Não que este autor deseje torturar um leitor ou uma leitora que deteste a área das ciências exatas, mas há certas relações entre assuntos que não merecem ser desprezadas. A curva de tensão-deformação, apresentada ontem, fez lembrar uma história típica do dia-a-dia de um engenheiro metalúrgico e que merece ser contada. Assim, seguindo um suposto "conselho" de Maquiavel de que "o bem se faz aos poucos e o mal de uma vez só", continuemos, então, por mais um dia no domínio da engenharia metalúrgica, egrégia representante das ciências exatas, apenas para apresentar uma espécie de crônica do cotidiano profissional.
Trabalhar com metal é uma arte. Quem pega um simples parafuso nas mãos pode não ter ideia do que ocorre entre o céu e a Terra para que alguém possa usá-lo. E um dos trabalhos do metalurgista que trabalha com análise de falhas é, justamente, descobrir em que ponto desta imensa cadeia de processo ocorreu o erro causador da falha observada. Quanto mais próximo do produto final o problema é detectado, mais difícil é encontrar sua causa, dado o significativo aumento de possibilidades a cada etapa extra considerada. Só para ilustrar o drama, saquemos apenas uma das várias histórias que compõem o saber prático da profissão.
Certa vez, verificou-se uma incoerência entre os valores, obtido experimentalmente e informado no certificado de qualidade do fornecedor, do limite de resistência especificado para um parafuso. Isto é um problema sério para empresas que trabalham com um sistema de qualidade assegurada, pois o controle dessas características é feito por lotes, estatisticamente, confiando-se na eficácia do sistema de quem fornece. Logo, incoerências desse tipo geram desconfiança e desencadeiam ações bastante dispendiosas para a companhia.
Ao ser questionado, o representante da empresa fornecedora do parafuso acabou confessando que o valor informado da propriedade era obtido pela conversão de uma medida de dureza e não pelos resultados de um ensaio de tração como era de se esperar. Mas, até aí, nenhum problema. O aço é, geralmente, bastante homogêneo em suas características e a conversão do valor obtido em um ensaio de dureza Brinel, por exemplo, apresenta ótima correlação com o valor do limite de resistência extraído de um ensaio de tração convencional. Entretanto, mesmo aparentemente normal, há relações que não merecem ser desprezadas e se seguiu uma minuciosa análise do problema a partir daquele ponto.
Para se produzir uma barra laminada, parte-se, normalmente, de outra mais espessa, obtida diretamente do metal líquido, que é conformada até atingir a geometria desejada — a espessura do parafuso, por exemplo. Essa deformação, entretanto, endurece o material (experimente dobrar seguidamente um arame e perceba como ele vai endurecendo até se quebrar), especialmente na superfície que entra em contato direto com as ferramentas — só um detalhe curioso: se a dureza tivesse sido medida nesta etapa, o problema, provavelmente, não teria sido detectado. Assim, para facilitar a fabricação do parafuso, a barra é levada ao forno para amolecer por um processo conhecido em metalurgia por recozimento. E era aí onde que estava a origem do problema...
No recozimento, quanto mais deformado — ou encruado, para os metalurgistas — mais facilitado é o amolecimento do aço. Logo, a superfície da barra, mais deformada, amolecia mais rapidamente que seu núcleo e, como era nele que a medida de dureza era realizada, o resultado da conversão acabava por não refletir o valor do limite de resistência do material como um todo. A solução teórica seria a aquisição, por parte da empresa fornecedora, de uma máquina de tração ou do serviço de ensaio de tração feito por laboratórios terceirizados, mas o fornecedor preferiu resolver o problema com uma "regra-de-três".
E nunca mais se ouviu falar no assunto...
Muito interessante a postagem, valeu apena te-la lido toda, principalmente para mim que estudo engenharia metalúrgica. Valeu
ResponderExcluirOlá! Fico muito feliz que a experiência lhe tenha sido útil. A intenção era justamente essa. Vou tentar compartilhar outras mais sempre que possível, não perca! E muito obrigado pela visita!
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