comprimido, bastante desagradáveis aos macaquinhos, eram liberados no modelo de pano), os filhotes se agarravam ainda mais ao "modelo agressor", buscando proteção. Posteriormente, na fase adulta, todos os exemplares submetidos às experiências apresentaram dificuldade de socialização com outros macacos, variando em intensidade conforme a duração do isolamento, chegando, inclusive, a efeitos irreversíveis em períodos mais longos.

O comportamento de bebês humanos, obviamente, conta com ainda maior complexidade, o que dificulta sobremaneira a compreensão clara dos processos que desencadeiam o comportamento de apego. O que se sabe, entretanto, é que o apego na fase inicial da vida de uma criança apresenta implicações benéficas para seu desenvolvimento. Alguns trabalhos científicos indicam que bebês cuidados por mães (biológica ou adotiva) mais amorosas, tendem a desenvolver maior segurança emocional e mais facilidade nas interações sociais da criança no futuro (Bussab, 2005). Dada à elevada influência das relações sociais no desenvolvimento dos seres humanos, tais efeitos podem se amainar com o passar dos anos mas, ainda assim, podem gerar consequências para toda a vida do indivíduo.

E para quem pensou que aquela história de "amor não ter preço" era só senso comum, melhor rever seus conceitos...


sexta-feira, 19 de março de 2010

"A Teoria dos Resultados" — Parte II


Partindo do ponto em que assumimos a hipótese de sermos os únicos responsáveis pela direção que nossas vidas tomam, poderíamos fazer uma analogia entre a nossa existência e um jogo. Nele, com regras específicas para cada indivíduo, o objetivo seria, simplesmente, conseguir o maior número de coisas que se almeja, sendo que, a cada passo, surgem novas situações que demandam novas escolhas, por vezes bastante difíceis, resultando em diferentes consequências que vão ao encontro, ou não, daquilo que se deseja. Talvez esta visão seja um tanto reducionista, mas é razoavelmente aceitável para o diminuto modelo de mundo habitado por cada um de nós.

Cabe, aqui, uma observação: o mundo em que vivemos não é o verdadeiro, mas um modelo do original. Este modelo é único, pessoal e inacessível aos demais indivíduos. E, infelizmente, tal como um mapa nunca coincide, ponto-a-ponto, com a região a que se refere, também "nosso mundo" nunca coincidirá com a realidade tal como ela é. Platão, com seu "Mito da Caverna", já chamava a atenção para este detalhe há mais de dois milênios atrás, percebendo que não há como escaparmos das limitações impostas pelos próprios sentidos. Portanto, mais uma vez, a analogia proposta não é, assim, de todo absurda.

Cá estamos, então, em uma partida — única, diga-se de passagem — desse jogo chamado vida, na qual, conforme as restrições impostas pelo destino, ou por consequências de nossas escolhas prévias, precisamos agir de forma a nos encaminhar na direção de nossos objetivos livremente arbitrados. Lúdico, não? Mas note que, em linhas gerais, a vida, realmente, não foge muito disso.

Como qualquer outro modelo, este também deve representar a realidade a que se refere de uma forma minimamente satisfatória, ou não teria qualquer utilidade. Assim, um método bastante natural é o da experimentação que consiste, simplesmente, em testar uma previsão. Os resultados retroalimentam o modelo, aperfeiçoando-o ao máximo nível possível.O instituto da ciência, por exemplo, usa e abusa deste método até hoje, tamanha sua eficiência e naturalidade.

Saberia o leitor, ou a leitora, dizer o que se passaria com um objeto jogado para cima? A resposta chega a agredir a inteligência, não? Esta obviedade de que o objeto certamente cairia — e que custou milênios para se consolidar no intelecto humano — é uma previsão de nosso modelo de mundo, algo que pode ser testado a qualquer momento, bastando para isto a constatação de que qualquer objeto jogado para cima, de fato, cai em direção ao chão.

Assustador, não? Mas deixemos a física de lado por um instante e voltemos aos meandros da vida...


quinta-feira, 18 de março de 2010

"A Teoria dos Resultados" — Parte I


Há muitíssimas teorias por aí e, entre elas, há inúmeras "Teorias dos Resultados". Uma rápida pesquisa no Google, com o termo entre aspas, resulta em mais de três centenas de milhares de retornos e, certamente, é apenas uma fração do que deve existir pelo mundo. "Teorias dos Resultados" podem ser encontradas desde o ramo empresarial, referindo-se a resultados financeiros líquidos, até o jurídico, determinando critérios para analisar a perpetração de um crime. No caso aqui tratado, a tal "Teoria dos Resultados" não tem base científica alguma e se baseia, única e exclusivamente, em despretensiosas observações da vida cotidiana. Trata-se de um mero exercício filosófico, lúdico e pessoal, que tenciona apenas conduzir o leitor ou a leitora a olhar seu próprio dia-a-dia de uma maneira diferente da usual — o que pode ser divertido ou desesperador, dependendo do ponto de vista. Portanto, se estiver atrás da ciência por trás de alguma das "Teorias dos Resultados", esqueça! Pode continuar vasculhando os resultados do seu buscador. Caso contrário, convido-lhe a seguir com esta leitura, seguindo o insólito raciocínio envolvendo esta "Teoria dos Resultados".

Como todas as suas parentes, a teoria aqui proposta se baseia, claro, nos resultados obtidos por meio de determinadas ações que, neste caso, referem-se às escolhas feitas por um indivíduo ao longo de sua própria vida. Há quem não compreenda desta forma, mas a atual conjuntura em que alguém se encontre, antes de mais nada, deve-se exclusivamente às opções feitas a cada instante no decorrer da própria existência. Mesmo aquele que creia de forma inconteste que suas benesses e mazelas se devam às forças divinas ou malignas, tem de admitir que Deus, segundo as mais diversas escrituras sagradas, garante ao homem, ou a mulher, o livre arbítrio de suas ações e, portanto, jamais poderia ser responsabilizado pela situação em que cada um se encontra. Assim, estabelece-se a primeira hipótese desta teoria: o indivíduo é o principal, se não o único, responsável pela situação em que se encontra em qualquer momento de sua vida.

