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terça-feira, 24 de agosto de 2010

Ouvir e falar


Miss Lucy R., uma inglesa de 30 anos, apresentava uma rinite supurativa cronicamente recorrente quando, em 1892, foi encaminhada ao Dr. Sigmund Freud (1856-1939) devido a curiosos sintomas que desafiavam o repertório clínico do médico que a tratava anteriormente (Freud, S. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 2. p. 134-150.). Era acometida por uma insensibilidade da mucosa nasal interna, bem como a ausência de reação a estímulos provenientes de odores fortes — tais como o de amoníaco, por exemplo —, embora algumas peculiares e subjetivas sensações olfativas a perturbassem insistentemente. A jovem, que trabalhava como governanta na casa de um diretor-gerente — viúvo e pai de duas meninas — de uma fábrica próximo à Viena, apresentava, também, um quadro depressivo havia algum tempo. Freud já desconfiava de sintomas de natureza histérica e tratou de investigar as origens objetivas por meio de uma longa conversa com a paciente, cuja duração, inicialmente prevista para um único encontro, estendeu-se por várias sessões.

Apesar da incapacidade de sentir quaisquer odores, a paciente se dizia perseguida por um cheiro de pudim queimado que, claramente subjetivo, foi logo tomado como ponto de partida para a investigação do trauma associado àquele quadro clínico. A cena descrita pela paciente, na qual o odor surgia pela primeira vez, envolvia uma espécie de brincadeira feita com ela pelas crianças que a impediram de abrir, imediatamente, uma carta de sua mãe, justamente em um momento que se encontrava inclinada a retornar à sua terra natal, a Inglaterra. Nesta ocasião, o pudim que estava assando queimou e o cheiro, desde então, jamais a abandonara. A cena talvez tivesse passado desapercebida não fosse a menção de um mal-estar entre ela e as demais empregadas da casa que a acusavam de, "supostamente", almejar uma posição acima da sua, ou seja, a de esposa e mãe adotiva das crianças do diretor-gerente. Analisado todo o contexto da situação, Freud logo conclui que, de fato, ela deveria estar apaixonada pelo seu patrão, suspeita que, surpreendentemente, é confirmada de imediato pela própria Miss Lucy.

Após ter admitido seus sentimentos, antes reprimidos, para Freud e, finalmente, para si mesma, Miss Lucy apresentou uma sensível melhora no seu quadro clínico geral — nada que já não fosse, de certa forma, previsto pela embrionária ciência psicanalítica daquela época. Uma sutileza do processo, entretanto, merece ser destacada, algo que seria posteriormente conceituado por Freud como fruto da transferência (entre a paciente e o analista), mas que pode ser tranquilamente extrapolada para nossas relações pessoais cotidianas. Embora a informação transmitida por Freud à sua paciente — o amor ao patrão — fosse exatamente a mesma que alimentara a intriga das demais empregadas na casa, sua recepção por Miss Lucy foi absolutamente diversa nos dois casos. A mesma informação que, sob o tom acusatório das colegas, auxiliou na consolidação do trauma, desencadeando uma série de efeitos patológicos, também foi o princípio da cura quando verbalizada pelo psicanalista.

Além de um clássico caso psicanalítico, a história de Miss Lucy, R. poderia ser, também, uma grande lição sobre relacionamentos interpessoais...


segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Quem não se comunica...


Dizem alguns estudiosos que menos de 10% da comunicação se deve, efetivamente, às palavras utilizadas (Mesquita, R. M. Comunicação não-verbal: relevância na atuação profissional. In: Revista paulista de educação física. São Paulo: jul./dez. 1997. v. 11(2). p. 155-63.). Mais de 90% do que é comunicado em um diálogo, face-a-face, deve-se a outros fatores como postura, gestual, entonação de voz, etc., que, no geral, não são conscientemente controlados ao longo do processo. Assim, considerando que quase a totalidade da informação trocada entre os indivíduos, é passada por mecanismos alheios ao controle lógico-objetivo, não é necessário ser um especialista para inferir o gigantesco abismo de compreensão existente entre semelhantes. Aliás, a despeito do alto grau de dificuldade envolvido nas comunicações, pode-se dizer que é quase um milagre que as pessoas ainda consigam se entender pela fala ou pela escrita.

