domingo, 24 de janeiro de 2010

O Principezinho


Há algumas leituras cuja "alma" precisa ser "sintonizada" pelo leitor, ou este corre o sério risco de "passar batido" pelas ideias que o autor quis transmitir. Um sintoma típico desse problema é quando não se gosta de uma obra à primeira vista. Em geral, não gostamos daquilo que não entendemos.

Mas antes que se atire a primeira pedra, é bom explicar que você pode gostar, ou não, de qualquer coisa: você pode detestar Machado de Assis e adorar Paulo Coelho. O que se está dizendo é que o contexto sempre ajuda a entender a que o autor se referia quando produziu a obra, o que acaba "cativando" seu gosto pela mesma. Como entender as deformidades nas pinturas de Picasso sem associá-las à dor e ao sofrimento da Guerra Civil Espanhola, por exemplo?

Este autor confessa que nunca conseguiu gostar de "O Pequeno Príncipe", clássico de Antoine de Saint-Exupéry, até recentemente, quando uma querida amiga italiana mandou, de presente de natal, uma versão lusitana da obra — talvez o melhor presente deste final de 2009. Em Portugal, o livro possui o nome de "O Principezinho" (Tradução de Joana Morais Varela, Editorial Presença, Lisboa, 2008) e traz, além das aguarelas (aquarelas, no Brasil) do autor, várias expressões típicas de além-mar. Uma verdadeira delícia literária francesa regada com o melhor azeite português!

A despeito das particularidades que envolveram a chegada do exemplar por aqui, a obra de Saint-Exupéry, escrita na década de 1940, é praticamente atemporal e transcultural, com, pelo menos, duas leituras possíveis: a de uma criança — que se deixa envolver pela magia da fábula — e a de um adulto — engolido pelas críticas feitas, em linguagem figurada, a seu mundo "adulto". A viagem do Pequeno Príncipe vai descortinando o "outro", cada qual em "seu planeta", a partir de uma visão crítica de uma "pessoa crescida", porém com a "ingenuidade" de uma criança, atitude indispensável para se tentar entender sem, no entanto, julgar. Como quando encontra com o rei:

"(...) — Ah! Cá temos um súbdito! — exclamou o rei, mal avistou o principezinho. O principezinho estranhou:
'Como pode ele saber quem eu sou se nunca me viu?'
Ainda não tinha aprendido que o mundo se encontra extremamente simplificado para os reis. Todos os homens são súbditos.
— Aproxima-te, para eu te ver melhor — disse-lhe o rei, cheio de orgulho por ser finalmente rei de alguém.
O princepezinho bem olhou em volta, à procura de um sítio para se sentar. Mas o planeta estava todo atravancado pelo magnífico manto de arminho. Teve de ficar de pé e, como estava cansado, bocejou.
— É contra a etiqueta bocejar na presença de um rei — disse o monarca. — proíbo-te que bocejes!
— Não consigo parar — respondeu o pricipezinho, muito atrapalhado. — Fiz uma grande viagem sem dormir...
— Então ordeno-te que bocejes — disse-lhe o rei. — Não vejo bocejar há anos. Para mim, um bocejo é uma verdadeira raridade. Anda! Boceja! E isto é uma ordem!
— Assim fico intimidado... Já não consigo... — disse, corando, o principezinho.
— Então, então, ordeno-te que umas vezes bocejes e que outras...
Tartamudeava. Parecia vexado.
Porque ao rei importava sobretudo que a sua autoridade fosse respeitada. Não tolerava desobediências. Era um monarca absoluto. Mas também era muito bom, e por isso só dava ordens sensatas. Costumava dizer:
'Se eu ordenasse a um general que se transformasse em gaivota e ele não me obedecesse, o general não tinha culpa. Eu é que tinha.' (...)
"

Pena algumas autoridades não serem, cá na Terra, tão sábias quanto aquele rei!

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