Admitamos: a hipótese é bastante dura. Sermos responsáveis pela própria situação, significa dizer que nossos próprios infortúnios, e venturas, também são de nossa responsabilidade. Entretanto, apesar de dura, a hipótese é bastante razoável. Ninguém faz o que opta por não fazer. O leitor ou a leitora, por exemplo, poderia não estar lendo este texto agora mesmo ou decidindo interromper a leitura neste exato momento. E, mesmo que estivesse sob ameaça fatal para o fazer, decerto ainda teria a opção da morte para escolher. Este, aliás, é o principal complicador: quando as opções são duras, prefere-se acreditar que não se tem escolha.

Mesmo nos casos em que o acaso desempenha um papel de destaque, a responsabilidade pelo que acontece conosco é apenas nossa. Tome, como exemplo, o atropelamento involuntário de um animal na estrada. Mesmo sem qualquer intenção malévola do motorista, ele é o único responsável pelo ocorrido, afinal, se estivesse à 5 km/h, o fato, muito provavelmente, não teria ocorrido. Obviamente que, em condições normais, ninguém faria uma viagem longa de automóvel a uma velocidade tão baixa, de forma que, avaliando ser baixa a probabilidade de um animal surgir de repente em frente ao veículo, o motorista assume o risco de percorrer o caminho a uma velocidade maior. Logo, por mais difícil que seja de aceitar tal fato, a responsabilidade do acontecimento é exclusivamente dele. Não obstante a admissão da possibilidade de erro — por sermos humanos conscientes de nossas próprias limitações — não há como se eximir da responsabilidade de o ter cometido.

Este ponto é fundamental para a compreensão de todo o resto da teoria que ainda está por vir...


quarta-feira, 17 de março de 2010

Desconstruir-se


A morte, em si, não é de toda mal. Apesar de termos nos acostumado a compreendê-la como o final de tudo, além do qual há uma incógnita indecifrável, a morte pode ser, simplesmente, o fim de uma etapa ou fase, absolutamente necessário para um recomeço.

Se a noite não morresse, o dia não nasceria. Se as semanas, os meses e os anos não terminassem, estaríamos estagnados no tempo, condenados a viver com os mesmos erros pela eternidade. Quando as doenças não se findam, a saúde não pode ser restabelecida. Sem as mortes, os renasceres seriam impossíveis. A morte é, portanto, apenas um estágio necessário ao perfeito funcionamento do complexo ciclo da existência, em todas as suas facetas.

Talvez por isso, ao se conscientizar do próprio erro, há quem deseje morrer. Este desejo não se refere, necessariamente, ao morrer fisiológico, mas ao morrer daquilo, dentro de si, que produziu o erro. Quem não deseja ver mortos os causadores dos próprios erros, simplesmente não deve ter-se dado conta de que errou.

O problema é que, ao matar componentes do próprio ego, suicidamo-nos. Obviamente que não no mesmo sentido tratado por Durkheim em sua obra, mas, talvez, de forma tão dramática quanto. Suicidamo-nos porque matamos alguém que tínhamos por nós mesmos e, assim, acabamos por nos desconstruir pouco a pouco. E esta desconstrução, apesar de necessária, é frequentemente dolorosa.

Mas assim como a figura da fênix, renascemos das próprias cinzas e recriamos um novo ser. Até que erramos de novo, recomeçando todo o processo...

terça-feira, 16 de março de 2010

Mar de Algodão


"Enquanto a clareza ofuscava a vista, a luz, divertida, parecia brincar de se esconder entre chumaços de algodão, sombreando-os ao longo daquele mar de alvura sem fim. E o horizonte, como se não quisesse ser o responsável por limitar tal infinitude, acabava, simplesmente, por não se definir e só esboçava, ao longe, sua linha imprecisa e brumosa em todas as direções. Foi quando me dei conta de que a iluminação pedida durante toda uma vida se materializava, ali, naquela experiência única, quase como uma revelação.

Mas o mais curioso era o tempo que dava a impressão de não passar, ainda que nada se apresentasse estático por causa disto. Havia uma espécie de tranquilidade fluida que envolvia tudo, fazendo da eternidade um período insuficiente para compreender o que era visto ao redor. Diluídos em uma imensidão de paz, os maus pensamentos já não faziam mais sentido algum. Nem a urgência das coisas. Predominava uma estranha sensação de, percebendo-se nada, saber-se como parte de tudo em um mesmo momento.

Era natural, no entanto, que, à apresentação dos sentidos, a realidade parecesse vacilar. Não tinha mais os pés firmemente presos à terra, onde a concretude das coisas, mesmo que eventualmente assustadoras, dá as referências que balizam nosso pensar. Ali o espaço e a liberdade sacavam as fronteiras da racionalidade e conduziam o raciocínio pelo caminho volátil dos espíritos.

Naquele momento, olhando para o azul profundo rabiscado pelo branco, não tinha mais dúvidas sobre a essência divina do céu.
"


segunda-feira, 15 de março de 2010

Administração no País das Maravilhas


Há algum tempo atrás, nos primeiros textos do Automorfo, falou-se sobre as opções de transporte para os cidadãos das grandes cidades e que, se as horas e a paciência perdidas em insuportáveis congestionamentos não eram suficientes para motivar alguém a usar uma alternativa pública de transporte, era porque, provavelmente, as condições de uso dessas alternativas fossem ainda piores. Recentemente, um estudante relatou sua experiência ao trocar seu automóvel pelo trem, na cidade de São Paulo. Seu depoimento, muito mais do que ilustrativo, é revelador:

"Com o início do período letivo, o percurso de carro feito em menos de 25 minutos passou a demorar um pouco mais de uma hora. Então, animado como os anúncios do governo do estado sobre a expansão das linhas de trem em toda região metropolitana, resolvi deixar meu veículo em casa e seguir pelas linhas do Metrô e da CPTM* até a Cidade Universitária.