Além da questão envolvendo a transmissão de uma determinada ideia ou conceito à outra pessoa, há mais um grande obstáculo que é a tradução, em palavras, das próprias emoções, sentimentos e demais sensações abstratas, frequentemente essenciais à compreensão daquilo que se deseja comunicar — tarefa que requer habilidades humanas nada triviais. Todos esses fatores combinados explicam, se não todos, boa parte dos conflitos entre indivíduos, além das diversas incompreensões de autores, intelectuais, poetas, artistas, etc. Poder-se-ia asseverar — mesmo sendo demasiadamente audacioso fazê-lo sem embasamento científico — que se as consciências pudessem se comunicar diretamente, ou seja, se um interlocutor pudesse ser o outro, ainda que por um instante, as discussões e incompreensões, simplesmente, não existiriam.

Mas, talvez o pior problema em toda dinâmica comunicativa seja a retroalimentação da mensagem durante um diálogo. Quando alguém diz algo para outra pessoa, espera uma certa reação que, se ausente ou muito distinta da prevista, desorienta o emissor da mensagem. Um efeito similar pode ser verificado em um experimento em que a mãe, interagindo com seu bebê, subitamente para de responder aos estímulos da criança — como, por exemplo, ao manter uma face neutra, sem expressão, enquanto o bebê sorri para ela. Percebendo a não-correspondência de sua mensagem, o recém-nascido reage, às vezes de forma desesperada. E uma escala diferente, o mesmo ocorre entre adultos quando, por exemplo, alguém mais emotivo espera uma reação impulsiva, mas é surpreendido pelo silêncio do outro. Enquanto a compreensão do primeiro é de que suas exasperações não significaram nada, pode ser que para o segundo, o silêncio seja a prova cabal de que aquelas palavras tocaram fundo sua alma.

Quando o saudoso Abelardo Barbosa (1917-1988), o Chacrinha, dizia: "Quem não se comunica, se trumbica!", todo mundo pensava que era só piada...


terça-feira, 1 de junho de 2010

O Bilhetinho


"Havia se deixado envolver demais e concluiu que já não encontraria um caminho de volta por aquele labirinto de sentimentos. Diferente de outras vezes, estava surpreendentemente confortável com a situação, o que, até certo ponto, provava para si mesmo sua tese sobre a irreversibilidade daquele relacionamento. Noutras ocasiões, havia se sentido sufocado, em uma reação típica de quem, ao se obrigar tomar decisões cruciais quanto ao futuro, receia a responsabilidade pelos seus próprios erros de julgamento. Com ela, finalmente, parecia ser diferente.

Lembrou-se, como que por instinto, dos fracassos anteriores — tinha plena consciência de sua inata dificuldade em se expressar. O mundo de coisas e acontecimentos diuturnos que sacudiam seu espírito eram invisíveis aos demais seres humanos. Sequer as pessoas mais próximas podiam compreender o que lhe passava no íntimo. Decidira que com ela seria diferente e pensou durante toda aquela semana em uma forma adequada para lhe comunicar seu amor. Um trecho da obra de Eça de Queiroz, há tempos perdido entre as reminiscências de suas leituras, soou-lhe quase como um conselho sussurrado pelo próprio autor: "
Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades (...)".

Optou, então, pela escrita, porém a prosa lhe parecia excessivamente ordinária para refletir o turbilhão de emoções em sua alma. Achou que a poesia, por ser mais difícil de ser concebida, teria maior sucesso em expressar seus sentimentos. A ela, seguiu-se a decisão de adotar rima e métrica rígidas a fim de valorizar ainda mais a demonstração daquele estado singular de sua existência. A obra-prima deveria ostentar uma forma clássica e logo pensou nas redondilhas maior e menor. Teria de ser rara e vislumbrou um soneto de versos alexandrinos. Seria imprescindível, também, que fosse moderna, excêntrica e objetiva, o que o levou à forma final escolhida: um haikai.

