"Também o senhor atribui ao leigo virtuoso a convicção de que o outro está em nós. Não se trata, porém, de uma vaga propensão sentimental, mas de uma condição fundadora. Assim como ensinam mesmo a mais laica entre as ciências, é o outro, é seu olhar, que nos define e nos forma. Nós (assim como não conseguimos viver sem comer ou sem dormir) não conseguimos compreender quem somos sem o olhar e a resposta do outro. Mesmo quem mata, estupra, rouba, espanca, o faz em momentos excepcionais, e pelo resto da vida lá estará a mendigar aprovação, amor, respeito, elogios de seus semelhantes. E mesmo àqueles a quem humilha ele pede o reconhecimento do medo e da submissão. Na falta desse reconhecimento, o recém-nascido abandonado na floresta não se humaniza (ou, como Tarzan, busca o outro a qualquer custo no rosto de uma macaca), e poderíamos morrer ou enlouquecer se vivêssemos em uma comunidade na qual, sistematicamente, todos tivessem decidido não nos olhar jamais ou comportar-se como se não existíssemos."
Umberto Eco (Eco, U., Martini, C. M. Em que crêem os que não crêem?. 10 ed. Record: Rio de Janeiro, 2006.)

Em março de 1995, promovido pela revista italiana Liberal, iniciava-se um debate entre dois expoentes do pensamento contemporâneo da escola italiana de filosofia: Umberto Eco e Carlo Maria Martini. Eco, 78, filósofo pela Universidade de Torino com uma tese de estética sobre Santo Tomás de Aquino, trabalhou em programas culturais da RAI (TV estatal italiana) e na Editora Bompiani, lecionou semiótica na Universidade de Bolonha e, como estudioso, dedica-se à estética medieval, à arte de vanguarda e aos fenômenos da cultura de massa, tendo publicado livros como O nome da rosa e Kant e o ornitorrinco, entre outros. Martini, 82, sacerdote ordenado pela Companhia de Jesus em 1952, formou-se em Teologia fundamental pela Universidade Gregoriana de Roma em 1958 — tornando-se, mais tarde, seu reitor —, exerceu a docência no Pontifício Instituto Bíblico — vindo a tornar-se diretor — e, em 1983, foi elevado a cardeal pelo então Papa João Paulo II.
O debate, transcorrido por meio de cartas abertas publicadas pela Liberal ao longo de um ano, apresenta as argumentações de Eco, um dos mais importantes pensadores laicos da modernidade, dirigidas a Martini, cardeal de uma das mais importantes instituições cristãs do planeta, sobre a "invenção" de Deus, bem como a necessidade de Sua presença no contexto atual da humanidade. À visão de Eco, somam-se as opiniões dos fiilósofos Emanuele Severino e Manlio Sgalambro, dos jornalistas Eugenio Scalfari e Indro Montanelli, do teórico de extrema esquerda Vittorio Foa e do ex-ministro e ex-secretário do Partido Socialista Italiano Claudio Martelli. Diligente e pacientemente, Martini responde a todos, resultando em uma discussão de ideias em altíssimo nível e com ampla liberdade dialética.
Posteriormente, as cartas foram reunidas em uma coletânea — originalmente publicada na Itália sob o título de In cosa crede chi non crede? — editada e publicada no Brasil pela Editora Record com o título "Em que crêem os que não crêem?" (tradução de Eliana Aguiar, 10ª edição). Na obra, diversos pontos de vista são fundamentados, ou refutados, evocando-se temas variados, muitos deles indigestos à tradição católica, como as mulheres e o sacerdócio, o aborto, as perseguições religiosas e até a engenharia genética. Ao longo de uma cuidadosa fundamentação ética de ambos os lados, são discutidos muitos pontos de interesse comum entre crentes e não-crentes, oferecendo ao leitor uma valiosa reflexão sobre os valores do homem contemporâneo.
Naturalmente, e apesar do provocativo título da coletânea, o objetivo original não era o de resolver o mistério da existência de Deus, mas, sim, jogar luz em zonas obscuras do pensamento humano, tanto crente quanto laico, mostrando que, no fim, todos estão em busca das mesmas coisas, mesmo que por caminhos diferentes.
"(...) Podem escolher o bem até mesmo aqueles que não o percebem em teoria ou o negam. Um ato bom, realizado por quem é bom, veicula uma afirmação de transcedência. 'Se Deus não existe, tudo é permitido', observou Dostoievski. Palavras vãs? Mas até Sartre admite, mesmo de um ponto de vista ateu: 'Com Deus desaparece qualquer possibilidade de reencontrar valores em um céu inteligível; não pode mais existir um bem a priori, pois não há nenhuma consciência infinita e perfeita para pensá-lo; não está em parte nenhuma que o bem existe, que é preciso ser honesto, que não se deve mentir' (O existencialismo é um humanismo)."
Carlo Maria Martini (Eco, U., Martini, C. M. Em que crêem os que não crêem?. 10 ed. Record: Rio de Janeiro, 2006.)
Nenhum comentário:
Postar um comentário