No dia 8 de março, segunda-feira, entrei em um trem da Linha Lilás do Metrô às 7:21 h da manhã. Menos de dez minutos depois, chegava à estação Santo Amaro da CPTM para a baldeação que me levaria até a estação Cidade Universitária. Meia hora depois, ainda tentava entrar em algum dos trens abarrotados, mas só às 8:21 h, consegui chegar ao meu destino, ou seja, uma hora depois. Cheguei atrasado, cansado, irritado e convencido de que o transporte público em São Paulo só funciona bem quando não é necessário, ou seja, fora dos horários de pico.

Não bastasse um planejamento logístico absolutamente precário, o poder público ainda parece viver em um mundo esquizofrênico, onde, só para eles (e para quem não os utiliza), os serviços básicos oferecidos à população funcionam de forma exemplar. Pelo menos isto é o que nos leva a crer ao assistir as propagandas — pagas com dinheiro público, diga-se de passagem — na mídia todo santo dia...
"

Mas dentro do buraco, como no mundo de Lewis Carroll, algumas coisas não fazem muito sentido, como quando valiosas informações de usuários reais, ao invés de mostrarem o caminho para melhorar a prestação de serviços públicos, gera apenas justificativas e desculpas, fazendo com que os mesmos problemas se repitam sem solução ao longo das décadas.

Assim, nem o Gato Risonho consegue manter o bom humor...


* Companhia Paulista de Trens Metropolitanos.

domingo, 14 de março de 2010

Buscando inspiração...


Como tradicionalmente vem ocorrendo aos domingos, continuemos com a prescrição poética para 2010. Nesta semana, um soneto em redondilha maior, recém-saído da cachola, vem integrar a coleção poética do Automorfo, falando de algo meio místico: a inspiração.

Para o poeta, a inspiração é tão vital quanto o ar que ele respira. Mas não é importante apenas para a poesia, senão para qualquer autor. Quem nunca sentiu as agruras de tentar escrever uma dissertação, monografia ou qualquer outro texto que não fosse estritamente técnico, sem os auspícios da inspiração? A diferença é que o poeta tem licença poética, o que lhe dá uma certa liberdade de criação. Mas os poetas não querem facilidade e, em solidariedade a todos os demais autores, impõem-se, prontamente, rígidas limitações de forma, rima e métrica.

E a inspiração que se desdobre!


sábado, 13 de março de 2010

Universidades Platônicas


A primeira universidade do mundo surgiu no século XIII, em Paris, mais precisamente no ano de 1215. A criação da Universidade de Paris transformou em realidade o conceito platônico de espírito que pregava o estudo, com ampla liberdade, de tudo relacionado ao universo, fosse a política, o corpo humano ou as escrituras sagradas. Depois dela, surgiram outras com a mesma orientação: a Universidade de Bolonha na Itália, a Universidade de Oxford na Inglaterra, a Universidade de Colônia na Alemanha e tantas mais espalhadas pelo Antigo Continente.

À época, as grandes áreas do conhecimento eram o direito, a medicina e a teologia. Entretanto, antes de seguir para qualquer uma dessas escolas, os estudantes passavam por uma espécie de ciclo básico que incluía filosofia, ciências, letras, matemática, astronomia, música e artes. Só então, depois de aprovados nessas disciplinas e bacharelados em Artes, podiam seguir seus estudos superiores para obter, após um total de 14 anos, o título de "Doutor".

A Universidade de São Paulo, criada há 76 anos, foi fundada com o mesmo espírito das universidades européias, agregando antigas escolas da capital paulista como a Faculdade de Direito (1827), a Escola Politécnica (1893), a Faculdade de Farmácia e Odontologia (1899), a Faculdade de Medicina Veterinária (1911), a Faculdade de Medicina (1912), o Instituto de Educação (1933), além da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (1901) e a Esalq de Piracicaba. Criou-se, então, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras que, de forma interdisciplinar, congregaria todas as grandes áreas do conhecimento. Foi necessário buscar professores qualificados na europa para compô-la. Nela, os estudantes cumpriam, também, uma espécie o "ciclo básico" — já não tão longo como na Idade Média.

Atualmente, um estudante de engenharia, por exemplo, só frequenta a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Sociais (FFLCH), se tiver algum interesse particular por algum assunto ali tratado. Com o passar do tempo, os institutos ganharam maior autonomia e acabaram por eliminar uma série de disciplinas importantes para uma formação integral dos profissionais, como a Sociologia, por exemplo. Neste contexto, parece lógico concluir que as disciplinas eliminadas ou não eram importantes, ou eram menos prioritárias do que outras de caráter mais técnico. Daí vem a pergunta: o favorecimento de um ambiente que propicie a alienação formal de elementos culturais, humanos e sociais, pode formar melhores profissionais? E o maior problema é que muitas outras universidades pelo Brasil, públicas e privadas, seguem exatamente este mesmo molde.

Parece que aquela história de que "o espírito precisa estar aberto a tudo o que existe, e não apenas uma parte dele", está mais platônica do que nunca.


Fonte das informações históricas: Manual do Calouro (2010) da Universidade de São Paulo.

sexta-feira, 12 de março de 2010

Redenção pelos exercícios físicos


Se há algum santo remédio contra a tensão do dia-a-dia, certamente deve estar relacionado à prática regular de exercícios físicos. No decorrer da evolução, os seres humanos — tal como outros animais — fomos "geneticamente programados" para acumular energia na forma de gordura e reagir o mais rapidamente possível em face de qualquer ameaça. O primeiro "programa" é um dos motivos colaboram com a obesidade, cada vez mais comum na atualidade. O segundo, é o responsável pela tensão crônica, mais conhecida pelo seu termo emprestado do inglês: o "stress".

