terça-feira, 13 de maio de 2014

O Monstro

"Levantou-se e caminhou até a cozinha, tateando pelas paredes, ainda com as pálpebras entreabertas. Ansiava por um gole d'água antes mesmo de despertar definitivamente, mas ao adentrar a sala-de-estar em penumbra, notou pelo canto dos olhos um vulto incomum à sua cotidianidade. A vista se fixou involuntariamente na direção do sofá ao que seu corpo inteiro estremeceu. Parecia que uma aguda descarga elétrica fritara sua espinha em uma fração de segundo, paralisando suas pernas e abafando um princípio de grito que lhe brotou espontaneamente. O cerrar de seus olhos intensificou os demais sentidos e, enquanto escorregava para o chão, esperava, sinceramente, que nenhum deles confirmasse aquela cena desenhada de relance. O vulto, o som da respiração e o ar morno que sentia ali talvez fossem apenas parte de um pesadelo inconveniente. Respirou fundo, beliscou-se rapidamente para se certificar de que havia mesmo acordado e, pouco a pouco, foi liberando as pálpebras com o olhar fixo na direção do sofá. Dessa vez não conteve o grito aspirado que sonorizou o pulo desesperado dado para retornar à proteção das cobertas em sua cama ainda quente. "Levantou-se e caminhou até a cozinha, tateando pelas paredes, ainda com as pálpebras entreabertas. Ansiava por um gole d'água antes mesmo de despertar definitivamente, mas ao adentrar a sala-de-estar em penumbra, notou pelo canto dos olhos um vulto incomum à sua cotidianidade. A vista se fixou involuntariamente na direção do sofá ao que seu corpo inteiro estremeceu. Parecia que uma aguda descarga elétrica fritara sua espinha em uma fração de segundo, paralisando suas pernas e abafando um princípio de grito que lhe brotou espontaneamente. O cerrar de seus olhos intensificou os demais sentidos e, enquanto escorregava para o chão, esperava, sinceramente, que nenhum deles confirmasse aquela cena desenhada de relance. O vulto, o som da respiração e o ar morno que sentia ali talvez fossem apenas parte de um pesadelo inconveniente. Respirou fundo, beliscou-se rapidamente para se certificar de que havia mesmo acordado e, pouco a pouco, foi liberando as pálpebras com o olhar fixo na direção do sofá. Dessa vez não conteve o grito aspirado que sonorizou o pulo desesperado dado para retornar à proteção das cobertas em sua cama ainda quente.
Como um monstro, enorme e peludo poderia estar, tranquilamente, ocupando o sofá de sua sala? Um turbilhão de pensamentos se adensou em sua mente naquele instante e, ofegante, tentou se acalmar e se convencer de que tudo era apenas uma alucinação inoportuna. Com a disposição de colocar aquilo a limpo, reuniu todas as forças para retornar à sala, mas dessa vez teve a certeza de que não sonhava e saiu correndo pela porta em busca de auxílio pela vizinhança. Trouxe alguém consigo, sem explicar muita coisa, mas a pessoa nada viu no sofá da sala e apenas lhe ofereceu ajuda de alguns profissionais da saúde que conhecia. Mas o bicho estava lá, no mesmo lugar, respirando... Depois do terceiro vizinho confirmar que não estava vendo nada ali, desistiu. Voltou correndo para o quarto, trocou-se e saiu correndo para se consultar com seu analista, depois com o psicólogo e, finalmente, com o psiquiatra, mas nada foi diagnosticado. Recebeu apenas orientações vagas sobre gerenciamento de "stress" e ganhou umas amostras grátis de alguns calmantes. Como um monstro, enorme e peludo poderia estar, tranquilamente, ocupando o sofá de sua sala? Um turbilhão de pensamentos se adensou em sua mente naquele instante e, ofegante, tentou se acalmar e se convencer de que tudo era apenas uma alucinação inoportuna. Com a disposição de colocar aquilo a limpo, reuniu todas as forças para retornar à sala, mas dessa vez teve a certeza de que não sonhava e saiu correndo pela porta em busca de auxílio pela vizinhança. Trouxe alguém consigo, sem explicar muita coisa, mas a pessoa nada viu no sofá da sala e apenas lhe ofereceu ajuda de alguns profissionais da saúde que conhecia. Mas o bicho estava lá, no mesmo lugar, respirando... Depois do terceiro vizinho confirmar que não estava vendo nada ali, desistiu. Voltou correndo para o quarto, trocou-se e saiu correndo para se consultar com seu analista, depois com o psicólogo e, finalmente, com o psiquiatra, mas nada foi diagnosticado. Recebeu apenas orientações vagas sobre gerenciamento de "stress" e ganhou umas amostras grátis de alguns calmantes.
Quando voltou tarde da noite para casa, o monstro continuava lá, impassível, no sofá da sala. Dessa vez, entretanto, fez que não viu. Banhou-se, vestiu-se, tomou os vários dos comprimidos que ganhara, trancou a porta do quarto e tentou dormir sem muito sucesso. Na manhã seguinte, depois de uma noite muito mal dormida, foi conferir se o sofá estava livre, mas não... Novamente, fingiu que não viu e assim o fez ao longo dos dias subsequentes. Quando o bicho, uma vez por outra, soltava algum grunhido ou deixava escapar seu hálito que empestava a sala toda, ignorava o fato solenemente. Nessas horas repetia para si que o monstro da sala simplesmente não existia. Assim, viveu por anos com aquele monstruoso incômodo ali no sofá, esforçando-se para ignorar cada sinal advindo daquela aberração, até que, em uma bela manhã, a criatura sumiu, tão subitamente quanto havia aparecido. Não considerou muito o fato, apenas o ignorou e seguiu vivendo como antes, apesar do alívio que sentiu na alma. Quando voltou tarde da noite para casa, o monstro continuava lá, impassível, no sofá da sala. Dessa vez, entretanto, observou-o com mais atenção. Banhou-se, vestiu-se, tomou os vários dos comprimidos que ganhara, trancou a porta do quarto e tentou dormir sem muito sucesso. Na manhã seguinte, depois de uma noite muito mal dormida, foi conferir se o sofá estava livre, mas não... Novamente, observou-o, um pouco mais de perto, e assim o fez ao longo dos dias subsequentes. Quando o bicho, uma vez por outra, soltava algum grunhido ou deixava escapar seu hálito que empestava a sala toda, analisava o acontecido. Nessas horas pensava o que aquele monstro fazia ali na sala. Assim, viveu por anos com aquele monstruoso mistério ali no sofá, esforçando-se para entender cada sinal advindo daquela aberração, até que, em uma bela manhã, a criatura sumiu, tão subitamente quanto havia aparecido. Achou curioso o fato, mas seguiu vivendo como antes, apesar das conjecturas que lhe passavam na alma.
Certa noite, despertou com um ruído que parecia vir do sofá da sala..." Certa noite, despertou com um ruído que parecia vir do sofá da sala..."


