Maurice Aymard, em seu texto Amizade e Convivialidade (In: Ariès, P.; Duby, G. História da vida privada. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p.455-499. v. 3.), analisa vários aspectos da organização social ao longo da história européia. Partindo da unidade familiar, discorre sobre as intrincadas relações entre os indivíduos, seus grupos relacionais e as instituições estabelecidas, como a Igreja e o Estado.
Várias são as cenas usadas no texto para embasar as conclusões do autor, como a entrega dos filhos para as amas-de-leite — comum à aristocracia dos séculos XVII e XVIII —, a educação das mulheres orientada para o casamento e para a vida doméstica, o cultivo de amizades como fulcro para a ascensão social, os acertos matrimoniais realizados pelas famílias dos noivos, as confraternizações entre diferentes classes, sexos e idades, as delineações hierárquicas na família e na sociedade, a origem das associações civis, o surgimento de parentescos espirituais na forma dos apadrinhamentos, a institucionalização da formação educacional, entre várias outras. Despretensiosamente, o leitor é levado a perceber que qualquer semelhança com os costumes contemporâneos não é mera coincidência.
Mas dentre as muitas passagens, uma delas chama especial atenção, talvez por tratar de um momento, no mínimo, pitoresco da vida de um eminente filósofo francês do Iluminismo, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778):
"As gravuras que mostram maridos fustigados, as calças abaixadas, lembram muito as palmadas ministradas por mademoiselle Lambercier em Jean-Jacques Rousseau menino: 'Após a execução, achei a prova menos terrível do que fora a expectativa, e o mais bizarro é que esse castigo afeiçoou-me ainda mais àquela que mo impusera [...]: pois encontrei na dor, na própria vergonha, um misto de sensualidade que me despertara mais desejo que medo de prová-lo uma segunda vez pela mesma mão [...]. (...) Quem acreditaria que esse castigo de criança recebido aos oito anos de uma moça de trinta decidiu meus gostos, meus desejos, minhas paixões, meu eu pelo resto da vida [...]?' (Rousseau apud Aymard)"
Claro que há a necessidade de contextualizar a passagem. Com a história do pequeno Rousseau, o autor exemplificava uma espécie de efeito colateral da superioridade masculina imposta pela sociedade da época. A organização social, ao mesmo tempo que impingia às mulheres uma posição inferior, também obrigava os homens a exercer sua superioridade, nem sempre desejada. Mera coincidência ou não, Marquês de Sade, outro ilustre francês, que experimentara sensações semelhantes, viveu mais ou menos na mesma época.
Talvez as implicações sociológicas do machismo não sejam, assim, tão lineares quanto se acredita por aí, não é mesmo?
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