A cada identificação de ameaça, o cérebro ordena a liberação do hormônio adrenalina pelas glândulas supra-renais. Os efeitos da adrenalina — aumento da pressão sanguínea, vasoconstrição e estimulo cardíaco — prepara o organismo para lutar ou fugir. Em repouso, é necessário cerca de uma hora para que a adrenalina seja removida da circulação sanguínea. E como, geralmente, as ameaças "virtuais" (porque em condições normais, ninguém vai às vias de fato com o chefe, com a esposa ou com o irresponsável de plantão) ocorrem em intervalos menores do que este, a concentração do hormônio tende a ir aumentando no organismo ao longo do dia.

E é aí que entram os exercícios físicos! Ao se exercitar, regularmente, queima-se o excesso de calorias que se transformaria em depósito de gordura, consome-se a adrenalina ainda em circulação no organismo e, de quebra, ainda promove a liberação de endorfinas que favorecem um estado de satisfação no cérebro. Nem é preciso mencionar vários outros benefícios decorrentes como o desplacamento de pequenos depósitos de gordura antes de atingirem um tamanho perigoso, o fortalecimento das paredes de veias e artérias, evitando derrames, etc.

Mas se nem todas essas benesses lhe são suficientes para a motivação de adquirir tal hábito, pense no prazer em descontar toda sua raiva e frustração em quem quiser, mentalmente, enquanto se esforça para fazer o exercício. Quanto piores seus sentimentos, melhor será seu desempenho esportivo. No final, de tão cansado, nem vai se lembrar do porquê das irritações, perdoando todos seus inimigos!

Assim, dá para ganhar uns pontinhos com Deus que, certamente, devolver-lhe-á em boa saúde...

quinta-feira, 11 de março de 2010

O conhecimento e a sabedoria


Talvez o leitor conheça pessoas com enorme conhecimento, porém com quase nenhuma sabedoria. Ou o contrário, pessoas extremamente sábias, mas sem muito conhecimento formal. Seja como for, mesmo que as características se apresentem em diferentes graus, ambas (não por acaso, vez por outra os termos são usados como sinônimos) são necessárias e complementares para a formação da personalidade única do ser humano.

Apesar dos diferentes significados, não é muito fácil compreender, logo à primeira vista, a diferença entre o conhecimento e a sabedoria. Pode-se dizer que o conhecimento é adquirido pelas mais diversas formas como a leitura, a pesquisa, o estudo e até a experimentação. Trata-se de um conjunto de informações sistematicamente organizado, passível de transferência entre indivíduos, estando diretamente relacionado com o instituto da ciência. Já a sabedoria, por outro lado, surge da síntese particular das experiências vividas por um indivíduo que, formulada de um modo peculiar, não permite sua transferência direta à outra pessoa. Uma criança, por exemplo, a depender de suas experiências vivenciadas, pode ser muito sábia em determinados aspectos, mesmo sem muitos conhecimentos.

Pelo fato da sabedoria não poder ser ensinada e nem traduzida em linguagem matemática, muitos a negam, como se não tivesse a mesma legitimidade das causalidades científicas. A ciência, entretanto, manifesta-se por outras formas além da mera explicação. Se o leitor buscar pelas causas de um texto poético, por exemplo, dificilmente as encontrará. Tampouco conseguirá, com facilidade, transmitir a outra pessoa os sentimentos e sensações experimentados durante sua leitura. Ao compreendê-lo, no entanto, pode perceber claramente seu valor, que é tão legítimo quanto a comprovação experimental de um modelo matemático.

Ao arrogar-se a posição de única geradora de verdades, a ciência atual acaba por ocupar o mesmo lugar da inquisição religiosa na Idade Média. Por isso, hoje, mais do que nunca, a humildade e o pensamento crítico — principalmente a auto-crítica — mostram-se como essenciais ao contínuo desenvolvimento humano.


quarta-feira, 10 de março de 2010

"Homens-aranhas"


Na segunda metade do século XIX, um missionário francês, Jacob Paul Camboué, chegava na ilha de Madagascar no sudeste do continente africano. Nas décadas de 1880 e 1890, teve a inusitada ideia de produzir seda a partir das teias de uma espécie de aranha da região. Mesmo atingindo seu objetivo inicial, o sucesso de sua empreitada foi limitado, deixando pouquíssimos exemplares do tecido produzido para a posteridade. A última amostra da seda-de-aranha que se tinha notícia fora exibida em Paris, no ano de 1900, perdendo-se algum tempo depois.

Mais de um século depois, Simon Peers e Nicholas Godley, ambos empresários do ramo têxtil em Madagascar, aceitaram o desafio de produzir seda a partir da teia de uma aranha dourada da região (Nephila madagascariensis), conforme as mesmas técnicas usadas por Camboué. Foram necessárias cerca de um milhão de aranhas e o meticuloso trabalho de 80 pessoas, por quatro longos anos, para produzir um maravilhoso tecido dourado de seda-de-aranha com cerca de 3,3 x 1,2 m. Os padrões de pássaros e flores foram tecidos segundo uma tradição local conhecida como "lamba Akotifahana". O exemplar, único no mundo, está em exibição no Museu Americano de História Natural (American Museum of Natural History) desde 23 de setembro do ano passado.

Durante o período de chuvas, única época em que as aranhas fêmeas da espécie produzem teia, cerca de 70 pessoas recolhiam, diariamente, os exemplares de suas respectivas teias, construídas nos fios de telefone e energia de Antanarivo (capital do país) e redondezas, levando-as a um local onde podiam continuar produzindo a teia. Outra dúzia de pessoas eram responsáveis por extrair os filamentos que, para cada aranha, chegavam a cerca de 24 m de comprimento. Trançados com dezenas de outros (entre 96 e 960), davam origem aos delicados fios de seda usados na confecção. Após todo o processo, as aranhas eram devolvidas à natureza.