domingo, 13 de abril de 2014

Misturas

Eu e Você Sempre

Logo, logo, assim
Que puder, vou telefonar
Por enquanto tá doendo
E quando a saudade
Quiser me deixar cantar
Vão saber que andei sofrendo...

E agora longe de mim,
Você possa enfim
Ter felicidade
Nem que faça um tempo ruim,
Não se sinta assim
Só pela metade...

Ontem demorei
Pra dormir,
Tava assim,
Sei lá,
Meio passional
Por dentro...

Se eu tivesse
O dom de fugir
Pra qualquer lugar,
Ia feito um pé-de-vento
Sem pensar
No que aconteceu,
Nada, nada é meu,
Nem o pensamento...

Por falar em nada
Que é meu,
Encontrei o anel
Que você esqueceu...

Aí foi que o barraco desabou,
Nessa que meu barco se perdeu,
Nele está gravado
Só você e eu...


Em 1976, enquanto uma junta militar depunha Isabelita Perón do cargo de presidente na Argentina, Fidel Castro assumia como presidente do Conselho de Estado Cubano e Steve Jobs lançava a Apple nos EUA, aqui no Brasil, o sambista Jorge Aragão despontava como compositor em terras fluminenses. Carioca, filho de mãe acriana, já esbanjava seu talento musical, poético e artístico que, ao longo de sua carreira, mais que se aperfeiçoou. Integrou o grupo de pagode Fundo de Quintal, como compositor e letrista, e ajudou a projetar outros grupos, como o Exaltasamba de São Paulo, com suas músicas — como a que abre esta postagem. Desde então, sua obra vem marcando presença nos mais variados repertórios de quase todos os grandes intérpretes do samba, de Alcione a Zeca Pagodinho. É, provavelmente, uma mistura de bom humor, espirituosidade e romantismo nas suas letras e melodias que alimenta seu sucesso. Essa diversidade interior aflorada pode ser notada em outras atividades, fora do contexto musical, como em sua recente aventura pelas veredas da gastronomia, lançando a rede de restaurantes que idealizou, "Bossa Nossa", no estado do Rio de Janeiro.

A mistura, aliás, é mãe do próprio samba, cujas raízes africanas tão bem se aclimataram nas terras baianas. Combinando manifestações populares e ritmos, suas ramificações chegaram aos mais remotos recantos deste país e acabaram por originar uma árvore mestiça com a cara do Brasil. Entretanto, não foi apenas o samba que vingou no fértil solo da musicalidade brasileira, mas vários outros gêneros, entre eles o roque ou, como preferem alguns, o "rock". Dos primeiros sucessos da Jovem Guarda no final da década de 1950 ao auge das bandas em voga entre as décadas de 1980 e 1990, o "rock" também se misturou aos diversos gêneros, ritmos e expressões musicais nativas para adquirir sua forma peculiar dentro da cultura brasileira. A mistura fez tão bem ao gênero que não há quem se negue a desfrutar os momentos seguintes à solicitação tão comum em muitos eventos musicais livres: "Toca Raul!".

Raul Seixas, Paralamas do Sucesso, Cazuza, Titãs, Rita Lee, Barão Vermelho, Lobão, RPM, Léo Jaime, Ultraje a Rigor... São tantos grandes nomes povoando a história do "rock" nacional que seria impossível citá-los sem cometer alguma injustiça. Alguns marcaram época e outros eternizaram sucessos como a Legião Urbana que, sem dúvida, pairou como uma das mais relevantes bandas do "rock" brasileiro. Algumas de suas músicas, misturada a outros elementos, acabaram pulando da primeira à sétima arte, como Faroeste Caboclo, que virou longa metragem e Eduardo e Mônica, transformada em filme publicitário. Não por acaso, em um dos acústicos da banda, o vocalista Renato Russo explicou que o nome de um dos lançamentos na ocasião nada tinha a ver com Veneza, conhecida pelo apelido de "Serenissima", mas, sim, com uma alusão ao seu andamento musical, mais acelerado.