E como supusera, foi extremamente difícil sintetizar emoções, que lhe eram tão caras, em apenas uma única frase poética. Não apenas isto, mas encontrar as palavras certas para que pudesse, ao mesmo tempo, expressar-se, exclusivamente, com dois versos de cinco sílabas e outro de sete, rimando os dois menores e, internamente, o maior, definitivamente, não era uma tarefa trivial para alguém que não estivesse realmente apaixonado. Por fim, decorou o texto, assinou o papel e, para dar o toque romântico que ela tanto apreciava, foi até uma agência de correio para despachar seu precioso poema de amor.

Dois dias depois ela lhe agradeceu, dizendo que havia adorado o 'bilhetinho'..."



sábado, 27 de março de 2010

Desencontros pela vida...


Ela estava especialmente linda naquela manhã de terça-feira, sem qualquer razão aparente. Trajava um vestido azul de um tecido misto que parecia tocar seu corpo delicadamente, realçando e disfarçando exatamente o que deveria. Decidira ir a pé para o trabalho, aproveitando o dia ensolarado mas ainda fresco pela manhã. Caminhava de forma segura e com uma postura altiva, chamando a atenção de um ou outro transeunte que por ela passava. Seus negros cabelos, ainda úmidos, iam exalando um suave aroma de lavanda e completavam o quadro de beleza e simplicidade que desenhava involuntariamente com seu caminhar.

Já havia algum tempo que mergulhara fundo no trabalho depois de um frustrado relacionamento. Curara-se, finalmente, e talvez por isso sentia-se algo especial naquela manhã. Quem sabe não seria aquele o dia em que conheceria alguém legal e descomplicado para compartilhar seus sucessos e fracassos? Enquanto caminhava, divertia-se pensando que aquela sensação de bem-estar, talvez, pudesse ser também o prenúncio de alguma outra grande encrenca no escritório e, assim, ia sorrindo furtiva e esporadicamente pelo caminho.

Ele acordara de bem com a vida, tão de bem que pressentia ser aquele o dia em que encontraria seu par ideal. Estava cansado da vida boêmia que vinha levando e pretendia encontrar alguém legal e descomplicada, como ele, para que pudesse, finalmente, estabilizar-se na vida. Vestiu uma camiseta branca e a única calça jeans limpa do seu guarda-roupa, calçou o tênis e juntou o monte de roupa suja que trouxera da última viagem no final de semana. A segunda-feira havia sido deveras difícil na empresa e não houve tempo para arrumar aquela bagunça toda na noite anterior. Além disso, viriam hoje limpar o apartamento e sua consciência o proibia deixar tudo como estava. Olhou para o relógio e se apressou, mas na garagem, uma surpresa: o pneu dianteiro do carro estava totalmente vazio. Olhou de novo para o relógio e desistiu de trocá-lo. Pegou as coisas e decidiu ir andando, afinal, o tempo que perderia no trânsito por causa de dez minutos de atraso equivaleriam ao percurso feito a pé. Acenou para o porteiro e saiu apressado.

Correu para aproveitar o semáforo de pedestres aberto e, no meio da rua, esbarrou de leve em uma moça. Desculpou-se, mas ao olhar para ela, não conseguiu dizer mais nada. Ela era linda em seu vestido azul, cabelos pretos e ondulados recém lavados e um ar que misturava altivez e simplicidade. Teve até a impressão de ter sentido um suave aroma de lavanda no ar. E, apesar de não ter conseguido identificar a expressão em seu semblante, ela parecia ostentar um suave sorriso.

Ela, distraída em seus pensamentos, desculpou-se quando sentiu um esbarrão, mas ao olhar para o rapaz que também se desculpava, sentiu um frio na espinha. Ele se parecia  muito com a pessoa que ela idealizara encontrar: trajes simples, aparentemente bem educado e com uma aura de responsabilidade incomum naqueles dias. Ela tentou dizer alguma coisa, mas nada lhe ocorreu, a não ser que já estava encima da hora para chegar no escritório.