E se o trabalho dos homens já é impressionante, o da natureza é ainda mais. A resistência específica (relativa ao peso) do material da teia é maior que a do aço, com a vantagem de poder esticar até 40% de seu comprimento original sem se romper. Já há algum tempo os cientistas vêm tentando sintetizar o composto que poderia ter aplicações — se não menos nobres, certamente menos poéticas — na área militar e aeroespacial. Um dos principais problemas em produzir artificialmente o material em laboratório, no entanto, é entender como exatamente a teia se processa, já que começa líquida em uma glândula interna e, após complexos processos nas entranhas da aranha, acaba por se tornar sólido, altamente resistente e à prova d'água, em seu exterior.

Sinal de que ainda levará algum tempo para nós, engenheiros, superarmos os conhecimentos da natureza, adquiridos em milhões de anos de pós-graduação. Mas isto já é matéria para outro texto...

terça-feira, 9 de março de 2010

Mocinhos e vilões motorizados


Talvez não haja ambiente tão propício para se pôr a ética pessoal à prova quanto no trânsito de uma cidade grande. Não bastasse motoristas péssimos em vários sentidos, guiando carros, ônibus e caminhões, há ainda um batalhão de motociclistas sem a menor noção de respeito ou segurança. E, como não poderia deixar de ser, os órgãos públicos que, supostamente, deveriam colocar ordem no pandemônio, por vezes são flagrados contribuindo com a confusão. São Paulo, mais uma vez, é um exemplo patente do problema.

Antes de mais nada, justiça seja feita: o desafio do trânsito em São Paulo tem a dimensão da cidade e é óbvio que as soluções nunca serão triviais em um lugar deste tamanho. Dada a interdependência de um trânsito saturado, poucos estúpidos já é o suficiente para desencadear o "inferno de Dante" nas ruas e avenidas paulistanas. Aliás, novamente, é bom que se ressalte, a maioria dos motoristas paulistanos são civilizados, até mais do que a média nacional. Se não fosse dessa forma, tal como no caso da ética na administração pública, o trânsito da cidade já teria, há tempos, arruinado-se de vez.

E talvez este seja um dos motivos que leva parte dos motociclistas, por exemplo, a fazerem o que bem entendem no trânsito da cidade. Não respeitam sinais de trânsito, limites de velocidade, motoristas, pedestres ou, sequer, outros motociclistas. Daria uma excelente tese de doutorado estudar o que faz alguém acreditar que, só porque guia uma moto, tem o direito de andar na contra-mão, subir nas calçadas, passar em sinais fechados, cometer infrações ocultando a identificação do veículo com as mãos e correr, perigosamente, nos corredores formados entre as filas de automóveis. Talvez o problema atingisse quase que exclusivamente os infratores se houvesse fiscalização e punição adequadas, mas, como não há, o problema acaba por se generalizar, levando os demais personagens do trânsito caótico a desumanizar todos os motociclistas. E esta animosidade crescente por todos os lados não parece ser bom para ninguém.

Enquanto isso, em uma dessas manhãs pós-temporal, homens da CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) fechavam um cruzamento por causa de um semáforo queimado. Tão preocupados estavam com a segurança do trânsito que sequer perceberam um de seus veículos, uma caminhonete, estacionada bem na esquina, bloqueando a visão do motorista que desejava entrar na avenida principal. Simultaneamente, outro de seus veículos, no mesmo cruzamento, dava sinal de farol, insistentemente, para o motorista a frente que se demorava a entrar na via por não conseguir enxergar direito o fluxo que vinha em sua direção.

E, assim, tenta caminhar a humanidade...


segunda-feira, 8 de março de 2010

Dia Internacional da Mulher


Há quem acredite ser uma injustiça comemorar o Dia Internacional da Mulher sem que haja um "Dia Internacional dos Homens" como contraponto. E talvez tal pensamento não seja, assim, de todo destituído de sentido, uma vez que a origem dessa comemoração nos remete à virada do século passado, quando trabalhadores — tanto mulheres quanto homens e crianças — eram explorados nas linhas de produção estabelecidas pela segunda fase da Revolução Industrial no final do século anterior.

Mas fato é que, com raras exceções, a mulher vem ocupando um lugar subalterno em relação ao homem desde os primórdios de nossa sociedade, provavelmente porque, na organização dos primeiros grupos sociais, a superioridade da força física e resistência masculinas foram fundamentais para a preservação da espécie. Entretanto, tal superioridade perdeu sua relevância com o desenvolvimento social, legando às mulheres o lugar que lhes é de direito: lado a lado dos homens. A igualdade de direitos — e deveres — entre os gêneros é sugerida até por algumas interpretações criacionistas, segundo as quais, para criar Eva, Deus teria usado uma costela de Adão — parte localizada entre a cabeça (superior) e os pés (inferior) — justamente para simbolizar essa paridade.

Mas foi só em 1975 que a Organização das Nações Unidas definiu o dia 8 de março como a data comemorativa para o Dia Internacional da Mulher, não apenas como uma forma de homenagear as milhares de mulheres que lutaram para o atual cenário, mais justo, consolidar-se, mas também para que nos lembrássemos, sempre, de que a condição feminina jamais deverá ser relegada a um plano secundário. Portanto, se você for mulher, sinta-se homenageada e orgulhosa com o seu dia, mesmo que poucos tenham se lembrado dele hoje.

Além do mais, mesmo sem levar em conta a busca pela igualdade entre os sexos e os demais vieses sociais, bastaria a complexidade feminina para plenamente justificar a homenagem. Porque as mulheres são como as poesias: apesar de constituídas da mesma matéria ortográfica e gramatical dos demais textos, carregam em si toda uma semântica, belíssima, perceptível apenas por quem possui sensibilidade suficiente para compreendê-las.