Misturar parece, mesmo, dar certo...

Sereníssima

Sou um animal sentimental
Me apego facilmente ao que desperta meu desejo
Tente me obrigar a fazer o que não quero
E você vai logo ver o que acontece.
Acho que entendo o que você quis me dizer
Mas existem outras coisas.

Consegui meu equilíbrio cortejando a insanidade,
Tudo está perdido mas existem possibilidades.
Tínhamos a ideia, mas você mudou os planos
Tínhamos um plano, você mudou de ideia
Já passou, já passou - quem sabe outro dia.

Antes eu sonhava, agora já não durmo
Quando foi que competimos pela primeira vez?
O que ninguém percebe é o que todo mundo sabe

Não entendo terrorismo, falávamos de amizade.

Não estou mais interessado no que sinto
Não acredito em nada além do que duvido
Você espera respostas que eu não tenho mas
Não vou brigar por causa disso
Até penso duas vezes se você quiser ficar.

Minha laranjeira verde, por que está tão prateada?
Foi da lua dessa noite, do sereno da madrugada
Tenho um sorriso bobo, parecido com soluço
Enquanto o caos segue em frente
Com toda a calma do mundo.


quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Haikai do Fim



O alfa e o ômega, o princípio e o fim... O ser humano se acostumou tanto às suas próprias definições sobre aquilo que o cerca que se esqueceu tratar-se apenas disso: definições. Onde começa o céu? Onde termina o mar? Em que ponto principia a vida? E em que momento, exatamente, encerra-se? São respostas fáceis de se dar quando se termina de pensar, mas muito difíceis quando se começa... Fim.



terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Tristeza...

"A tristeza é um bichinho que pra roer tá sozinho. E como rói a bandida. Parece rato em queijo parmesão."
Adoniran Barbosa


Filho de imigrantes italianos, o paulista João Rubinato nasceu em Valinhos, interior de São Paulo, no início do século passado. De origem humilde, foi logo posto a trabalhar para ajudar a numerosa família que, em meados da década de 1920, acabou se mudando para Santo André, na Grande São Paulo. João chegou à capital paulista em 1933 e aqui se instalou para, anos mais tarde, tornar-se um dos grandes ícones da música brasileira. Tomando para si o primeiro nome de um amigo e o sobrenome mais "brasileiro" de um de seus ídolos, o sambista e compositor fluminense Luiz Barbosa, passou a se apresentar como Adoniran Barbosa e acabou ganhando projeção suficiente para ser considerado o pai do samba paulista.

Pouco afeito aos estudos, provavelmente por sua necessidade premente de trabalhar desde muito cedo para ganhar o próprio sustento, não foi fácil para Adoniran emplacar na vida artística. Tentou ser ator, compositor e músico, mas foi somente como intérprete que efetivamente encontrou o caminho para o seu reconhecido sucesso. Acostumado desde criança à rudeza da vida humilde na sociedade paulista, cantava como ninguém as dificuldades das pessoas comuns que, guardadas proporções, não mudaram muito de lá para cá. Seu bom humor, outra característica marcante, deve tê-lo ajudado, e muito, a superar os vários obstáculos encontrados ao longo de sua vida.

Talvez nem o próprio Adoniran soubesse, mas não era bem o sucesso, a fama ou a vida confortável, que conquistou para si e para os seus, aquilo o que realmente buscava quando decidiu se estabelecer por aqui. Suas conquistas eram apenas o meio para obter o mesmo que tantos outros paulistanos, incapazes de descansar até mesmo no feriado de aniversário da própria cidade, buscam incessantemente. Algo simples, fugaz, aliás, que qualquer ser humano persegue mas que muitas vezes é confundido com uma infinidade de coisas e situações que povoam nosso cotidiano. Como vez ou outra deixava escapar em suas canções, João, também, só queria ser feliz...

"(...) Saudosa maloca, maloca querida,
Dim dim donde nóis passemos os dias feliz de nossas vidas (...)
"
Adoniran Barbosa

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Post Natalis

Nesse ano o bom velhinho nem se lembrou do Automorfo. Passou batido. Não parou para conversar e nem deixou presente. Aliás, sequer mandou um cartãozinho virtual pelo correio eletrônico! Mas não é culpa dele, não. Os tempos mudaram e a política pseudo-sustentável do "fazer mais com menos" certamente o fez engolir aquele papo de "questão de prioridades" sobre o qual insistia tanto no ano passado. Dizem que em uma noite dessas, foi pego gritando com uma rena que se atrapalhara com os próprios pés, atrasando-o nas suas tarefas pré-natalinas. O pior é que, na ocasião, outras renas tomaram as dores da colega e passaram a acusá-lo de não trabalhar em equipe, de querer saber mais do que elas sobre a arte de puxar trenó, de ser desrespeitoso com elas, entre várias outras coisas. Parece que foi, então, obrigado a recolher-se à insignificância de sua função de entregar os presentes, já que a animosidade das renas poderia causar maiores problemas para o natal. E apesar do aparente quadro de estresse do velhinho, continuava trabalhando sozinho, já que, devido à contenção das verbas celestiais, haviam cancelado a contratação do duende ajudante prevista para esse ano.

