sexta-feira, 30 de julho de 2010

Mutações linguísticas


O português é uma língua viva e a prova disso é a alteração a que se sujeita com o passar do tempo. Essas mudanças na língua não ocorrem por decreto (apesar disso não ser uma regra, haja vista o recente acordo ortográfico), mas pelo uso constante que, dela, o povo faz. As transformações podem, inclusive, acumularem-se ao ponto de transformar uma língua em outra. Basta ir retrocedendo no tempo para se ter uma ideia da dramaticidade dessa "mutação" linguística. O português que se falava no Brasil à época de seu descobrimento, no final do século XV, por exemplo, embora ainda seja a "mesma" língua, em muito se difere do que é usado hoje.

Esse processo de mudança sofre influência de uma infinidade de fatores que vão desde simples incorporações de palavras estrangeiras até a deliberada criação de vocábulos específicos, úteis a uma dada comunidade ou grupo. O monitoramento dessa lenta e gradativa metamorfose fica a cargo dos estudiosos da língua, entre eles, os especialistas em linguística e os especialistas em gramática. E apesar da profunda inter-relação das áreas (a bem da verdade, a gramática pode ser considerada um dos ramos da linguística), ambos os grupos parecem estar sempre se estranhando. O pomo da discórdia, claro, é a impermanência da língua que, enquanto para muitos gramáticos se apresenta como desvios de norma, para os linguistas se coloca como empolgante matéria de estudo. Já para os leigos amantes da língua, a ocorrência dessas frequentes e acaloradas discussões se traduz em oportunidades únicas para se beber de uma rica e inesgotável fonte de conhecimentos.

Há, entretanto, uma zona neutra na qual gramáticos e linguistas parecem se entender razoavelmente bem: a poesia — provavelmente porque, aí, o poeta tenha licença poética para dobrar a gramática como bem entender. E, talvez por isso, os primeiros registros literários em português acabaram sendo, justamente, poesias. Um ótimo exemplo ilustrativo é a Cantiga da Ribeirinha ou de Guarvaia, escrita por Paio Soares de Taveirós, provavelmente em 1198, que, no colégio, a gente aprende (ou aprendia) ser um dos primeiros exemplares escritos em língua portuguesa (galego-portuguesa, para ser mais preciso) de que se tem notícias. Os versos são uma típica amostra do trovadorismo medieval português (séculos XII e XIII) e fornecem, já nos dois primeiros, uma ideia das diferenças acumuladas ao longo dos séculos: "No mundo non me sei parelha, / mentre me for' como me vai, (...)", o que, em português moderno, significa "No mundo ninguém se assemelha a mim, / enquanto minha vida continuar como vai, (...)" (Nicola, J. ''Literatura portuguesa da Idade Média a Fernando Pessoa''. São Paulo: Scipione, 1992. ed. 2. p. 28).

Com um exemplo desses, não é preciso nem ser linguista ou gramático para saber que, daqui a alguns séculos, os textos aqui do Automorfo só serão entendidos por muito pouca gente...


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