Parabéns pelo Dia Internacional da Mulher!


domingo, 7 de março de 2010

Haikai na língua dos ventos



A foto acima foi tirada em abril de 2003 na praia do Costão do Santinho em Florianópolis. A atração do lugar, além, claro, da beleza natural, é uma pintura rupestre de milhares de anos. Lá, a perenidade de uma das primeiras manifestações artísticas, pré-históricas, de um ser humano contrasta com a efêmera poesia esculpida na areia, delicada e constantemente, pela brisa a cada instante. Forçando um pouco a vista, dá até para ler um haikai...


sábado, 6 de março de 2010

Governança Pública


Quem alguma vez já se aventurou pelo mundo dos concursos públicos, certamente deve ter se deparado com alguma excrescência nos editais com a única intenção, mais ou menos descarada, de burlar as regras do jogo. São inúmeros os casos comprovados de fraude, ou tentativa, além de um sem-número de outros que nunca foram questionados, seja pela mais absoluta descrença do cidadão na Justiça, "ouvidorias" e "corregedorias" por aí, seja pela inabilidade técnica de discernir o que é falcatrua do que é regra, legítima e necessária, para encontrar o melhor servidor para uma determinada função.

E antes que alguém vista a carapuça e saia encolerizado com sua foice a pedir a cabeça deste autor, é fundamental que se diga que, a despeito das aparências, a idoneidade ainda é predominante nos órgãos públicos. Se assim não o fosse, este país já teria soçobrado faz muito tempo. Portanto, àqueles em que a carapuça servir como uma luva, seria mais prudente refletir sobre o assunto sem muito alarde ou correrá um sério risco de ser identificado por seus pares idôneos, ainda em maioria.

Infelizmente, entretanto, parece que a maioria honesta só se manifestam de forma eficaz quando o problema ganha proporções assustadoras na sociedade — e talvez seja este o motivo da descrença generalizada da população. Afinal, se ações eficazes contra a desonestidade só são tomadas quando há algum grande escândalo, o que a reles denúncia de um cidadão poderia mudar na dinâmica vigente?

Mas, voltando aos concursos públicos e deixando de lado os métodos mais descarados que alguns adotam para passar um candidato específico em uma dada vaga — como o de se exigir, em edital, características profissionais absolutamente peculiares, inerentes a uma determinada pessoa —, há de se dizer, uma série de regras normalmente encontradas nos editais são ferramentas que podem, facilmente, ser usadas para se beneficiar "escolhidos". Tome-se como exemplo uma prova oral, etapa absolutamente comum para os concursos da magistratura. Sem critérios claros (matemáticos) e transparentes, verificáveis por qualquer pessoa, qual é a garantia de ausência de uma "subjetividade" voluntária na atribuição das melhores notas? Desconsidere-se, claro, o delicado fato dos julgadores de uma eventual irregularidade pertencerem à mesma classe dos que atribuem as notas.

O prejuízo talvez não seja tão grande quando as vagas disputadas apresentam condições idênticas, uma vez que, havendo mais vagas que "escolhidos", muito provavelmente alguns candidatos "apenas" competentes também entrarão na carreira em igualdade de condições. Quando, no entanto, a classificação final altera as condições da vaga a ser assumida, o prejuízo pode ser incomensurável em caso de má fé. Veja, por exemplo, o caso dos concursos públicos para notários e tabeliões que, no caso do estado de São Paulo, também passam por uma prova oral como fase classificatória. Este concurso é um pouco diferente dos demais porque, na realidade, concorre-se pelo direito de explorar o serviço cartorário de uma determinada comarca, não sendo o poder público que remunera o tabelião, mas os usuários que precisam daquele serviço. Portanto, obviamente, esta remuneração depende da área e zoneamento, quantidade de pessoas e/ou volume de negócios daquela região, podendo variar de poucos (cartórios deficitários) a muitos reais.

Acontece que, no exemplo citado, a classificação final depende do exame oral que pode fazer com que os candidatos melhor qualificados nas provas escritas e objetivas (que por sua natureza possuem critérios claros, definidos e verificáveis até pelo próprio candidato) sejam relegados às últimas colocações a depender da nota dada pela comissão julgadora. Diz uma lenda que, em São Paulo, apenas quem é do estado e/ou protegidos do Poder Judiciário conseguem as primeiras colocações nesses concursos. Claro que isto é só uma lenda... Mas o fato é que a possibilidade de manipulação existe e deveria ser eliminada a qualquer custo, necessidade que pode passar despercebida por quem organiza os concursos públicos. O mesmo Conselho Nacional de Justiça que, de forma exemplar, afastou cerca de 5000 interinos (sem concurso público) dos cartórios, contra a vontade dos respectivos tribunais, pode manter a mesma brecha do exame oral, só que agora em âmbito nacional, ao esforçar-se para uniformizar esses concursos em todo o Brasil (conforme art. 5º da Resolução nº 81 de 9 de junho de 2009).

A maioria dos servidores de conduta ética exemplar não podem se furtar à missão implícita de converter as instituições sob sua responsabilidade em referenciais éticos da sociedade, sob o risco desta se transformar em provedora de maus cidadãos que, vindo a fazer parte dos quadros dessas mesmas instituições, pode destituir a maioria honesta e de bom caráter em um círculo vicioso, péssimo para o futuro de toda a nação.


sexta-feira, 5 de março de 2010

Aprender para mudar


O filósofo paulista Roland Corbisier (1914-2005), em um excerto de sua obra "Introdução à Filosofia", exorta seus leitores a refletir sobre a capacidade inerente ao ser humano de perguntar. Segundo ele, tal característica distingue a espécie humana das demais, já que os animais não perguntam porque sabem, por instinto, tudo o que é necessário para sobreviverem e perpetuarem a própria espécie. O homem, por sua vez, pergunta por perguntar, pela necessidade que tem do conhecimento para viver.

Mas se perguntamos é porque queremos saber e, consequentemente, aprender. O aprendizado é, portanto, algo tão intrínseco ao desenvolvimento humano que é praticamente impossível dissociá-los um do outro. E, para que tal observação fosse satisfatoriamente embasada, bastaria um breve lançar de olhos sobre como o homo sapiens, ao longo de mais de quarenta mil anos, vem aprendendo a se esquivar das limitações impostas pela mãe-natureza.