Mas Papai Noel é duro na queda e na véspera do natal causou um verdadeiro rebuliço alterando seu "status" de relacionamento no perfil de uma rede social. Algumas horas mais tarde, postou explicando que aquilo fora apenas um artifício, aprendido em um de seus recentes cursos de "marketing", para chamar atenção das pessoas para uma data tão importante quanto aquela. Aproveitou para colocar na sua lista de desejos um livro de outro bom velhinho, o Dalai Lama, talvez buscando alguma inspiração para conseguir retornar ao seu estado de equilíbrio e desempenhar melhor seu trabalho em 2012. Mais recentemente, já depois do natal, os comentários davam conta de que ele mal havia finalizado sua especialização em "lean manufacturing", que completara só para ajudar na produção dos presentes, e já estava se matriculado no melhor MBA em gestão de renas do planeta, sem qualquer subsídio celestial. Esse Papai Noel... Não existe mesmo!

Solidário aos esforços do bom velhinho e atento aos anseios de seus leitores, o Automorfo protocolou, na junta natalina, uma petição para receber um presente específico: a não coincidência do domingo com os feriados de natal e ano novo. Segundo seguras fontes internas, parece que o pedido foi concedido por pelo menos os próximos cinco anos, talvez por receio da entidade de que a opinião pública seja negativamente influenciada por este veículo. Assim, com essa boa notícia, este autor deseja a seus leitores uma excelente passagem de ano, com a concretização de muitos dos votos de paz, saúde, harmonia e riqueza, principalmente espiritual, tão comuns nessa época do ano. Que 2012 seja melhor em todos os aspectos e que todos recebam exatamente aquilo que merecem!

Boas Festas!

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Aprendizado Crítico

Em uma terra distante, um desavisado leitor tinha, subitamente, a atenção sequestrada pela manchete do jornal em suas mãos. A chamada alertava sobre o domínio que um grupo de maconheiros estaria exercendo sobre uma das mais importantes universidades de seu país. Apesar de ter visto algo a respeito, en passant, sua escassez de tempo crônica o impedira de se inteirar sobre o assunto. Dessa vez, não. Decidiu-se seguir com a leitura e soube que uma das principais motivações daquela crise havia sido a permissão para que a divisão militar de policiamento do estado, ao qual a universidade estava subordinada, voltasse a ter livre acesso para atuar ostensivamente dentro dos campi da instituição. A decisão, respaldada pelo voto da maioria em assembleia discente, não havia sido acatada por uma minoria que parecia não se preocupar com a crescente onda de criminalidade no campus principal.

Sem conseguir ler mais nada, fechou o jornal, respirou fundo e se pôs a refletir sobre toda aquela confusão. As ciências humanas haviam lhe ensinado que aquela universidade era um símbolo de luta e resistência contra os regimes autoritários cuja força, poucas décadas atrás, havia subjugado seu país. Tinha ciência de que não havia sido fácil retornar à condição de normalidade democrática anterior aos golpes e que aquele afastamento das forças militares visava, de forma objetiva, manter aquela conquista tão valiosa, evitando que futuras manifestações, contrárias à autoridade vigente, pudessem ser facilmente sufocadas pela força policial. Estranhou que a simples exigência de uma autorização por escrito do reitor, para que qualquer movimentação militar ocorresse na universidade, tivesse sido descrita como uma 'ultrapassada proibição de acesso' no texto que acabara de ler.

Havia aprendido, com as ciências exatas, a quantificar suas ideias e impressões, ensinamento que, agora, parecia-lhe insuficiente para compreender o equacionamento que faziam daqueles problemas. Aquela universidade, sozinha, administrava um orçamento tão vultoso quanto os das maiores cidades do país e, mesmo assim, nenhum investimento significativo na segurança interna de suas instalações havia sido feito, ou sequer proposto, pela reitoria, ou pelo governo do estado, para conter os crescentes índices de violência a que aquela comunidade estudantil vinha sendo submetida. Além disso, não conseguia se lembrar de qualquer outra instituição de ensino, pública ou privada, que tivesse necessitado da constante presença de homens da segurança pública para garantir a segurança de seus alunos e professores.

Já no trabalho, chegou a comentar algo a respeito do assunto com seus colegas, mas foi logo tachado de defensor da 'marcha da maconha' na universidade. Incrédulo com a reação dos demais, lembrou-se que as ciências biológicas o haviam ensinado que nem todo embrulhar de estômago possuía origem orgânica...


segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Dia das Bruxas

A meio caminho entre o equinócio e o solstício no hemisfério norte, é comemorado o Dia das Bruxas, ou "Halloween", principalmente entre os povos de origem anglo-saxã. Originalmente, o dia nada tinha a ver com bruxas, demônios ou outras entidades misticamente más. A fama se deve, muito provavelmente, ao cristianismo romano quando se mesclou às "estranhas" práticas dos povos ditos pagãos. Hoje, os países de língua inglesa, em especial os Estados Unidos da América, Canadá e Reino Unido, são os guardiões dessa tradição e promotores de seus costumes típicos. Entre estes, além dos tradicionais pedidos das crianças por guloseimas, em troca de não realizar travessuras, está o de contar histórias horripilantes na noite do dia 31 de outubro a fim de apavorar a audiência. O Automorfo resolveu experimentar...

