segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Mosaico disciplinar do cotidiano


Em seu livro A invenção do cotidiano: artes de fazer, Michel De Certeau propõe uma nova contribuição à antropologia, a partir de uma perspectiva "ao rés do chão", como diz. Enquanto elucida seu modelo, nada ortodoxo aos olhos da academia à época, faz uma interessante distinção entre estratégias e táticas, segundo sua visão. As primeiras, diz o autor, baseiam-se fundamentalmente no espaço, constituindo-se em um lugar capaz de ser circunscrito em um "próprio", distinguindo-se da exterioridade que o contém. Já as segundas estão irremediavelmente ligadas ao tempo, sem que possam se delimitar de alguma forma. Nas suas palavras, enquanto "o 'próprio' é uma vitória do lugar sobre o tempo", o não-lugar tem "constantemente que jogar com os acontecimentos para os transformar em 'ocasiões'" (Certeau, 1990, p. 46-7). Exemplificando, grosso modo, uma instituição é estratégica, mas seu funcionamento, tático.

Essa conceituação, aparentemente complexa, forjada nos moldes das ciências humanas, deriva, fundamental e simplesmente, da própria interação humana com a realidade à sua volta. A leitura do tempo por meio do espaço, que configura a estratégia, só é possível porque vivemos sob algumas leis físicas bastante peculiares. Neste universo, a ocorrência de qualquer evento detectável envolve, necessariamente, alterações em ambas as variáveis: espaço e tempo. Não havendo mudança em alguma delas, o evento, aparentemente, não pode existir. Uma partícula material, por exemplo, só existe à medida em que ocupa um dado espaço por um certo período de tempo. O mesmo ocorre com uma onda eletromagnética que se propaga, variando sua coordenada espacial em um intervalo temporal característico. Mais concretamente, desde que mantida uma distância segura, um animal feroz não tem como fazer mal a ninguém porque o desfecho de seu ataque demorará, pelo menos, o tempo necessário ao deslocamento até a vítima, propiciando tempo para fuga ou outra medida de proteção.

Suponha, por exemplo, que um cidadão necessite passar por algum local perigoso, sujeito a crimes, tarde da noite, em alguma grande cidade por aí. Prevendo o que lhe pode acontecer e procurando se proteger, escolhe, estrategicamente, a trajetória que lhe permita a maior amplitude de visão possível e seja a mais iluminada do lugar porque, dessa forma, terá tempo para fugir, esconder-se, etc., ao menor sinal de perigo. Por outro lado, quando o mesmo cidadão vai caminhando, despreocupado, por algum lugar supostamente seguro, à luz do dia, pode ser que seja subitamente rendido por alguém com uma arma de fogo e, enquanto é levado em outra direção, decida saltar de uma ponte, submergindo sob a água para se salvar; isto é tática.

Mas não se preocupe caso não tenha entendido lhufas do que foi tratado aqui hoje. Basta compreender apenas que a interdisciplinaridade e o cotidiano, mesmo que pareçam frequentemente ininteligíveis ou caóticos, são fontes riquíssimas do saber humano, bastando um pouquinho de sensibilidade, humildade e boa vontade para os processar...


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