Na língua portuguesas, o verbo aprender, segundo as definições de Houaiss e Aurélio, refere-se à aquisição e retenção de conhecimentos ou habilidades por meio de estudo ou experiência. Está implícito, porém, que algo é alterado — talvez permanentemente — na percepção daquele que aprende. Tal como discorrido por duas professoras doutoras de psicologia da aprendizagem (Mendes, M. I. S. e Paula, F. V.), é na mudança que reside toda a essência do aprendizado. É fundamental ressalvar, no entanto, que o aprendizado, ou a mudança, não contém em si indicativos do que é "bom" ou "mau", ou seja, pode-se aprender algo prejudicial exatamente da mesma forma que algo positivo.

E tal como poder não é nada útil sem controle, também o aprendizado não serve para muita coisa sem a capacidade do indivíduo de se auto-analisar criticamente. Sem este "auto-questionamento" onipresente, não há como concluir, de forma autônoma e em tempo hábil, que o aprendizado fora equivocado. Porém, aprender os benefícios de se pensar criticamente não parece ser trivial, haja vista as ênfases do ensino formal que não mudam há muito, muito tempo...


quinta-feira, 4 de março de 2010

Perguntar, não ofende!


Talvez haja poucas coisas piores para a boa convivência social do que as atitudes de gente "folgada". O "folgado", ou a "folgada", vive só no próprio mundo e apenas se lembra que existem outras pessoas quando precisa delas. "Folgados" são especialistas em incomodar sem se incomodarem e não têm inteligência suficiente para saber que colaborar com o outro é, também, benéfico para eles próprios.

Gente "folgada", geralmente, atravessa o veículo na rua, bloqueando a passagem de outros carros, enquanto vai calmamente abrir o portão da própria residência. Para o carro em qualquer lugar: no meio de uma avenida movimentada, em locais proibidos, na frente da entrada ou saída de outros veículos e, mesmo quando jovens e saudáveis, estacionam nas vagas reservadas para idosos e deficientes. Gente "folgada" larga o carrinho de supermercado no meio do corredor enquanto vai decidir o que pegar na gôndola do outro corredor. Gente "folgada" fuma no meio de não-fumantes sem o consentimento destes, ouve som alto em lugares públicos, bloqueia a passagem nas escadas rolantes, enfim, não se compadece de seu semelhante em nenhuma ocasião.

Mas dentre todas as características, duas são as mais curiosas para serem observadas nos folgados crônicos. A primeira é que "folgados" não se consideram "folgados", coisa que decorre de um fato simples: a referência do que é, ou não, uma atitude "folgada" está no outro, algo que não existe para qualquer "folgado" ou "folgada". A segunda é que "folgados", normalmente, detestam gente "folgada", dado o incômodo alienígena que o outro provoca dentro do mundo solitário dos "folgados", gerando, neles, a insuportável consciência da própria "folga".

Claro que há ocasiões em que uma pessoa pode, inocentemente, incomodar seu semelhante. Mas estes casos são facilmente identificáveis, uma vez que o causador do transtorno, assim que percebe os efeitos do que está fazendo, corre para remediar a situação e, por vezes, pede desculpas, tentando até compensar o incomodado. E tudo estaria bem, não fosse o convívio diário com gente "folgada" que nos faz pensar que qualquer um que nos incomode pertença à mesma espécie.

Para acabar com um problemão desses, bastaria uma perguntinha tão simples do tipo: "Estou atrapalhando ou posso atrapalhar alguém assim?". Mas gente "folgada" não se pergunta nada...


quarta-feira, 3 de março de 2010

Quando os idiotas estão com a razão...


"— O senhor foi cassado.
— Como assim? Por quê?
— Porque perdeu o prazo para fazer uma das verificações.
— Ué, mas isso não poderia ser feito em qualquer momento dentro do programa?
— Não, havia um prazo que venceu hoje.
— Está quase tudo concluído e aprovado! Por que ninguém me avisou desse prazo?
— Está sendo avisado, hoje.
— Mas algo com implicações tão sérias deveria ter sido alertado com um mínimo de antecedência. Eu, certamente, teria tomado as providências cabíveis...
— Infelizmente, o sistema funciona assim.
— Mas todo o processo foi iniciado aqui, por que não me avisou do prazo?
— Porque o senhor não perguntou.
— Mas deveria ter me avisado...
— Senhor, desculpe-me, mas não queira jogar sobre mim uma responsabilidade que é sua. Estava tudo escrito no material que lhe foi entregue.
— Veja, está tudo aqui! Onde é que está escrito?
— O senhor leu o 11º anexo, quinto item?
— Não. Li todo o corpo principal apenas...
— Pois então...
— Trabalha exclusivamente com isso, iniciou comigo, pessoalmente, todo o processo, e não me avisou de um prazo que poderia levar à uma cassação?
— Se o senhor tivesse me perguntado, eu teria lhe dito. Como não me perguntou... Além do mais, estava tudo no material que lhe foi entregue. Se o senhor não leu, o problema é seu, não meu.
— Mas e agora?
— O senhor está cassado. Só isso...
"


terça-feira, 2 de março de 2010

O avanço do exército de flores


Há muito tempo atrás, uma princesa caiu do céu, aterrissando sobre uma árvore de cerejeira em uma das ilhas do arquipélago japonês, nas proximidades do monte Fuji, um belo vulcão que, embora ativo, conserva seu cume permanentemente coberto de neve. Segundo a milenar tradição japonesa, a princesa Konohanasakuya-hime se transformou em uma linda e delicada flor que, mais tarde, tornou-se símbolo nacional do Japão. A versão menos poética da história, no entanto, diz que o nome da flor, sakura, pode ter origem no cultivo do arroz, alimento sagrado para os japoneses.