"Era uma vez um rapaz de origem humilde que, honestamente, havia se esforçado durante toda sua vida para se desenvolver na sociedade em que vivia. Apesar de seus pais não lhe terem proporcionado uma vida financeiramente confortável, nada de realmente essencial havia lhe faltado. Pôde se educar em um colégio particular de freiras, fazer cursinho com o auxílio de uma bolsa de estudos, entrar na faculdade e se formar. Já no seu primeiro estágio, convidaram-no para ingressar em uma grande empresa, conseguindo, assim, um bom emprego que lhe permitiu ascender economicamente. Jamais, no entanto, esquecera-se de suas origens e continuava a olhar a vida com os mesmos olhos simples que o haviam levado até ali. Achava muito estranho, aliás, quando seus colegas teciam comentários como se fossem diferenciados com relação aos demais, de menor renda, mesmo possuindo trajetórias de vida tão similares.

Naquele final de outubro, começara acalentar a ideia de adquirir um espaço próprio, algo que, após se dedicar por mais de dez anos ao trabalho, parecia-lhe natural como próximo passo. Porém, ciente de suas limitações financeiras, descartou da pesquisa os imóveis novos e em bairros muito nobres, atendo-se apenas ao que entendia ser uma boa localização. Encheu-se de coragem e perguntou o preço do primeiro apartamento que viu à venda no bairro de sua escolha, mas se engasgou com a resposta que o porteiro lhe deu com toda naturalidade: quase um milhão. Consolou-se com a justificativa relativa ao tamanho do imóvel e repetiu a pergunta quando encontrou outro, menor, mas a resposta foi similar, abatendo-o novamente. A cena praticante se repetiu até o final daquele dia, quando percebeu que meio milhão era a melhor proposta disponível. A matemática, então, passou a lhe torturar o cérebro: seriam necessários mais cinco anos de trabalho para comprar o imóvel mais barato que encontrara caso pudesse juntar dez mil por mês, mas como sequer ganhava esse valor, o maior sacrifício que vislumbrava, cerca de mil mensais, demandaria mais de quarenta anos para lhe tornar proprietário de um lugar para viver.

Assim, naquela noite do dia 31 de outubro, uma escuridão apavorante tomou o espírito do rapaz e a maldade passou a vigorar no seu interior. Sem interromper seu caminhar pela noite adentro, olhou para uma placa de trânsito à sua frente e sorriu, maldosamente, certo de que o mundo jamais seria igual para ele depois daquele dia das bruxas...
"


sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Engenharia Errada


Dizia uma infame anedota que os erros mais graves dos advogados permanecem ocultos no interior das celas, dentro dos presídios; os piores erros médicos, encontravam-se enterrados sob sete palmos de terra; os erros dos engenheiros, entretanto, estariam aí, à mostra, como grandes monumentos à imperfeição humana. Claro que a afirmação é absolutamente imprecisa e preconceituosa, bastando, para esta constatação, verificar que a maior parte dos advogados sequer trabalha na área criminal, a maioria absoluta das intervenções médicas são notadamente acertadas e há muitas outras áreas na engenharia além da civil. Seja como for, a frase também não causaria efeito algum, caso não contivesse qualquer coisa de factual.

Há alguns anos atrás, por exemplo, um professor de geografia explicava aos seus alunos — futuros advogados, médicos, engenheiros, etc. — que o território brasileiro não estava sujeito a grandes terremotos por se situar bem no interior da Placa Sul Americana, bastante espessa e estável. Dizia, também, que, na eventualidade de um fenômeno sísmico de proporções ainda não observadas, as características geológicas de cada região seriam o principal indicador das áreas com maior potencial de risco às estruturas humanas construídas sobre sua superfície. Uma dessas zonas mais suscetíveis, esclarecia ele, ficava na divisa entre os estados do Rio de Janeiro e São Paulo, justamente onde engenheiros estrangeiros — que, obviamente, desconheciam as peculiaridades da geologia nacional — contratados pelo então regime militar concluíram ser a melhor localização para se construir as primeiras usinas nucleares brasileiras. Note que o "erro" é relativo, pois se por um lado a região sudeste, maior centro populacional brasileiro, passou a ser ameaçada pelos efeitos de um eventual desastre nuclear, por outro, Brasília, núcleo de todo comando político-militar nacional sempre esteve bem protegido no interior do Brasil.

Assim, é um tanto complicado se falar em erro quando profissionais e dados envolvidos em uma análise de engenharia estão, quase sempre, incompletos ou viciados por questões outras, além das meramente técnicas — e qualquer engenheiro com um mínimo de experiência na sua área sabe bem disso. Não foi um erro de engenharia que levou à perda de muitíssimo mais vidas no Haiti do que no Chile por ocasião dos recentes grandes terremotos americanos, senão outras causas, como a condição social, político e econômica distinta de cada uma dessas regiões. O mesmo se pode dizer de eventos menos globais como o desabamento durante a construção de uma nova estação do trem metropolitano de São Paulo, a queda de vigas de um viaduto no trecho sul do anel viário paulista e a crônica insuficiência da malha ferroviária urbana para atender a população nos horários de pico que, mesmo com linhas absolutamente novas e ainda não totalmente funcionais, já se mostram completamente saturadas — apesar de nunca aparecerem assim nas campanhas publicitárias custeadas com dinheiro público, mas que servem à divulgação de setores privatizados.