As buzinas tocaram e ambos, percebendo-se no meio da faixa de pedestres, correram cada um para um lado.  Olharam para trás, em busca um do outro, mas o fluxo contínuo de veículos e pessoas bloquearam as respectivas visões. Olharam novamente para os próprios relógios e correram para nunca mais se encontrar...


sábado, 21 de novembro de 2009

A Maldição das Entrelinhas


Talvez você ainda não tenha percebido, mas a maioria das pessoas fala, pelo menos, duas línguas. A segunda língua, entretanto, não é um idioma convencional, desses que se pode aprender em escolas. É uma linguagem sutil, misteriosa, indireta que é empregada simultaneamente à primeira língua usada pela pessoa. Além disso, sua comunicação pretende uma certa telepatia por demandar elementos subjetivos tanto daquele que fala quanto daquele que ouve, sendo essenciais à correta compreensão da informação.

Acontece, no entanto, que justamente por não trazer explicitamente o que se quer dizer, a segunda linguagem, oficialmente, não existe. Tem um caráter quase quântico, por comunicar vários sentidos ao mesmo tempo e, como tal, quando sua atenção se volta para qualquer um deles, os outros desaparecem. Há quem tente classificá-la como uma figuras de linguagem, hipocrisia ou mentira, mas essa comunicação não se enquadra em nenhuma dessas definições por um motivo muito simples: estas classificações fazem referência direta ao objeto a ser comunicado: as figuras de linguagem aos pontos implícitos, o hipócrita a algo que não pensa ou sente e a mentira, obviamente, ao oposto da verdade. Todas são lógicas e possuem elementos objetivos utilizados na sua compreensão, bem diferente da misteriosa linguagem das entrelinhas.

Tome como exemplo uma inocente saudação no escritório: "Oi, tudo tranquilo!?". Apesar de muito simples, a frase pode guardar em si desde uma ácida crítica à pró-atividade de quem escuta até um sincero elogio pela superação de um difícil obstáculo. Tudo dependerá da combinação de humores entre os interlocutores, do nível de tensão do ambiente, dos eventos recentes, da presença de outras pessoas, da temperatura, da luz do sol, do ar, do barulho do bebedouro... Seria um ótimo objeto de estudo para a Teoria do Caos, já que um piscar de olhos diferente é capaz de desencadear uma reação em cadeia suficiente para mudar completamente o sentido da saudação, originando, talvez, uma catástrofe nos relacionamentos dos que estão ao redor. Agora, imagine o que se passa em diálogos mais elaborados...

Mas, diferente das figuras de linguagem, da hipocrisia, da mentira, etc., não há elementos objetivos para se detectar a informação a ser passada. Isto porque, se quem ouve resolver questionar a validade de qualquer um dos supostos significados, quem fala, muito provavelmente, não confirmará — afinal, se tivesse disposto a fazer isto, teria falado expressamente na primeira oportunidade. Assim, imerso em dúvida, quem ouve escolhe o significado que deseja adotar e a linguagem das entrelinhas permanece inexistente! Com o tempo, as pessoas foram introjetando este comportamento e, hoje, escolhem o ângulo de compreensão automaticamente.

No geral, os orientais, em especial os japoneses, possuem uma compreensão mais cartesiana dos discursos, o que acaba gerando frequentes problemas de comunicação e, por causa disto, acabam sendo taxados de rudes e insensíveis. Os advogados criminais mais tarimbados, por exemplo, sabem que é melhor evitá-los no corpo de jurados quando a intenção é emocionar o júri. Obviamente, a não-identificação emocional com o caso se deve, não à insensibilidade, mas à compreensão mais objetiva dos fatos. Sem a habilidade de compreender bem a língua das entrelinhas, boa parte do apelo emocional acaba sendo perdido em meio a comunicação.

Esteja consciente, portanto, que enquanto não for fluente no idioma das entrelinhas, estará fadado ao fracasso nos seus relacionamentos interpessoais. Isto porque ao dizer qualquer coisa, mesmo sem a menor intenção, estará sempre enviando um misterioso recado àqueles que a compreendem bem. É uma verdadeira maldição...