O fato é que após o inverno no hemisfério norte, especificamente nesta época, entre março e abril, os galhos nus das cerejeiras vão se enchendo de flores, em um espetáculo da natureza que percorre todo o país, de sul a norte, como se fosse o próprio espírito da primavera trazendo, gradativamente, a beleza da estação. As mais de 200 espécies de cerejeira vão recobrindo as árvores e o solo japonês com suas cores que vão do rosa ao pêssego, passando pelo branco. Milhares de pessoas disputam os espaços sob as árvores para poderem festejar ao ar livre, chegando ao extremo de alguns empresários enviarem seus funcionários mais jovens para guardar os melhores lugares.

A sakura, como diversas outras coisas na cultura japonesa, é carregada de simbologia. Antigamente era ligada à aristocracia japonesa, cuja missão fundamental era apenas ser bela. A efemeridade da flor também era associada à vida dos samurais, sempre dispostos a morrer por seus mestres. Eles acreditavam que não existia glória maior do que morrer lutando sobre o solo recoberto pelas pétalas da flor de cerejeira. Para eles, a simplicidade e a beleza da flor também remetiam às características de suas almas, pacientemente lapidadas pela honra e retidão de caráter manifestados ao longo da vida terrena.

E como o desabrochar das flores nas cerejeiras coincide com a época em que as aulas recomeçam e os recém-formados saem para buscar trabalho, a felicidade é outra de suas referências simbólicas. O chá de suas pétalas é frequentemente usado em casamentos e demais situações festivas, como forma de abrir os caminhos para um futuro feliz. Os festejos sob a florada ao ar livre, chamados de hanami ("observação das flores"), são acompanhados por comida, bebida (às vezes, até sakê), karaokê e muita alegria. Acredita-se, inclusive, que a queda de uma flor dentro do copo utilizado é sinal de que os desejos do "premiado" devem ser alcançados.

Enquanto isso, no lado diametralmente oposto do planeta, onde a natureza tropical não permite que o verde sucumba nunca ao branco da neve, a sakura talvez possa nos simbolizar a esperança de ser possível transformar a rotina de todo um povo apenas pela beleza e simplicidade, mesmo que por tão breve momento, efêmero como o desabrochar de uma flor.


segunda-feira, 1 de março de 2010

A Teoria dos Jogos


A Teoria dos Jogos é normalmente associada ao nome do matemático estadunidense John Nash, entretanto, foi na primeira metade do século XVIII que o aristocrata inglês James Waldegrave idealizou um método para vencer seus adversários em um jogo de cartas, dando origem aos conceitos básicos da teoria. Séculos mais tarde, já em 1928, John von Neumann, matemático húngaro, comprovou o "teorema minimax" (a alternativa que resulta no menor dano é a melhor a ser adotada) para jogos de soma zero (em que, necessariamente, para um ganhar, outro tem de perder) entre duas pessoas, resultado este que lançou as bases para o desenvolvimento da Teoria dos Jogos como é conhecida hoje em dia. Neumann, também, foi um dos primeiros a perceber a possibilidade de aplicação da teoria em campos diversos, como a economia, por exemplo.

Mas se Neumann foi o pai da Teoria dos Jogos, o jovem estudante de Princeton, John Forbes Nash Jr., foi quem a desenvolveu de forma a ser mundialmente conhecida — por isso da associação automática de seu nome à teoria. Na década de 1950, Nash ampliou os resultados até cobrir os jogos de soma não-zero (em que ambos competidores podem ganhar ou perder simultaneamente), estabelecendo os chamados "Equilíbrios de Nash". Suas descobertas e seus desdobramentos lhe renderiam, mais tarde, em 1994, um Prêmio Nobel de Ciências Econômicas, devido às relevantes aplicações de suas análises sobre jogos não-cooperativos na economia. Desde de seus primeiros resultados, a teoria não parou mais de ser estudada e desenvolvida, estendendo-se às mais variadas áreas do conhecimento, passando pela economia, biologia, sociologia, etc.

Em linhas gerais, a Teoria dos Jogos consiste no estudo de modelos estratégicos que permitam a compreensão dos motivos que levam a determinadas escolhas entre as várias possibilidades disponíveis. Uma típica situação sujeita a análise da teoria foi o desenrolar das ações e reações dos Estados Unidos da América e da União Soviética durante a Guerra Fria, quando a então potência socialista posicionou seus mísseis nucleares em território cubano. Apesar de terem surgido pressões internas por uma resposta militar hostil estadunidense, a análise das alternativas mostrava que uma ação equivocada poderia levar ao pior resultado possível (uma catástrofe nuclear), condenando ambos os lados — e o mundo — à derrota.

Outro exemplo prático de aplicação é a análise comportamental desenvolvida por um psicólogo da universidade inglesa de Leicester, Andrew Colman, segundo a qual, os criminosos têm sempre uma escolha estratégica a fazer: desrespeitar as leis ou adaptar-se. A sociedade, igualmente, pode tolerar os comportamentos criminosos ou igualar suas práticas às deles, ou seja, endurecer as medidas disciplinares ao ponto de desrespeitar os direitos individuais fundamentais. Claramente, o melhor resultado para um dos grupos seria a colaboração do outro, ou seja, seria melhor para sociedade se os criminosos decidissem seguir as leis ou, para os criminosos, se a sociedade decidisse não mais puni-los. Por outro lado, o pior resultado possível seria, justamente, se todos se comportassem como criminosos. Assim, usando a Teoria dos Jogos, Colman demonstrou existir uma tendência ao equilíbrio, no sentido de que o espaço deixado pelos foras-da-lei presos seria sempre preenchido por cidadãos anteriormente obedientes, condenando a sociedade à tolerância de um pequeno, porém permanente, percentual de criminalidade.

E a pesquisa na área vem evoluindo ainda mais, buscando modelos que levem em conta a influência de outras variáveis além da lógica, como a emoção, por exemplo. E não poderia ser diferente, afinal, quem não deseja vencer sempre no "jogo" da vida?