Mas se a teoria da tectônica de placas prevê que um grande terremoto pode, inclusive, mudar o eixo de rotação terrestre, gerando uma série de efeitos para a vida no planeta, por que um terremoto social não seria capaz de alterar o eixo político e extinguir, de uma vez por todas, esses anedóticos "erros" de engenharia?


quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Burrice


Se fosse possível mensurar a injustiça de um termo para com o objeto que o origina, "burrice", provavelmente, seria um dos mais injustos. Definido por Houaiss como a "qualidade, caráter ou condição de burro", o termo não faz jus ao simpático animalzinho a que se refere — equino híbrido, estéril, fruto do cruzamento de um cavalo com uma jumenta, ou de um jumento com uma égua. O bichinho, que de "burro" só tem o nome, auxilia os seres humanos desde os mais antigos e remotos agrupamentos sociais até grupos de elite da sociedade moderna. Na história cristã, por exemplo, carregou Maria grávida em sua fuga da cidade e ainda ajudou a aquecer, na manjedoura, o próprio recém-nascido menino Jesus. Mais recentemente, já neste século, durante a guerra no Afeganistão, as forças militares estadunidenses escolheram a eficiência dos burros para carregar suprimentos pelas acidentadas terras daquele país.

O curioso é que a fama de pouca inteligência dos burros vem, justamente, de um hábito muito perspicaz e saudável que esses animais possuem de tomar cuidado em qualquer lugar por onde passam. Entretanto, mesmo poupando a espécie de vários problemas potencialmente fatais, como quedas e fraturas, houve quem julgasse a peculiar característica como um sinal de estupidez, apenas porque confere à classe uma lentidão e "teimosia" não percebida no comportamento usual dos cavalos, por exemplo, por vezes considerados mais "inteligentes". Assim, parece evidente que se a questão for considerada sob uma perspectiva "darwiniana" de preservação da vida, a ideia de burrice dos burros, tão amplamente difundida pelo senso comum, está fundamentalmente errada.

Mas é na contemplação de uma sociedade cosmopolita, existente em megalópoles como São Paulo, e de inúmeros detalhes do seu cotidiano que se pode constatar tão patente equívoco. Basta usar algum dos precários serviços de transportes público da cidade para notar que nunca há burros — animal — ocupando assentos reservados enquanto idosos, gestantes e portadores de alguma deficiência se sacrificam na viagem em pé nos veículos lotados. Também não se vê um único burro sequer empacando o fluxo de pessoas que tentam entrar nos vagões de trem antes do desembarque dos passageiros que ali estão. Não se vê pares de burros estacionados nas escadas e esteiras rolantes barrando a passagem, nem bloqueando acessos a qualquer outro veículo ou lugar. Os burros também não ameaçam, avançam ou atropelam pedestres cruzando as vias nas faixas de segurança, nem votam, perpetuando pessoas, ideologias e partidos que atravancam um consistente desenvolvimento social, econômico e ambiental da cidade e do estado.

Ainda bem que os burros não costumam reclamar...


domingo, 31 de julho de 2011

Sob a Cidade


Ao caminhar apressadamente pelas ruas da cidade, como costuma exigir nosso moderno cotidiano, é difícil dar-se conta de quanta coisa jaz sob esse cenário aparentemente tão trivial e estéril de uma metrópole. Mas com um pouco de atenção, é possível perceber o mosaico de existências dos tantos que por ali passaram, viveram e morreram, vindo, daí, uma nuança de sentido da cidade ser como a percebemos hoje: consciente ou inconscientemente, assim a imaginaram um dia... E como tudo estará daqui alguns séculos?


domingo, 5 de junho de 2011

Meia-esperança


Esperança é o nome vulgar dado aos insetos ortópteros da família dos tetigoniídeos mas, também, designa um sentimento humano valiosíssimo, capaz até de manter vivo alguém que se encontre em situações praticamente insuportáveis. Contrastando com essa concretude do inseto, não seria exagerado dizer que o sentimento de esperança é quase tão abstrato quanto um ato de fé, nem seria de se admirar se acaso o reivindicassem como autêntica instituição cristã. Afinal, o que melhor traduziria a disposição de se suportar agruras presentes sem reais evidências de um futuro melhor? Seja como for, fato é que esperança não pode nunca faltar no repertório emocional humano. Quem nunca ouviu a famosa máxima popular: "a esperança é a última que morre"? Basta que a pessoa que já tenha experimentado certas situações na vida para saber que, sem esperança, tudo parece mesmo perder a importância, inclusive a própria vida.

Para não se apagar, entretanto, a chama da esperança parece necessitar de algum combustível. O solitário que tem um sorriso retribuído, por exemplo, mantém a esperança de, algum dia, deixar para trás a solidão. O moribundo que se sente um pouco melhor guarda a esperança de se recuperar definitivamente. O miserável que consegue se alimentar sente aumentar sua esperança de não mais passar fome. Ao ser chamado para uma entrevista, o desempregado renova suas esperanças de permanecer com sua dignidade. É o melhorar, o progredir no sentido de uma situação mais adequada, portanto, que acaba servindo como "evidência" de que um futuro melhor seja possível, alimentando, assim, a esperança dos seres humanos.

O regredir, por outro lado, vai corroendo qualquer vestígio de esperança que insista em resistir. Ao ver milhões de reais sendo usados para concretar o que restou de terra nas marginais dos rios, ao sofrer com o aumento dos carros devido à precariedade do transporte público nas grandes cidades, ao constatar o pouco caso da administração pública e de muitos cidadãos com toda e qualquer questão que envolva a sustentabilidade das zonas urbanas, ao acompanhar um código florestal ser transfigurado ao sabor de interesses político-econômicos pela casa que representa o povo, a esperança de que nosso meio se tornará melhor vai minguando, pouco a pouco. Tudo, talvez, não passe de mero detalhe, tal como um hífen entre duas palavras, mas que, para mentes mais atentas, pode fazer toda a diferença para se manter viva a esperança neste meio ambiente.

Viva o Dia do Meio-ambiente!

domingo, 15 de maio de 2011

Filme de terror moderno


Imagine se, algum dia, uma potência mundial declarasse um único homem culpado por um dos maiores atentados terroristas que se tivera notícia na história da sociedade moderna, mesmo não havendo compatibilidade entre sua condição de vida e o grau de sofisticação necessário para organizar uma ação de tamanha complexidade e magnitude. Imagine, ainda, se o acontecido fosse usado para justificar, não apenas a aprovação de leis que cassassem inúmeros direitos civis individuais de toda a população, como também uma série de intervenções militares desse país em outros, soberanos, que coincidentemente guardassem recursos naturais preciosos, escassos e estrategicamente relevantes.

Imagine se, por causa disso, boa parte da riqueza do planeta fosse destinada às atividades bélicas e não à saúde, educação, assistência social, cultura e meio-ambiente. Se os jornais e os veículos de informação de massa deixassem de denunciar condições sub-humanas de existência, mau uso de recursos públicos e tantos outros problemas sociais, para noticiar, exclusivamente e por anos, cada uma das razões que justificassem as ações arbitárias decorrentes daquele fatídico evento, procurando convencer veladamente a maioria da população de que a saída adotada era única e, inquestionavelmente, a melhor.

Imagine se, depois de tudo isso, militares daquela mesma potência invadissem outro país soberano, sem qualquer aviso ou consentimento, para assassinar aquele homem, sumir com o seu corpo e ainda acusar o país invadido de colaboração com o terrorismo. E se, à medida que a opinião pública mais esclarecida condenasse tal atitude, aquele país começasse a divulgar supostos acordos secretos firmados com o país invadido que pudessem legitimar suas ações. Pior, imagine se parte de sua população literalmente festejasse nas ruas o assassinato daquele homem, se a popularidade do presidente aumentasse e se praticamente toda a mídia, que — misteriosamente — noticiava sobre o personagem que seria morto semanas antes, também manifestasse apoio a tudo aquilo...

Daria um filme, não?! Ainda bem que esse tipo de coisa não acontece na vida real...


sábado, 30 de abril de 2011

Encontros


"— Como?!

A pergunta, apesar de sinceramente interessada, não deixava dúvidas quanto à incredulidade que lhe ia no ser. E a despeito da proposta estapafúrdia que recebera, ainda não havia conseguido identificar ao certo se seu interlocutor estava caçoando dele ou não, tamanha era a sobriedade com que lhe fora colocada.

— O que, exatamente, o senhor não compreendeu?
— Por um instante me pareceu que o senhor propunha comprar meu tempo, literalmente?!
— Sim. E que mal há nisso?
— Que conversa mais absurda! Desde quando é possível para alguém adquirir o tempo de outrem?
— Desculpe, mas isto é um problema meu. Deseja vendê-lo ou não? Pago por minutos e pago muito bem...

Pensou em reagir, mas encerrou aquela conversa bizarra de forma educada, imaginando que, talvez, aquele senhor pudesse sofrer de algum distúrbio mental. Seguiu seu caminho, mas logo foi detido, um pouco mais adiante, por um antigo conhecido seu.

— Ora, mas que surpresa agradável encontrá-lo por aqui! Há quanto tempo não nos falamos!
— Pois é... Muito, não?! Como vai a família?
— Ótima! Meus filhos se casaram há alguns anos e meus netinhos já estão a caminho...
— Mas já? Ainda ontem eu os carregava no colo!
— As décadas voam, não? E aquele seu projeto da grande viagem com toda a família, realizou?
— Infelizmente, não. Ainda não tive uma folga no trabalho...
— E aquela sua ideia de criar uma fundação beneficente?
— E lá tive algum momento meu para pensar nisso? Tenho trabalhado demais...
— Bom, pelo menos deve estar bem financeiramente. Logo, logo poderá diminuir o ritmo e aproveitar o que a vida tem de melhor...
— Sem dúvida que sim! Mas, agora, com licença. Estou com um pouco de pressa pois tenho de chegar no banco antes que termine o expediente. Hoje é o último dia para aproveitar umas taxas de juros diferenciadas em empréstimos pessoais. De qualquer forma, foi ótimo nos encontrarmos por aqui! Nunca sobra tempo para colocarmos a prosa em dia, não é mesmo?! Lembranças à família!

Despediram-se apressadamente enquanto, ao longe, um senhor sóbrio os fitava demoradamente...
"

sábado, 12 de fevereiro de 2011

A paradoxalidade humana


Pessoas são paradoxais. Para quem não sabe, paradoxal é algo que não parece ter um sentido lógico ou é, à primeira vista, contraditório. Essa paradoxalidade acaba se manifestando no comportamento humano nas mais variadas formas. Um caso típico é quando uma pessoa age de uma forma diversa daquela que diz, quer ou pensa que deveria agir. Quem não tem, por exemplo, um conhecido que, preocupado em preservar a saúde, ingere exclusivamente alimentos orgânicos, mas fuma? Ou que, visando a boa forma física, troca o açúcar do cafezinho pelo adoçante, após um lauto jantar em um rodízio de pizzas? Ou que trabalha em uma função que não suporta, ou que se divorcia por medo de se separar do cônjuge, ou que professa uma religião na qual não crê, ou que se gradua em uma área que já se decidiu por não seguir, enfim, há uma lista tão ordinária quanto extensa de situações humanas que permitem dispensar quaisquer referências científico-acadêmicas para embasar a afirmação feita no início do texto.

Ainda nesse campo das "informalidades científicas", pode-se dizer que há duas características nos paradoxos humanos que costumam deixá-los ainda mais intrigantes. A primeira, intrínseca à própria concepção do termo, é que não existe, necessariamente, contradições ou falta de lógica nesses comportamentos. Há, sim, uma certa "intencionalidade" que procura conduzir os mais incautos — inclusive o próprio autor do paradoxo — a equívocos de raciocínio que levam a uma falência lógica da conclusão. Em outras palavras, a situação proposta esconde, ou omite, propositalmente, informações essenciais para que se possa chegar a uma conclusão logicamente adequada. Não por acaso, a teoria sobre o inconsciente, proposta por Freud, há quase dois séculos atrás, ainda é inspiração para inúmeros estudos até os dias de hoje.

Já a segunda característica, mais complexa, reside no âmago da natureza humana e se refere à forma como tais comportamentos são notados pelas pessoas. A paradoxalidade costuma ser mais facilmente percebida nos outros e menos em si mesmos. Identificar os próprios comportamentos como paradoxais exige um certo grau de auto-conhecimento difícil de se adquirir. Talvez esta seja uma razão das muitas que expliquem o porquê de, quase sempre, percebermo-nos mais normais, mais justos, mais corretos, etc., que os demais. Seria fácil acreditar que isto é verdade, não fosse o fato de que somos os outros na visão dos outros... Paradoxal, não?!

Este autor será, por exemplo, obrigado a reconhecer que, se esta não fosse sua própria postagem, seria bem mais fácil divisar as razões que a levaram ser publicada tão tardiamente, mesmo tendo sido pensada tanto tempo atrás...


terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Feliz Aniversário!


Pode-se dizer que praticamente todos os paulistanos e paulistanas, compreendem bem o significado do termo "mulher de malandro", porque não importa o quanto a cidade os maltrate, o amor por São Paulo não termina nunca. Curiosamente, esse termo foi popularizado, na década de 1930, por dois cariocas, o compositor Heitor dos Prazeres (1898-1966) e o intérprete Francisco Alves (1898-1952), que gravaram o samba Mulher de Malandro, em 1932, ganhando o primeiro prêmio oficial de músicas carnavalescas. A letra da música dispensa quaisquer comentários explicativos:

"Mulher de malandro sabe ser
Carinhosa de verdade
Ela vive com tanto prazer
Quanto mais apanha
A ele tem amizade
Longe dele tem saudade
(...)
Ela briga com o malandro
Enraivecida, manda ele andar
Ele se aborrece e desaparece
Ela sente saudade
E vai procurar
(...)
Muitas vezes
Ela chora
Mas não despreza o amor que tem
Sempre apanhando e se lastimando
E perto do malandro
Se sente bem
"

Hoje, por exemplo, no dia do 457º aniversário da cidade, São Pedro — colega de trabalho de São Paulo — mandou uma chuva de verão básica, no final da tarde, só para refrescar o dia quente de verão que alegrou todo o feriado paulistano. Nada muito diferente dos anos anteriores, mas o suficiente para instalar o caos em muitas regiões da cidade, principalmente na periferia, onde reside a maior parcela da população menos favorecida. Como bons sofredores, a maioria dos paulistanos e paulistanas sabem que a administração pública nada teve a ver com tudo isso, afinal, vêm, democraticamente, reelegendo os mesmos representantes há anos. A culpa, obviamente, é de São Pedro que errou a mão outra vez...

Mas se sobra sofrimento com o transporte público caro e precário, com os congestionamentos, com a poluição, com a sempre deficitária assistência social e de saúde, com a violência e com tantas outras mazelas típicas do maior agrupamento urbano da América Latina, sobram, também, oportunidades, disponibilidade de serviços, vanguardas empresarial e econômica, diversidade ideológica, cultural, política, social, étnica, religiosa, além de todo amor dos que, apesar de sofrerem, não pediram para sair mas, ao contrário, continuam aqui, trabalhando muito para melhorar São Paulo e o Brasil. Porque, como lembrado na bandeira*, os verdadeiros paulistanos e paulistanas não têm a menor vocação para "mulher de malandro" e conduzem a cidade para que melhore sempre, não sendo nunca conduzidos por ela. Então:

Parabéns, São Paulo!


* Non ducor duco (não sou conduzido, conduzo): lema inscrito no brasão da cidade de São Paulo.